quinta-feira, 8 de agosto de 2013

ESTÓRIAS HERDADAS 1.

Acompanhando o meu Pai, sobretudo nos últimos anos da sua vida, fui ouvinte de mil estórias que, subitamente e sem aviso, ganham forma na minha cabeça. São, sobretudo, factos vividos na primeira pessoa, era ele então jovem médico, ou ainda estudante de medicina, que me fazem companhia quando a solidão se torna forte demais. Resolvi, agora, a propósito de coisa nenhuma, dar letra a algumas delas. Penso que os intervenientes, aos quais vou obviamente alterar os nomes, já não estarão entre nós, mas acho importante afirmar, claramente, que não tenho intenção de criticar ninguém (quem sou eu para o fazer?), mas, antes pelo contrário, de imortalizar momentos de uma vida que foi cheia! Resolvi trazer o meu Pai para junto de mim, no lugar que é dele sempre, e pô-lo a contar, como me contou a mim. Espero que a saudade não me atraiçoe, que a emoção não me troque o alfabeto...

 Alegrete - Castelo


O SUICÍDIO
"Era eu médico há pouco mais de um ano, vivendo ainda em casa dos teus avós e com o teu irmão muito pequenino, pediram-me para substituir o médico de uma freguesia vizinha, Alegrete, porque o colega precisava ser operado em Lisboa. Agarrei a oportunidade com as duas mãos, na época ganhava 500 escudos por mês, menos do que a tua mãe que era professora, e aquele dinheiro dava-nos muito jeito. Assim, todas as tardes, num carro de aluguer, lá ia eu fazer a consulta do colega. Era chamado a qualquer hora, sem aviso prévio, sendo convocado pelo homem do carro de aluguer, que era simultaneamente o presidente da Junta, e que se apresentava em nossa casa dizendo "Doutor, vamos lá que vossemecê faz lá falta!" e eu lá ía. Uma noite, noite de chuva e trovoada, uma daquelas noites terríveis de Portalegre, seria quase meia noite, bateu à porta o homem do carro. "Temos de ir doutor, enforcou-se o Manel da Pisca. Está lá pendurado, precisam de si!" Calcei umas botas, vesti o capote e disse à tua mãe que não devia demorar, ia só confirmar o óbito. Julgava eu... 
Mal chegámos junto da ribeira, o homem parou o carro e informou-me "A partir daqui, o carro não passa. Vossemecê passe a pé que do outro lado está a mula do Xico Farinheira que o leva." Jovem, ainda com restos da minha energia de desportista, passei o rio e saltei para o lombo do animal. À minha frente, a pé, seguia o Xico Farinheira, atarracado, com uma tosse de tuberculoso e de poucas falas. A acompanhar os relâmpagos, a interromper o ribombar intenso da trovoada que andava já por terras de Espanha, apenas a luz tremelicante do candeeiro de petróleo que o Xico levantava, de vez em quando, para alumiar os calhaus do caminho. 
Chegamos à casa, um Monte triste onde parecia ter caído um véu de estrelas, de tal forma tremelicavam candeeiros, e fui recebido pelo pranto ordenado da viúva e das vizinhas. A GNR já lá estava, aguardando. Cumprimentos feitos e o cabo, cheio de poder na voz, declarou que me acompanhava ao sótão onde o Manel da Pisca se tinha enforcado. Segui-o, cheio de frio e de tristeza, reparando num pequeno de três ou quatro anos sentado no colo choroso da viúva, subindo a escada íngreme. Quando o cabo abriu a porta, o vento forte entrou livre, fez corrente, soltou telhas de barro e fez cair o corpo que balançava na trave. Então, o cabo desatou aos gritos "Ai que o cadáver está vivo! Ai que o cadáver está vivo!" e voou escada a baixo quase me derrubando no caminho.
Infelizmente, o cadáver estava mesmo morto...Certifiquei o óbito, dei os pêsames à viúva e fui tratar da remoção do corpo. Para onde o levar, aquela hora tardia? Como o transportar sob a chuva que, então, caía copiosamente?" 
- Filha, vamos ver o telejornal que um dia destes conto-te o resto da estória. Um dia, hás-de escrever estas minhas narrativas. "

6 comentários:

  1. Luisa, gostei imenso de ler o seu post de hoje! O que conta não me é estranho pois ouvi alguns desses relatos relativamente ao meu Tio António que era cunhado do meu pai e médico em Bragança. Noites ventosas, noites de chuva, noites apenas geladas, montado na mula que lhe traziam à porta. Mais tarde adquiriu um dos primeiros carros vendidos na cidade mas que muitas vezes também tinha que ser substituído por um animal já que os caminhos da serra não estavam preparados para outros cavalos! Posteriormente esse passou para o meu pai e imagine que ainda me lembra da marca e da matrícula - Prefect AF-12-97!
    Cá espero, posso dizer, esperamos,outros relatos da história de vida do seu pai que também tive o prazer de conhecer.

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  2. Dalma,
    Muito obrigada pelas suas palavras!
    Luísa

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  3. Coitado do Manel da Pisca...qual seria o problema dele?
    Os cabos da GNR são todos medricas, acho eu...
    O Xico Farinheira escaparia à tuberculose?

    Reparo que, a esposa de seu pai, senhora sua Mãe, ganhava melhor que um médico...-nesta altura davam valor às professoras !

    A história é triste, mas eu ri-me. Nosso Senhor me perdoe...
    A Setôra tem de vir contar o resto! Será que levaram o cadáver, na mula do Xico Farinheira, para atravessar o rio?
    O mais triste é a criança tadinho.

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    1. Amanhã conto o resto...
      Obrigada pela sua presença leitora!
      Luísa

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  4. Histórias que contam estórias de médicos... Umas com final feliz, outras tristes, outras inesperadas... Quem teve um pai médico, um tio ou alguém próximo, sabe bem dessas estórias de um passado recente...
    Esta, espero, será a primeira de muitas... E, se a filha, sabe tão bem relatar estas estórias é porque teve um pai de excepção e médico exemplar!

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    1. Obrigada sobretudo pelas palavras que são para o meu Pai! Mais do que merecidas.

      Luísa

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