segunda-feira, 30 de junho de 2014

O INVENTÁRIO

Que os professores fazem tudo, já não é novidade. Mas eu, ingenuidade confessa, não estava à espera de ter de contar cadeiras, mesas, quadros e janelas. Ou seja, nunca na minha imaginação (que é fértil!) passou algum dia a ideia de ter de fazer o inventário do mobiliário da Escola onde trabalho. Que me pedissem que verificasse livros, por exemplo, ainda podia temer... Mas mesas e cadeiras?! Comecei por me surpreender mas, uns minutos depois, deu-me mesmo para rir. Tenho 56 provas de exame de português para corrigir mas, uma destas manhãs, vou passar umas horas a contar as mesas,cadeiras, quadros, janelas, estores, que existem nas duas salas que me foram atribuídas e onde, por acaso, nunca dei aulas. Podia parecer absurdo, mas, vendo bem, é tão ridículo que até é divertido! Só me fica uma dúvida: - Terei de preencher uma folha excel discriminando o número de pernas que tem cada cadeira e cada mesa??

sábado, 28 de junho de 2014

OS SENHORES DE FRAQUE

Claro que sabia que as Casas não falam, não têm memória, não trancam passados. Mas o conhecimento de pouco lhe servia quando, finalmente na posse da chave amarelada, entrou na velha Casa. Havia marcas visíveis do tempo, soalho roído, aranhas abusadoras, janelas empenadas. Mas havia, também, o cheiro que lhe trouxe de rompante, sem dar tempo sequer a que  trancasse a alma, a infância que, como o Poeta "não trouxera roubada na algibeira". 
Tinham passado muitos anos, tinha estado longe, enxugado lágrimas em lugares distantes, adormecido em ombros para sempre ausentes. Vira crescer os filhos, morrer os pais, chegar os netos. Vivera encantamentos, desilusões, dores e mágoas, ilusões e esperanças. Agora, com a imensa solidão por companhia, depois de um doloroso processo de partilhas, regressava à Casa de onde, pensava, nunca chegara a partir. Retirou os lençóis brancos que povoavam a velha sala de fantasmas e inventariou o futuro próximo: entre vassouras, esfregonas e baldes de tinta, tinha muito que fazer. Sentou-se e ficou esperando que os fantasmas, agora os dos sentires, viessem fazer-lhe companhia. Encostou-se e viu, debaixo do sofá pequeno, uma caixa toscamente atada. Puxou-a. Fotografias! Uma caixa cheia de fotografias, muitas a preto e branco, esperando um olhar atento. Pegou-lhes. Casamentos, baptizados, primeiras comunhões, algumas viagens, almoços, Natais. Sorrisos, conversas apanhadas num momento. Ali estavam os Pais, tão jovens, os amigos de infância, os filhos pequenos. Com dificuldade identificava algumas das crianças, pareciam todas iguais... 
Uma fotografia grande, quadrada, ficou a desafiá-la.  Podia até ser a Geração de 70, pensou sorrindo, reconhecendo que tal seria pouco provável. Olhou com atenção-ao: Duas filas de homens, todos de fraque, os detrás em pé, os da primeira linha sentados com as pernas direitas  cruzadas num alinhamento perfeito. No verso, nenhuma identificação de data ou nome. Procurou o avô, talvez fosse ele o causador do flash, mas não o detectou.  Voltou a olhar os fraques cuidados, os sapatos engraxados. O cenário parecia Coimbra, a escadaria da Universidade. Ou talvez não... Acendeu a luz. Alguma coisa a encantava naqueles rostos barbados. Teriam acabado de tomar alguma decisão importante? Seriam políticos? Seriam só amigos? Decididamente, não conhecia ninguém. Lembrou-se de uma amiga, professora de história, e sorriu pensando quanto ela se indignaria se assistisse ao concretizar da sua decisão: - Ia queimar tudo! Ia acender a lareira suja, encher um copo de Porto (tenha de haver uma garrafa esquecida) e queimaria todas as fotos. Levantou-se, foi ao quintal e trouxe uma braçada de lenha bem seca. Riscou o fósforo e ficou vendo a dança da chama azulada. Depois, procurou o Porto, rezando para que a marca não fosse Velhotes, lavou um cálice empoeirado e sentou-se no chão. Uma a uma foi vendo as fotografias encarquilharem-se e desfazerem-se. Era melhor assim, o passado é dos próprios e ela também não gostaria que andassem a mexer nas suas histórias. Os senhores de fraque ficaram para o fim. Havia alguma coisa de especial naqueles rostos. Antes que a coragem lhe falhasse, lançou-os nas chamas. Arderam como todos! Afinal, pensou, os senhores de fraque também ardiam...Ficou olhando o fogo, pensando que, no dia seguinte, as velhas cartas da gaveta da escrivaninha seguiriam o mesmo destino. As recordações, as memórias, só são pertença de cada um! 

terça-feira, 24 de junho de 2014

A Tia Maria Luísa

A tia Maria Luísa fazia anos a 23 de Junho, ou seria a 24?, e o seu aniversário era sempre pretexto para fazermos a fogueira e cantarmos ao São João. O meu pai, que adorava festas e casa cheia, pedia ao senhor Joaquim que trouxesse rosmaninho. Vinham carradas, (na velha carroça puxada pelo macho manso onde muitas vezes montei em pelo), que ficavam a secar no quintal, e tudo se preparava com tempo. A senhora dona Zélia era especialista nas bonecas que queimávamos no cimo do mastro, e a casa virava alegria e barulho! Os mais miúdos, e alguns adultos mais afoitos também, saltavam a fogueira, e eu lembro-me muito bem do cheiro das minhas sobrancelhas queimadas, das pontas do cabelo chamuscadas, das recomendações descuidadas da minha mãe para que tivéssemos cuidado. A tia Maria Luísa era sempre a mais animada! Chegava de tarde, cheia de guloseimas únicas, bolinhos de canela da minha infância!, e ria-se de tudo. Foi ela quem me salvou, então aluna da dona Emília nos aterradores lavores femininos, fazendo-me, ali em cinco minutos, a bainha de um lençol de berço que fora o meu tormento ao longo de todo o ano lectivo. A tia Maria Luísa nunca se zangava, achava sempre que tudo se havia de resolver, e ensinava com paciência como fazer bifinhos de lebre! 
Quando a tia Maria Luísa fazia anos, a casa da Serra era de todos e ela soprava as velas pedindo sempre só mais um ano. A tia Maria Luísa chamava Tiquinho ao marido, falava-lhe com doçura e nunca os ouvi discutir. Quando os meus pais saíam, a tia Maria Luísa e o seu Tiquinho mudavam-se para nossa casa para tomarem conta de nós e era uma festa constante.
Tenho muitas saudades destes meus tios. Hoje, agora na noite fria e sozinha, penso no calor que tinham as noites, até as de trovoada, quando os meus tios estavam por perto. Tive outros tios, muitos, mas nenhum se instalou no meu coração como a tia Maria Luísa e o Tiquinho.
Às vezes, dou por mim a lamentar que na infância dos meus netos não haja figuras como a da Tia Maria Luísa.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

TARDE?

É TARDE
Tarde demais para ver o sol nascer
Tarde demais para dizer que te amo
Tarde demais para abrir o coração
Tarde demais para a nossa rendição!

É tarde, meu amor…

Tarde para deixar o sonho instalar-se
Tarde para adormecer os medos no teu ombro
Tarde para a palavra que nunca me disseste!

É tarde meu amor…

O Sol está frio,
A luz é escura,
A solidão existe.

É tarde meu amor…

É tão tarde!


E pode ser tão cedo ainda…

O Sonho Português

Quando foram despedir-se do Presidente da República, num (imagino) belo almoço no Palácio de Belém, antes das selfies mais ou menos ridículas, depois, porventura, de uns copos bem bebidos, os jogadores da Selecção ouviram o senhor Presidente dizer-lhes que eles levavam o sonho dos portugueses. 
Fiquei com dúvidas: - Seria o sonho de vencer o mundial, ou o sonho de viajar até ao Brasil para gozar sol e praia? Fosse qual fosse o sonho, os nossos jogadores num instante o fizeram em pedaços. Será vício, ou hábito ruim, este que os poderosos parecem ter de destruir os sonhos lusitanos?

sábado, 21 de junho de 2014

PARADOXO

Sábado com nuvens, humidade no ar, e o Verão a começar. Gosto destes paradoxos. Como se, por qualquer razão inexplicável, a Natureza insistisse em dizer que quem manda é ela e que o calendário dos homens de nada serve! Aproveitei o fresco, fui ao Mercado, sorri aos lagóias como eu, abri a janela de par em par e, porque não tenho o poder da natureza, submeti-me a outro paradoxo -  um sábado de trabalho - Corrigir exames de 12º. São só 56...

quinta-feira, 19 de junho de 2014

TORMENTAS

De repente, o vento soprou zangado, o céu escureceu e a dor agudizou-se. Era uma viagem curta, mas intensa, e ela fazia-a de coração aberto, confiante no dobrar de mais um Adamastor, lembrando Os Lusíadas, a necessidade de encarar o monstro e seguir em frente. Quando o vento começou a zurzir a vela solta, os sentires embrulharam-se. E se naufragasse? E se, de novo, o vento da vida afundasse o barco do sonho, aparelhado apenas de sentires? Tremeu, tentou trancar as emoções na casa das máquinas, recolheu rapidamente os cabos que permitiam a liberdade do sonho. Tarde demais. Há, na grande navegação que é a vida das gentes, tormentas insuperáveis!

quarta-feira, 11 de junho de 2014

PORTUGAL


Propositada e conscientemente deixei que passasse o 10 de Junho, Dia de Portugal, sem escrever. Porque as palavras valem demais para se gastarem com a tristeza do que se viveu. O que dizer de discursos que apenas com um desmaio se animam? Como classificar as vaias, os berros, os protestos de gente descontente? Vi tudo, com mais vontade de chorar do que de rir. "Não mais Musa, não mais" ecoa Camões dentro de mim!

segunda-feira, 9 de junho de 2014

SAUDADE

9 anos. O tempo passa e parece que foi ontem. Não era perfeito, era humano mesmo, mas era a minha referência, o meu ombro amigo, o meu cúmplice. Já há nove anos que o meu Pai partiu, no quarto onde agora durmo, só comigo, com a sua mão na minha. Vi-o ir. Mas ainda hoje o sinto aqui, atento, a zelar por mim, a compreender o que todos condenam. Tenho saudades dele. Tenho sempre saudades dele mas, quando o calendário assinala datas, parece que dói mais ainda! 

domingo, 8 de junho de 2014

O Veleiro

 Lá no alto, a lua e as nuvens. Cá em baixo, ela. Estreante em viagens de veleiro, ouvia o zumbido suave do vento, via a água escura fazendo carneirinhos e sentia o grande veleiro a deslizar. 
O comandante, um jovem Tiago de falar alentejano e cores holandesas, contava que o barco viera da Holanda, todo em ferro com mais de 100 anos. Falava de termos que ela desconhecia, a retranca, o calado, o patilhão,  e talvez o desconhecimento dos sentidos conferisse mais magia quente aquela viagem. Sentada na popa, de pernas cruzadas para não perturbar o governo do leme, olhava as margens do Alqueva, o seu Alentejo tão amado e, agora, tão diferente com o grande lado a enchê-lo. Via as vacas, os pastores cansados, as roulottes dos turistas e os sobreiros de sempre. Muitas vezes dizia que não morreria sem fazer um cruzeiro. Mas a gente diz tanta coisa... Agora sentia-se feliz, em harmonia com a paisagem, deixando que os medos se afogassem como o castelo de Lousa, permitindo que as angústias adormecessem embaladas pelas águas do Alqueva. 
Via a ponta da vela grande, não da genoa, e descobria a lua lá longe. 
Era dia sim, mas a certeza da noite ali estava e havia de chegar. Porque sempre chega a noite quando o sol inunda a alma das gentes.


sexta-feira, 6 de junho de 2014

FINAL DE ANO LECTIVO

Acabou hoje, para milhares de alunos, mais um ano lectivo. Outros, mais novos, continuarão em aulas por mais uns dias, mas no ar está o perfume de férias... Olho sempre com um misto de emoções esta época do ano. Estou aliviada porque, como diziam no Juego de La Oca, foi uma prova superada.
Dei o melhor de mim, posso dormir descansada porque, aconteça o que acontecer nos exames, os meus alunos sabem que eu fiz o melhor que sei e que nunca os descurei! Por outro lado, experimento já uma saudade imensa. Saudade da refilice  do David, da calma da Margarida, da curiosidade da Beatriz, da preguiça do Francisco, da irreverência bem disposta do André,... O que será destes miúdos para o ano? Conseguirão o futuro que desejam? Partirão para países distantes? O André gosta de pescar achigãs. Irá para um pais sem rio, para uma terra sem espaço para a sua pesca? Penso em todos, e em cada um, e tremo. Não acredito no mundo., desconfio da Humanidade. Receio as armadilhas, as injustiças, os calhaus enormes que os meus meninos irão, de certeza, encontrar pelo caminho.
Penso, também, nos mais pequenos. No Afonso, sempre em stress, na Ana Aurora, a gastar a vida como se fosse algodão doce, na Mariana, a crescer doendo, na Matilde, atenta e segura, no Miguel, contestatário e curioso, no Filipe, cumpridor e atento, na Patrícia, sorridente e disponível, na Catarina, de traço firme e mente voadora, na Catarina, de olhos meigos e sorriso fácil, na Ana, de silêncios múltiplos, no João Pedro, pertinente e certeiro, no Tiago, com a cabeça na bola de futebol, no Miguel, de pala sempre bem firme e cuidada, no Luís, a pedir sempre atenção, no Carlos, ausente e distante, na Ana, de canudinhos e olhar curioso, na minha Bia, sempre na dança e de olhar perdido em mil saris, na Michelle, galopando com o olhar pela janela da sala, na Mariana, amiga e curiosa, na Carolina, endiabrada e perdida, na Fernanda, maquilhada e terna, em todos! Tantos! E a quem o país não permite crescer, de facto. Miúdos aos quais a Escola de hoje fica incrivelmente curta! Em Setembro, mais espigados, vão voltar a encher a escola de sorrisos e protestos. Mas depois, muito em breve, porque Chronos é cruel, terão abandonado as paredes da velha escola que os viu crescer. Onde irão? Ah, às vezes desejava que, como as andorinhas que sujam a parede da minha velha casa, voltassem sempre para mim...
Olho o ano que se esgota, agora rapidamente, e penso em tanto que ficou por fazer mesmo, de facto, tendo consciência que fizemos muito! Penso, com um pouquinho da nostalgia que agora me invade, que, se crescer dói, envelhecer dilacera...

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Ambiguidades??

Li hoje, numa entrevista dada pela escritora Siri Hustvedt, uma certeza científica, validada por cientistas da área da neurologia, a afirmação de que o ser humano é complexo e que reage, e faz escolhas, movido por factores internos que, considerados por vezes socialmente ambíguos, são apenas individuais e complexos. Apresentava a autora o caso de Fernando Pessoa, mas dizia que não apenas os génios são "vítimas" destas forças psicológicas internas.
Depois de ler a longa entrevista, fiquei a pensar nas palavras lidas. Seria bom que toda a gente tivesse conhecimento desta realidade científica porque, se toda a gente soubesse que cada um faz opções, toma atitudes, influenciado por factores psíquicos singulares, talvez o mundo melhorasse e nós nos habituássemos a não condenar todos os que fazem escolhas diferentes das nossas!

domingo, 1 de junho de 2014

A ROSA

Na velha Casa da barra Amarela, no espaço onde, para mim, a existência ainda faz sentido, a hera forte ocupou toda a parede e tornou-se muralha do pequeno relvado. É uma imensidão de verde brilhante, jovem diria Garrett, e eu gosto da tecitura de tonalidades da cor da esperança. Hoje, quando regava a relva, reparei numa rosa, única, que rompia os verdes e dizia presente. É uma flor muito frágil, podia ter sido pintada por uma criança das que hoje festejam o dia que lhes deram, mas, na sua singeleza, impunha-se e empertigava-se. Ei, olha para mim!, parecia dizer-me. Eu olhei. Olhei, fotografei e invejei. Sim, invejei a força que tanta fragilidade consegue ter, invejei a forma como, sozinha e diferente, se empertiga para dizer presente.