segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

A NOITE VELHA

Espero a meia-noite. Morreu o Joaquim Bastinhas. No mundo vive-se a esperança e o alívio, um ano a chegar, outro superado. É uma repetição de clichés, da ilusão de liberdade vivida pelos escravos da modernidade. Hoje, esta noite, é obrigatório ir a festas, beber, estrear roupa, olhar o fogo fátuo, comer passas e telefonar, ou - o que para mim é sempre uma mostra de sentimentos falsos e plastificados - repassar mensagens, e vídeos, iguais para toda a gente. Esta é a noite em que os verdadeiros amigos ficam igualados aos conhecidos, e aos inimigos, por vezes, também. 
É a última noite de 2018. Morreu o Joaquim Bastinhas. A televisão mostra o mundo em festa, de relance mostra os contrastes, os refugiados, os mexicanos, os venezuelanos, muitos africanos, a Síria, o Iémen, a poluição crescente, os tsunamis. E rebentam foguetes. Já chegou 2019 a muitos países, e eu opto por ser grega. Comi as passas ao ritmo de Atenas e vou dormir à hora das ilhas de Ulisses.
Morreu o Joaquim Bastinhas. E há tantos foguetes no mundo!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Vida Velha

Passou o Natal, aproxima-se o Ano Novo. Detesto a chegada do Ano Novo que, invariavelmente, chega a cheirar a velho e prenhe de más notícias. Odeio a passagem de ano, muitas vezes passei a meia-noite de 31 de Dezembro a dormir, e detesto as reportagens dos horrores que fizeram o ano velho cinzento e deprimente.
Este 2019 não traz nada de novo. Os preços vão subir, a miséria vai aumentar, as injustiças vão crescer, a guerra não vai acabar e eu vou envelhecer. Como se não bastasse,  vai haver eleições...
Ano Novo, vida velha!

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

QUASE

Hoje, é véspera de Natal. Há doces na mesa a lareira crepita e, sinto eu, o ar está diferente. Penso nas ausências, tantas e com tão diferentes razões. Há os que partiram, e continuam vivos nos meus sentires; há os que, podendo estar presentes, optaram pela ausência; há os que faltam sempre, levados por outras urgências talvez. Cheiram a peru assado as minhas memórias. Cheiram a musgo e a fritos. É quase noite mágica e, em breve, as crianças vão encher de alegria ansiosa o espaço calado da sala onde, agora, apenas eu e o Zorba conversamos. Tento afastar as memórias, iludir as saudades, mas fracasso. Eu sou perita em fracassos... 
All I want for Christmas is you, garante o CD que roda sem parar desde manhã. Sim, all I want for Christmas is you... E este you embrulha, ainda que sem laço vermelho, o meu Presente mais desejado!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

MENINO JESUS

Menino Jesus,
Há muitos anos que não Te escrevo. Não porque Te tenha esquecido, ou por ter-Te abandonado, nem sequer por achar que tens e-mail. Acho que deixei de escrever porque perdi, e como o lamento, a capacidade de acreditar no Milagre da Tua vinda, na noite de 24, colocar presentes no meu sapatinho. Desaprendi também, talvez, a segurança da infância, a fé em cada amanhecer, a tranquilidade de saber que havia sempre alguém para me amparar.  O que eu fiz da vida, os estragos e erros, desfizeram a minha Paz interior e semearam de escombros o meu tempo de estar contigo.
Quando era pequena - em que mundo foi isso? - escrevia-Te todos os Natais. Contava-Te as minhas maldades, as boas acções e, de caminho, aproveitava para Te pedir presentes. Não sei onde param essas cartas, decerto no lixo ou desfeitas pelo Tempo.
Este ano, nesta noite-véspera de ter comigo os meus netos, resolvi escrever-Te outra vez. E não venho pedir nada!
Menino Jesus, obrigada por estares aí para mim. Obrigada pela calma com que esperaste o meu regresso do lado de lá da Fé. Sim, estive muito zangada contigo. É sempre mais fácil zangarmo-nos para fora, com os outros, do que com nós próprios, Tu sabes. Às vezes, de tão cega de desgosto e raiva, chegava a virar-te para a parede achando que nem devias ver-me chorar. Mas Tu resististe e, por isso Obrigada! 
Prometo não mais te virar para a parede e sempre te olhar, antes de adormecer, para aquela conversa só nossa. Aquela, Tu sabes, em que me viro do avesso e te peço ajuda para lavar a alma. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

OS POBRES

A despersonalização, o esbater da identidade de cada um em nomes comuns é, para mim, algo que fere. Nesta época de Natal, quando os corações andam mais amolecidos e a vontade de ser mais humano se faz sentir, penso que a desidentidade dos mais desfavorecidos devia ser extinta. 
Os pobres. 
Quem são os pobres? Dizemos, eu digo, os pobres, como se me referisse a uma contingência, a uma massa anónima feita de uma colectividade de infelicidade. 
Quem são os pobres? Os que têm uma sopa e refeição melhorada num qualquer lugar das cidades, os que nada têm e vivem o Natal como se fosse Agosto ou desgosto?  
Os pobres. Os pobres têm rosto, são gente que, muitas vezes, foi esquecida de ser pessoa.
Os pobres têm sonhos, desejos e consciência da sua falta de muita coisa. Olhar os pobres devia implicar saber-lhes o nome, a história, as razões e os sonhos rasgados, muitas vezes, pela desumanidade reinante.
É Natal. E eu, no cómodo calor da minha insónia, lutando comigo mesma por erros tão sem sentido, penso no Manel, na Rita, no Ambrósio, no Marcelino, na Conceição, na Fátima, nos muitos nomes sem rosto que enchem a palavra pobres. Como será o Natal das mulheres que não têm comida para dar aos filhos? Como será o Natal dos que sofrem na solidão e vêem, de fora, os reflexos da felicidade alheia? Cada um dos singulares que fazem o plural da miséria - pobres - tem uma história para contar. Aquele veio de longe, num barco clandestino, numa terra onde não havia frio e por isso não usava sapatos; este perdeu o emprego, veio a bebida, os consumos, perdeu os dentes, a razão e o medo, sobrou a vergonha; a outra fugiu de uma vida violenta, pede esmola com o filho ao colo. E é Natal, por isso há que aproveitar, os não-pobres dão mais nesta altura...
Os pobres têm nome. Os pobres são gente.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

HOJE

Sempre que o Natal se aproxima, eu transformo-me. Estupidamente, sinto uma irresistível vontade de sorrir, de brincar, de cantar(!!) e de acreditar. Apetece-me andar na rua, sentir o frio no nariz, aquecer as mãos no café quente e espalhar Boas Festas pelos olhares que cruzo.
O Natal, em mim, tem um efeito mesmo positivo! Nesta época, a cabeça e o coração dão as mãos e, no uníssono da vontade de ACREDITAR, dizem que o mundo é lindo e a existência perfeita.
Por tudo isto, não me apetece mesmo nada trabalhar. Como dizia o Poeta, "a minha alma anda a monte" e a cabeça faz-lhe companhia... Olho a lista de coisas por fazer e não avanço. Não me apetece pensar na Escola, ou na formação, ou na preparação da próxima Revista, ou nas barbaridades cometidas em nome de uma flexibilidade não compreendida. 
O que me apetece mesmo, mas mesmo-mesmo, é dar um abraço forte ao dia e pedir-lhe que fique, que se multiplique, que permaneça tecendo ACREDITARES no meu coração, que se encompride neste meu desejo de ser feliz e não deixe voltar a rotina de vazios que, assustadora, espera Janeiro para se impor!

domingo, 16 de dezembro de 2018

PONTUAÇÃO

Se eu fosse escritora, daqueles escritores fantásticos, reais, que dão longas entrevistas e podem alterar a língua, eu havia de acabar com os pontos finais. Os pontos ficavam, servem para respirar, ajudam a novos inícios. Mas os finais, são uma chatice. São complicados, e dolorosos, quase sempre; são tardios no outro quase que completa o sempre. Os pontos finais, redondos e poderosos, incomodam mesmo. 
Se eu fosse escritora, havia de escolher mais vírgulas, das que prometem curvas no caminho e eternas continuações. Privilegiaria as reticências, há sempre hipótese de calar algo, de deixar adivinhar, de sugerir, e daria destaque ao ponto e vírgula: - Paramos, olhamos a curva e seguimos com energia redobrada.
Como eu não sou escritora, sigo tentando iludir os pontos finais da vida. São tantos!

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

MICRO NARRATIVAS


Hoje, deu-me para brincar com o português e criar micro narrativas!

A espuma das ondas salgava o enorme vazio do vidro sujo. Ela olhava. O mar nada dizia, mas a saudade vinha de lá, de longe, das ondas onde ele navegava deixando-a sempre ali, no cais da saudade, ancorada na mágoa. Sempre!

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Saltava do baloiço para o escorrega sem adivinhar os trambolhões da vida. Mais alto, mais alto, estou quase a tocar nas nuvens. E, de repente, o tempo choveu, o escorrega enferrujou e o baloiço quebrou-se. Agora, já não tira os pés do chão.

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Se não me caíres nos braços, se não me deres o teu coração,  se não disseres que não ao adeus, eu desisto.  E ela sorriu. Os dois escreveram então uma narrativa longa. Tão longa, que não cabia nas micros. Deve andar por aí...


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quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

NEVE

É quase Natal. Tenho a casa com muitos embrulhos, cheira a doces e o meu coração, já mole, está quase a desfazer-se. O frio faz-se sentir e eu recupero a memória da neve, o vinho quente e o abraço escaldante nas pistas velozes de mil cores.
A neve é um lugar perfeito. Prefiro, de longe!, a neve à praia. 
Na neve, bem cedo as vozes soam enérgicas, as cores dos fatos transbordam vida e o café forte enche os espaços. 
Gosto das subidas para as pistas, olhando cá em baixo as pegadas dos bichos que, durante a noite, recuperam o espaço que é deles. Gosto das descidas velozes, dos óculos embaciados, do nariz congelado e muito à moda da rena Rodolfo. 
Na neve, até fazer xixi é divertido, porque é preciso não deixar cair os casacos, não permitir que as calças se encharquem na lama que foi neve.
Depois, à tarde, há o chocolate quente, ou o vinho aromatizado, as conversas cheias de gargalhadas, as quedas lembradas como divertidas.
E chega a noite. Os vidros embaciam-se, o banho quente aquece a alma e disfaça as nódoas negras do dia. Na neve, na montanha, as estrelas brilham de modo especial e parece choverem carreinhos de felicidade directamente no quarto de hotel.
Na neve, o jantar permite excessos - afinal, são férias!-, e o sono não se faz difícil porque o cansaço é muito.
É quase Natal. E Natal é tempo de neve. Gosto tanto da neve!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

EU SOU ANTERIOR À NET. E SOBREVIVI!

Quando eu era miúda não havia internet. Sendo a filha do meio, tinha com a família uma relação difícil, sempre achei que ninguém - com excepção do meu Pai -, gostava de mim. Tinha fama de calada, de estranha e, já adolescente, ganhei ainda o insulto (confesso que para mim elogio) de snob. 
Como era calada e passava muito tempo sozinha, lia muitíssimo. Creio mesmo que me tornei uma leitora compulsiva, uma viciada na escrita, por necessidade de dar sentido às muitas horas de solidão. Lia em todos os lugares, mas era no  parapeito da janela do sótão que eu mais gostava de me refugiar, com um livro no colo e os olhos excessivamente húmidos. Comecei pela Condessa de Ségur. Que saudades daquelas histórias que me faziam chorar e eram, sempre, cheias de moralidade. Depois, vieram os Cinco, o Colégio das Quatro Torres, seguindo-se os romances do Júlio Dinis. Na minha imaginação, havia também a possibilidade de se ser feliz para sempre, como nos livros.
Eça, e sobretudo o Crime do Padre Amaro, foram devorados nos intervalos da leitura de Alexandre Herculano que sempre detestei. Alguém se apaixona por uma Hermengarda?! Felizmente, Eça dava-me uma Amélia cheia de desejos, um Amaro transgressor, uma Luísa frágil e muitas figuras bem reais...
Nunca mais parei de ler. Hoje, ainda numa vivência muito solitária, ainda, por vezes, sentindo-me marginal dos afectos, a leitura é a minha melhor companhia! E é a mais fiel das companhias: - Não critica, não julga, não condena, e está sempre pronta para me deixar partir para mundos possíveis!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

OUTRA VEZ

Outra vez. 
Sempre que digo outra vez, sinto um terrível eco de quase condenação à rotina. É outra vez segunda-feira todas as semanas, é outra vez Verão, é outra vez hora de ginásio, é outra vez hora de dizer adeus, é outra vez tempo de vazio. 
Felizmente, também conheço outra vez coisas boas. É outra vez tempo de ter os netos, é outra vez hora de ficar na minha casinha lendo só com o Zorba por companhia, é outra vez tempo de ir à massagem, é outra vez Domingo , é outra vez hora de cozinhar para os amigos e queimar o leite de creme!
"A vida cumpre-se num fazer de pequenas coisas" - disse Umberto Eco. Eu acho que a vida se cumpre numa repetição de fazeres (e afazeres) que, maioritariamente, nos são impostos de fora para dentro. Se eu pudesse impor à vida os meus fazeres e sentires, muitos outra vez seriam definitivamente eliminados. Dizer adeus deixaria de ter outra vez, e as ausências nunca aconteceriam. Se eu pudesse mesmo fazer a vida que desejo, só haveria outra vez para a ternura, para as conversas compridas perto da lareira, para o leite de creme partilhado, para os serões encompridados de palavras sãs. 
Se eu mandasse mesmo, reinventaria o direito ao espanto - esse do meu Poeta - e havia de estrear a existência com muito mais frequência!

REUNIÕES?

A Professora Catalina Pestana costumava dizer que, quando não se quer resolver um problema, se nomeia uma comissão para o analisar... Eu acrescento que, para além das comissões, há em Portugal o hábito, mais vício, de fazer reuniões. 
As reuniões sucedem-se, multiplicam-se e, curiosamente, repetem o figurino sem se pensar se o mesmo se adequa, se faz sentido. 
Este ano lectivo, um ano de muitas (dolorosas) experiências tenho assistido a reuniões aberrantes. Muitas! Desde reuniões onde se vai sem  se saber quais os assuntos a abordar, passando por reuniões que são conferências, a outras onde somos - sou - chamada a "prestar todo o apoio necessário"! Sendo que não me consta que haja coxos a dinamizar as ditas, preparo-me para servir cafés e ver escoar-se o meu precioso tempo em fazer coisa nenhuma!
Se podia ser diferente? Obviamente! Bastaria que as reuniões acontecessem com objectivos claros, que quem nelas tem de participar fizesse parte efectiva da sua preparação, que a eficácia das mesmas fosse avaliada e, sobre os resultados dessa avaliação, houvesse pensamento crítico!
Criticar, verbo de origem grega, etimologicamente, significa separar, peneirar para limpar do que não presta. E como eu gostava que estas reuniões fossem peneiradas, mesmo que nada sobrasse!

domingo, 9 de dezembro de 2018

CONCERTO NA IGREJA DO BONFIM

Raios dourados espalhavam luz sobre as cabeças. Muitas cabeças brancas, muitas carecas também, ombros encasacados e desejos de boas-tardes que senti amigos. É uma comunidade mesmo. Gente que se conhece de sempre, que sorri, que identifica presenças ainda que não saiba individualizá-las. 
A igreja, a belíssima igreja do Senhor Jesus do Bonfim, aquele espaço barroco onde vivi momentos únicos de pura felicidade, estava completamente cheia aguardando a música do grupo de Cantares o Semeador. E a magia aconteceu. Vozes fortes, fatos a lembrar outros tempos e os instrumentos, bombo-viola-acordeão-pandeiretas-cavaquinho-, a marcar os ritmos. Tinha vontade de me deixar embalar, de fechar os olhos, subir num dos raios dourados e partir. Partir para um lugar onde a música fosse a verdade, onde a amizade fosse total e  onde se desfizesse no escuro esta mágoa intensa que carrego dentro de mim.
É bom pertencer. É bom ser parte, ainda que minúscula, de uma comunidade com pontos de referência segura. Hoje, foi Natal no meu sentir.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

TUDO COMBINADO

Tinha sido combinado com tempo. Seria uma tarde especial, a dois, com conversa sem reticências, com vírgulas no lugar e pontos nunca finais. Ela chegou primeiro, o vício dos horários colado à pele, e ficou esperando, na tarde seca, com as mãos a embrulhar a chávena de chá fumegante. Apeteciam-lhe scones, ou queques, ou uma fatia de pão-de-ló bem húmido, mas resistiu, sorrindo sozinha, lembrando a ditadura da moda em tempo de democracia. É proibido ser gordo, ser gorda pior ainda!, é obrigatório respeitar os olhares alheios, sempre dolorosamente críticos, é imprescindível evitar os comentários rotineiros de estás mais gorda, raramente, estás mais magra...
Ele chegou. Um beijo rápido e desculpas. Outro chá. Uma torrada partilhada e a conversa a iniciar-se com silêncios de doer. Tudo tinha sido preparado com tempo... mas o Tempo dos não-ditos não permite combinações.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

LEMBRA AO CHINÊS

Quando eu era miúda e algo aberrante acontecia, a justificação era célere: - Isso nem lembra ao chinês! 
O tempo passou, eu deixei de ser miúda e, porque todo o mundo é composto de mudança, o chinês também se transformou. Hoje, no meu país há um chinês que fez vedar meia capital, que alugou o melhor Hotel inteirinho, que obrigou a alargar paredes para passarem as suas limusines xl. Hoje, o meu país presta vassalagem ao dinheiro, ignorando as barbaridades de um país, provavelmente o mais rico do mundo, onde existe pena de morte e  onde milhões passam fome. 
Este chinês representa muito mais do que uma visita. Este chinês vem provar, como se tal fosse preciso, que o que comanda o mundo é o dinheiro. Apenas e só.
Ainda assim, eu não queria ser este chinês!

ESCRITA IRREGULAR

-Desliga a televisão.
- Porquê?
-Porque quero que me oiças.
- Estou a ouvir.
-Desliga a televisão. 
- Não oiço com os olhos, diz...
E no diz a nenhuma vontade de ouvir, a centralidade no eu de enorme umbigo. E ela a tentar. Ouve, conta-me da escola, como está tudo a correr? E a resposta seca, feita de linhas cruzadas para ela decifrar. Tudo bem, sempre a mesma coisa, os testes já acabaram. Ela a insistir. Mas para além dos testes, estás a gostar? Não há nada para gostar. Mas descansa, está tudo bem. Nada descansada, com os olhos húmidos da solidão, ela virou os bifes. Como chegar aquele jovem, aquele miúdo que tinha saído, numa metamorfose estranha, do menino doce de caracóis e joelhos esfolados que gostava de ouvir histórias ao adormecer'
Olhou pela janela o silêncio da noite, a calma dos cães deitados na entrada. 
Não era assim que tinha sonhado a vida. Mas, naquela narrativa, o final não lhe pertencia e a página que viraria, mais logo, ao adormecer, não respeitava as normas da escrita regular...

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

ESTE DEZEMBRO

Queria ser melhor pessoa. De verdade! Queria ser capaz de perdoar sem mágoa, queria poder rezar o Padre Nosso sem a minha adaptação "...assim como nós tentamos perdoar". Queria, mas queria tanto!, que este Tempo Natal me mostrasse que o Pai Natal existe mesmo e que, com a sua magia abençoada - afinal, ele deve ser amigo do Menino Jesus -, me deixasse no sapatinho um mapa de acesso à paz e à tranquilidade interior.
Este Dezembro, olho o céu com mais frequência. 
Haverá uma estrela, um planeta não descoberto, capaz de me apontar o rumo? Queria ser capaz de reinventar a minha confiança em cada hoje, a minha convicção de que, apesar de muitos pesares, o Amor ainda faz sentido...
Tenho frio. Um frio de dentro, escuro e intenso, tão frio que faz o coração encolher-se e a alma fugir para longe. Este Dezembro, rezo com os olhos embaciados. Porque o Tempo não pára e eu não consigo ser melhor. E, ainda assim, eu amo, luto, ajudo e abro a ternura a quase todos. Só que, ainda este Dezembro, o quase é grande demais...

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O PRESÉPIO

Ainda não fiz o presépio. Em minha casa, na casa que já não há e no tempo que já não é, a casa só se vestia de Natal no dia 8 de Dezembro, dia do Natal Pequenino, como sempre se dizia. Era só nesse feriado que íamos ao musgo, ao pinheiro, e sujávamos a sala de lama e pratinhas de chocolate. Este ano, decidi, ao abrigo da minha liberdade de ser sozinha, recuperar também esta tradição. E conto os dias para o acontecimento! Antevejo o musgo a encher de cheiro essencial a minha casa, adivinho as luzinhas e as velas que hão-de dar cor à minha casa. Gosto, sobretudo, do Presépio. Gosto dos meus animais, alguns já danificados por duas gerações de pequenas mãos. O Menino Jesus continua com o sorriso tranquilo e, acredito eu, a Nossa Senhora olha-o antecipando o futuro...
Aqui, agora, no quentinho da minha lareira, antecipo o prazer do Natal que se avizinha. 

domingo, 2 de dezembro de 2018

Não Adianta

Às vezes, o manto da noite, tecido de estrelas, vem confrontar a minha saudade. Está escuro. Estou quente, espevitei a lareira, os meus pés descalços afundam-se no tapete macio. Olho as mil fotografias que preenchem a minha salinha. Ali estão as minhas filhas pequeninas, os meus sobrinhos adorados, os meus netos, já quatro. 
Onde me perdi eu? Em que cenário errei a fala, perdi o pé? Levanto-me para colocar um madeiro no fogo. É quase Natal. E a minha essência amolece, fica mais húmida, mais incapaz de calar saudades, revoltas, mágoas e desejos. Ah, tantos desejos que são mais do que vontades, tantas vontades que adio para aquele Tempo que nunca chegará.
O fogo devolve-me outros Natais. Tempos que não o são já, existências que desapareceram. Tranco a alma à saudade angustiada. Não adianta chorar sobre o leite derramado, digo de mim para comigo. Está frio. E ainda assim o fogo continua ardendo forte. Paradoxos. A vida, afinal. 

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

PARADOS NA ESTAÇÃO??

É comum, e creio que pacífico, encontrarmos resistência à mudança. Afinal, sairmos da nossa zona de conforto, sermos confrontados com situações que desconhecemos, desafiados para práticas que não dominamos completamente, provoca alguma ansiedade, angústia mesmo. É cómodo sabermos o que nos espera, reconhecermos os espaços e dominarmos, ainda que ilusoriamente, os contextos. No entanto, se nunca sairmos da nossa zona de conforto, se nunca nos confrontarmos com a necessária transformação de práticas, nunca evoluímos!
Penso, no silêncio da minha insónia, o que seria se, por exemplo, não tivesse aprendido a utilizar o computador e continuasse a escrever, sempre, no meu caderninho pautado... Penso, também, como poderia iludir as saudades terríveis dos meus netos, se não tivesse sido capaz de dominar a apreensão incómoda que viajar de avião sempre me provoca...
Como professora, tenho sido confrontada com mudanças frequentes. Muitas reformas, muitas alterações, muitas propostas pedagógicas e didáticas diferentes que me provocam e me tiram da minha zona de conforto. Sempre quis saber mais e experimentar. Às vezes, discordando completamente; outras vezes, envolvendo-me convicta! 
Nos últimos três anos tenho sido muito provocada e incomodada. O mundo, a esta velocidade alucinante a que vivemos, arrancou-me à minha zona de conforto e, sem aviso, colocou-me perante desafios, provocações e muitas dificuldades. Tenho consciência de estar a viver um momento histórico, o Tempo da transformação profunda do paradigma educativo. Agora, em vez de pensar "o que vou ensinar, hoje?", penso "o que vão os alunos aprender hoje? O que contribuirá para a felicidade deles o trabalho de hoje?" 
E como me preocupa a felicidade deles! 
Eu sei que mudar custa, incomoda. Mas sei, também, que é impossível ficar especado na estação vendo os comboios passar se quisermos entrar nesse amanhã que se iniciou ontem!!

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

PESSOAS TÓXICAS

Ao longo da minha vida, já longa (que ideia assustadora) , tenho-me cruzado com muitas pessoas. Algumas, para sempre ficaram comigo, ou na vida quotidiana, ou na memória, ou no espaço imenso dos meus afectos. Outras, esqueci. Outras, ainda, desejo esquecer. 
É mesmo assim! Há pessoas tóxicas que gostava de conseguir eliminar através da esterilização da minha memória. Neste grupo tóxico, incluo sempre os detentores de pequenos poderes (tão podres), e os críticos militantes, aqueles que, faça sol ou chuva, discordam e criticam. Neste ano lectivo, um ano de muitas experiências novas e imensos desafios, tenho encontrado algumas pessoas tóxicas... Eu achava que estava vacinada, afinal, venho de um ambiente de trabalho onde, com segurança e alegria, me garantiam que eu tinha anti-corpos (??), mas não estava vacinada. Ainda me chateiam as pessoas tóxicas. E quando a toxicidade se tece de ignorância, mais grave a coisa fica! 
Nunca mais é Agosto!!

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

ESCLARECIMENTO

"Escrevo não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela" - Fernando Pessoa

A escrita é uma construção intelectual, uma forma de expressar ideias, de construir pontes e, às vezes, limpar a alma. A escrita, a minha que não faço leis, acontece no mundo da ficção, da criação, do fingimento - diria Pessoa.
No entanto, há quem insista, sempre, em ler no que escrevo condenações ou denúncias. Não o faço. Crio! Episódios, narrativas, na liberdade do meu pensar!
Tenho tido algumas (muitas) chatices com o que escrevo. Leituras torcidas, certezas alheias, acusações que considero profundamente injustas, tresleituras dos meus textos.
Talvez devesse calar-me. Mas isso seria ceder a algo que considero profundamente errado: - Viver de acordo com os juízos alheios. 
Aqui, no meu espaço, escrevo como entendo. É o meu mundo de liberdade! Tenho consciência de não ofender ninguém, tenho consciência de que penso. E sinto!
Além de todas as razões, há mais uma: - Só vem ao portugalagoia quem quer. Não entro no email de ninguém.

ESTÃO A ROUBAR-NOS A MAGIA!

Cada ano começa mais cedo o frenesim comercial do Natal. Quando eu era miúda, no dia 8 de Dezembro fazíamos o Presépio, montávamos a árvore de Natal e faziam-se as primeiras azevias. Depois, era o alucinante período de Natal, chocolates, missas, vontade de sermos bonzinhos.
Agora, começa logo em Novembro. E seria até boa, esta antecipação, se nos fizesse ser bons durante mais tempo... Enfim.
O que hoje me tira o sono é uma publicidade recorrente da Rádio. Uma criança diz à mãe que se aproxima o Natal e a senhora, alegremente, sugere escreverem a carta ao Pai Natal. A criança refila. Não! O que ela quer mesmo é ir ao JUMBO, onde há todos os brinquedos que quer.
E assim se mata a magia do Natal. Perde-se o encanto do escrever a carta, assassina-se a ansiedade de verificar quais os pedidos aceites. Os meninos escolhem, os pais compram, e o Natal reduz-se ao comércio. 
Tenho pena destes meninos e meninas a quem roubam a magia do Natal. Tenho pena destas crianças sufocadas por uma sociedade que, cada vez mais, se orienta pelo consumo, sem lugar, sem tempo nem espaço, para a essência do ser.
Só porque esta publicidade me irrita, de certeza não comprarei nada no JUMBO!

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

DAC

O que é isto que tenho no horário, um DAC? A mãe explica, é uma disciplina que ainda não começou. Vês, é nas quartas-feiras de tarde, quando tiverem professor logo começa. 

Escuto sem querer ouvir. 
O que é um DAC, afinal? No âmbito do processo de Autonomia e Flexibilidade Curricular, em letra de lei nos Decretos-Lei nºs 54 e 55, mas, sobretudo, decorrendo do Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória e da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, propõe-se a cada escola, a cada Agrupamento de Escolas, que se olhe na sua especificidade e que, integrando-se no território em que se insere, conhecendo aqueles que a/o constituem, decidam objetivos e construam percursos. Sugere-se, ainda, que cada unidade orgânica encontre formas de ajudar os alunos a aprender mais, a aprender melhor. 
Fundamentados nas Ciências da Educação, e olhando o mundo que integramos, este mundo do séc XXI de deletes e clics, lembra-se que tudo acontece em relação, que há links entre os diferentes conhecimentos, que não é possível encaixotar conteúdos em diferentes lugares do cérebro de forma estanque e independente. Sabe-se, também, que se aprende mais e melhor quando se participa, por que a aprendizagem é um processo complexo e não linear. 
Sugere-se, então, no decreto-lei nº 55, artigo 3º, a possibilidade de se organizarem DAC (Domínios de Autonomia Curricular), áreas de confluência de trabalho interdisciplinar e ou de articulação curricular ou seja, a possibilidade de relacionar conteúdos e levar os alunos a trabalhar, e a aprender, de forma mais ativa, mais colaborativa e efetiva.
Confúcio (que o meu amigo Miguel diz ter existido só para dizer frases com sentido) , terá dito "Diz-me e eu esquecerei; mostra-me e talvez recorde; envolve-me e aprenderei". O DAC é a possibilidade de envolvimento! O DAC é a possibilidade de desenvolver aprendizagens de forma efetiva e com sentido! 
Como se avalia, perguntam. Obviamente, a avaliação é um processo e as aprendizagens avaliam-se ao longo do tempo, com a verificação do sucesso nas disciplinas que envolvem o DAC. 
O DAC não é uma disciplina. 
O DAC não tem, sequer de realizar-se ao longo de um período, menos ainda de um ano. 
O DAC não é uma coisa moderna que as escolas devem ter. 
O DAC não é uma forma de ocupar os tempos livres. 
O DAC não é um espaço para organizar feiras e exposições.
Afinal, um DAC é uma porta aberta à melhoria das aprendizagens, é a validação de uma autonomia que as escolas há muito solicitam.
Talvez fosse importante que as Associações de Pais fossem esclarecidas, que as Escolas conversassem com os pais, e com os alunos, explicando que, afinal, o que está em causa não é o caos. É, tão somente, um exercício de liberdade que visa mais e melhor aprendizagem, logo, uma sociedade mais equitativa e cidadãos mais felizes!

A MINHA FÉ

Sou, conscientemente, uma católica de trazer por casa. 
Venero o meu Cristo-Homem, a imagem que me ofereceu o Dr. Rodrigues, o senhor padre que me casou, gosto da missa de domingo na minha Sé e tenho imensas angústias. Acredito que há um Deus Pai que olha por mim, que me permite errar, me convida a fazer melhor, ouve as minhas fúrias e brinca  com as minhas alegrias. Creio em Nossa Senhora, mãe, admirando o sofrimento de quem viu morrer O Filho.
Mas, às vezes, esbarro com práticas da minha Igreja que me magoam, que não compreendo e me causam surpresa indignada. Claro que reconheço que a Igreja tem de ter regras, tem de observar normas e não pode acompanhar, sem critério, as barbaridades que alguns designam desenvolvimento social. Mas também acho que é verdade que a Igreja tem de acompanhar a realidade. E é por isso que não compreendo a razão de se exigir tanta burocracia, tanto papel, na realização de um baptismo. Afinal, Jesus Cristo foi baptizado no rio Jordão e não consta que os pais tivessem tido de mostrar a certidão de casamento, ou que os padrinhos tivessem de provar ter o crisma... Dizem-me que, se não houver rigor - papéis -, há pessoas que pedem o baptismo só pela festa. Eu sei que é verdade. E isso é grave? Que culpa tem a criança? Como se pode negar o baptismo, seja lá porque razão for? Afinal, Jesus Cristo disse "Deixai vir a mim as criancinhas!", não disse "deixar vir a mim as criancinhas cujos pais são casados e com padrinhos crismados". Ou disse?
O meu Jesus, o Deus a quem eu rezo e peço tantas vezes perdão, acolhe todos, não pede documentos a ninguém. O  meu Deus tem sempre os braços abertos num abraço muito quentinho e protector. O meu Deus acolhe quem erra, quem faz festa, quem O procura, sem pedir documentação...

terça-feira, 20 de novembro de 2018

VELHAS AMIGAS

Chuva e vento intenso, a alma (seja lá isso o que for) com a camisola cinzenta vestida, a lareira com fogo forte. A sala a cheirar bem, a leite creme queimado, a ganso estufado, a batatinhas no forno. 
E chegaram as amigas. 
Sentamo-nos à mesa e a conversa correu, como corre sempre que a amizade diz presente, feita de insignificâncias cheias de sentido. Voltaram as tardes na praceta, aqueles primeiros namoros tão intensos e promissores, as aulas no velho Liceu, agora memórias polvilhadas com as gracinhas dos netos.  O Tempo a desfiar-se, as filhas que cresceram, as saudades de braço dado com o receio do amanhã.
Ao café, o óbvio: - Estamos a ficar velhas amigas. Melhor, estamos a ficar velhas, mas jovens amigas sempre!

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Outra leitura

A- usência
M - ágoa
A - ngústia
R - estos...

Às vezes, AMAR é só isto...

domingo, 18 de novembro de 2018

CINZA

Com muita calma, ainda de camisa de dormir e com os pés gelados, ela fez o lume. Primeiro, com cautela, limpou os restos de cinza. Ah, se pudesse fazer o mesmo com os seus sentires, varrer os sentires defeitos, as cinzas de muitas desilusões resultantes de grandes fogos, ficaria mais aliviada... Depois, aproveitando as brasas que restavam, colocou a lenha. Primeiro um tronco grande, forte, para suportar o fogo, depois os mais fracos que haviam de arder primeiro. 
Nunca conseguira fazer igual, na vida. O tronco mais forte, transformara-se, excessivamente depressa, em cinza, e os mais frageis, talvez mais insignificantes, tinham também desaparecido no fogo do tempo. 
Com o aspirador sorveu toda a cinza em volta. Estava limpa e pronta,  a lareira. Ela, não. 
Sentia cinza acumulada na alma, no corpo também, e a vontade de se auto-aspirar era muita. 
Que bom seria conseguir eliminar resíduos, pós de coisa nenhuma. Sim, tanta coisa nenhuma  a fingir grande existência na sua via. Fez uma festa  ao cão, esse indiferente a cinzas e a pernas geladas, e enfiou-se na banheira  a transbordar de espuma. Tão pouco ecológico, e tão confortável... 
Lá, na sala, ouvia o lume a crepitar, as brasas tinham pegado. E na vida? Iria ela a tempo de fazer pegar o fogo da vontade de existir?

A MINHA PRIMEIRA PROFESSORA


Era uma escola antiga, daquelas a que, mais tarde, pomposamente se chamaria do Estado Novo, ainda que o estado delas fosse velho, e o Estado também… situava-se na única rua alcatroada, aquela rua /estrada que atravessava a aldeia. De um lado do edifício, gémeo, pintado das mesmas cores e com o pau da bandeira ao meio, nariz austero e ameaçador, estudavam as meninas; do outro lado, os rapazes. As professoras, de bata branca e sapatos rasos, entravam pela porta da frente, de madeira escura, forte, parecendo disposta a, diariamente, engolir a juventude das mestras. As crianças, que então se chamavam gaiatos sem a distinção por sexos que o edifício impunha, chegavam pelas nove, elas penteadas, eles de boné, carregando sacolas e, alguns mais endinheirados, pastas de cabedal que algum sapateiro jeitoso lhes fizera. Não havia toques. As senhoras professoras, que tinham um grande relógio teimoso na parede, chegavam à porta e batiam as palmas. A criançada alinhava e entrava nas salas, respeitando a ordem e procurando a carteira onde os mais pequenos, os do primeiro ano, nem chegavam com os pés ao chão.  Habitualmente, juntavam-se várias classes, até as quatro, se fosse preciso, e a professora lá ia distribuindo tarefas e orientando trabalhos. A minha sala, a sala dos rapazes embora eu fosse rapariga (hei-de explicar porquê) tinha uns enormes mapas rasgados pendurados num gancho. Era o mundo onde eu me perdia, tentando descobrir nomes de países que me pareciam tão impossíveis de alcançar como o País das Maravilhas que eu lia, à noite, num enorme livro ilustrado que uma tia me tinha oferecido.
Mas vou contar porque estava eu, menina, na sala dos rapazes. Vivia eu, então, numa cidade de província com apenas um colégio e, quando fiz seis anos, tendo aprendido a ler sem que ninguém percebesse como nem onde, foi preciso matricular-me. Então, nesse ano, o Colégio estava cheio e eu não tive vaga. Como não tinha ainda sete anos, poderia ter esperado um ano, mas eu já lia! Então, a minha mãe, que sempre foi profícua em ideias estranhas, lembrou-se de me enviar para a aldeia, todos os dias, no velho Anglia da professora Rita.
A Rita era uma professora vermelhinha, cheirando a naftalina e sabão azul, solteirona e que gostava muito de nós – de mim, e dos meus irmãos. Como, nesse ano, a Rita dava aulas no lado dos rapazes, eu lá fiquei, isolada do perigoso género masculino, estando no meio deles…, sentando-me, qual rata sábia, na secretária da professora. Lembro-me de me olharem com estranheza, de abanar os pés que não chegavam ao chão, e do cheiro de feijão com couve que a Rita levava numa marmita e aquecia num fogareiro para comigo partilhar o almoço.
Nesse ano, não tinha amigos de escola. Via-os de longe, a jogar à bola, a correr, mas a Rita nunca deixou que eu alinhasse nas brincadeiras masculinas e, assim, o meu primeiro ano, então primeira classe, foi um tempo triste, numa escola que eu nunca compreendi.
Como se não bastasse, o meu irmão chamava-me camponesa e eu, embora não percebendo o insulto, detestava a palavra que me cheirava a terra por lavrar!
Seria compreensível, creio eu, que tivesse ganhado uma profunda aversão à Escola. Mas, por razões que talvez o diabinho possa explicar, isso não aconteceu e, desde os meus tempos de camponesa, nunca mais abandonei as salas de aula…

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

REVOLTA

A voz denunciava revolta e angústia, incredulidade e tristeza também. Acabada de sair de uma reunião de conselho de turma de 11º ano, na turma da filha onde representa os pais, pedia que a ajudasse a compreender o que ouvira. E contou, cortando a paz relativa ao meu serão:
- Duas turmas de 10º ano, originaram uma turma única no 11º  e os professores continuam a falar do E e do F, como se não fosse só uma?
- Houve muitas negativas a matemática e a física, no "teste", e as senhoras professoras garantem que não sabem como alterar a situação, antecipando muito insucesso;
- Há alunos que jogam às cartas as aulas de filosofia, e a professora constata o facto...
O que acho eu, queria a mãe saber. E a minha revolta profissional a sufocar-me, a necessidade de ser correcta a impor-se. O que acho? Acho, muito sinceramente, que há professores que não o são. Acho que é urgente que as escolas revejam a sua função. Acho incrível que se continue a avaliar com a única aplicação dos testes. Acho estranho que um professor que verifica a existência de insucesso se proponha continuar a trabalhar (ou a não trabalhar?) do mesmo modo. Acho aberrante que se digam algumas coisas (graves!) impunemente e perante os pais e encarregados de educação.
O que eu acho? 
Acho que devia reformar-me já. Porque eu não QUERO fazer parte de um sistema que permite que estes absurdos aconteçam.
À mãe, com a calma possível, sugeri que apresentasse por escrito a situação à direcção da escola.
Mas mal dormi. Ser professor tem de ser bem diferente destas práticas...

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Carpe Diem

A caminho do trabalho, onde chego com a alma cada vez mais encolhida, vou olhando o cenário que integro. As cores de Outono rimam com a minha emoção, com a minha idade também, e sinto o olhar estupidamente húmido. Há, no meu caminho, tapetes fofos de folhas amarelas e vermelhas e eu penso como é estranho, absurdo, o facto de pisar no macio e sentir a dureza dos caminhos.
Este ano de 2018, finalmente a caminhar para o fim, tem-se tecido de profundas desilusões profissionais, de revoltas caladas (mais ou menos), de angústias excessivamente solitárias. Dir-me-ão que é assim a vida, que acontece a todos. Mas eu não aprendi (ainda) a aceitar tranquilamente o absurdo. Carpe diem, só Reis. Exactamente por nunca ter existido...

terça-feira, 13 de novembro de 2018

INTERRUPTOR

Há dias estranhos. 
Às vezes, parece que todas as verdades assumidas, todas as razões da Razão, todas as evidências da realidade, ficam excessivamente absurdas face ao que sentimos. Às vezes, aquelas imagens bonitas, as frases doces, tornam-se gordurosas e ocas. 
Quando isso acontece, pelo menos a mim, vem um manto de desrazão que me gela a alma. Nesses dias, ou momentos, nem sequer me apetece nada, nem ninguém, que me traga luz, que me acene com verdades lógicas, que apregoe evidências. Nesses momentos,  só o que desejo é quem se sente comigo na escuridão. Às vezes, partilhar a escuridão é-me mais necessário do que saber carregar num qualquer interruptor. 

domingo, 11 de novembro de 2018

PARIS

Embora Londres seja, sem dúvida e sem hesitação, a minha cidade preferida, adoro Paris! 
De Paris só tenho boas recordações, boas vivências, muitas leituras determinantes da minha maneira de pensar.
E vejo Paris, hoje em todos os canais, a comemorar os 100 anos da assinatura da paz. A paz numa guerra que matou 11 milhões de pessoas e deixou 6 milhões de mutilados.  
Nos 100 anos que passaram, ainda aconteceu nova guerra. Guerra de ódio, racismo, injustiça, violência. Guerra como todas as guerras: - Injusta e desnecessária. Guerra com câmaras de gás, crianças assassinadas, violência inqualificável.
Penso em tudo o que já passou (ou não), Olho os festejos e tremo. Porque eu acho que o perigo de mais guerra, o horror, a injustiça, a violência, o racismo,  não estão extintos. Continuo, com mágoa e medo, a esbarrar com a violência sobre o outro, a encontrar quem ache que pode julgar e condenar a seu bel-prazer, a conviver com seres (não pessoas, decerto) que  pisam, ferem, destroem, para seu interesse pessoal.
Dir-me-ão que sempre foi assim, desde Abel e Caim... 
Mas não é o passado que me fere. É o presente. É o amanhã que começou ontem! Talvez eu seja ingénua, talvez utópica, mas continuo acreditando que seria possível construir uma sociedade, um mundo melhor. 
Como? Ensinando a nova geração a agir de modo bem diferente! Transmitindo Valores, não feitos de falsa moral, mas tecidos de verdadeira humanidade. Tornando a Escola um espaço de partilha de diferenças, de trabalho efectivamente colaborativo, de aprendizagem real e não de aparente aquisição de conteúdos.
A Escola devia ser, no Mundo Inteiro, o laboratório da transformação social!
Vejo as comemorações em Paris, os senhores importantes de belos sobretudos e óptimos carros, muitos polícias pelas ruas, e duvido da Paz. Que paz vivemos nós se, afinal, precisamos de estar sempre a proteger-nos e a rodear-nos de armas?

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

NAS VEIAS DA EMOÇÃO

É fim-de-semana. Está a chegar o tempo que o Tempo me oferece, as horas que encomprido nos meus sonhos e utopias. No inverno, nos dias de chuva, quando me parece que o mundo acorda embrulhado em algodão, gosto da lareira, do chá na caneca que me traz afectos distantes, da roupa confortável e dos bons livros. Este mês de Novembro traz-me sempre memórias intensas. Em Novembro, há já 38 anos, nasceu o meu primeiro sobrinho,  o miúdo que, já homem e pai de filhos, ainda é o meu menino. Em Novembro, nasceu a minha Mariana. Miúda rebelde, de ternura extrema, a minha afilhada de olhos negros  vive no ninho dos meus afectos. 
E foi em Novembro que nasceu a Pessoa mais importante da minha vida: - O meu neto Manuel Bernardo! O meu primeiro neto, o miúdo inteligente, terno  e meigo, o meu rapaz inglês de curiosidade imparável.
Novembro é mesmo um mês muito especialmente único para mim! E hoje, quando o cinzento predomina e o fim-de-semana se anuncia, eu sinto Novembro a correr nas minhas veias da emoção.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Colaborar

2019 vai ser o ano nacional da colaboração. Assim, tout court, faz sentido. Até eu, que estou longe de gostar de muita gente junta, compreendo que colaborar, trabalhar em equipa, é uma forma de, quase sempre, melhorar resultados e enriquecer processos. Pessoalmente, tenho tido a sorte, quase privilégio, de integrar equipas muito boas. Na minha escola, por um ano, integrei uma equipa una, verdadeira e coesa, que me provou, uma vez mais, que é possível respeitar a individualidade de cada um e construir algo comum. Nunca vou esquecer o ano lectivo de 2017/18! 
Também já há nove anos que integro, num CFAE (Centro de Formação de Associação de Escolas), uma equipa que funciona, que partilha projectos, que se apoia e se completa nas diferentes competências. Somos cinco profissionais diferentes, nem sequer somos amigos íntimos, mas respeitamo-nos e trabalhamos de facto colaborativamente. Não tenho dúvidas em afirmar que o papel do responsável pela equipa é fundamental, porque ele é um leader, não um chefe, mas, para além dele, toda a equipa se entende e constrói sucessos, atravessando, tantas e tantas vezes, processos complexos.
Eu acredito, de facto, no trabalho colaborativo!
E é por isso que, este ano, ando tão infeliz. Porque tenho verificado que, em Portugal, há um gene de chefe que não conseguimos ultrapassar! Há o vício de tornar as equipas em rebanhos, com pastores de qualidade duvidosa. Há uma enorme dificuldade em reconhecer competências no(s) outro(s) e, por isso, vem constantemente ao de cima o vício do autoritarismo, a mania de querer ser chefe e a terrível incapacidade de ouvir e valorizar . Este ano, que precede o ano da colaboração, está a terminar, para mim, com uma experiência do que não é, nem deve ser, o trabalho colaborativo. Tenho pena. Porque podia ser tudo tão diferente, e tão melhor...

terça-feira, 6 de novembro de 2018

GINÁSIO

Quando tinha alunos do ensino básico, aí pelo oitavo ano, havia um livro que eles gostavam de ler: "Diário de um adolescente com a mania da saúde" Por causa dos alunos, fiz tanta coisa por causa deles, também li o dito livro. Tinha algum humor, alguma capacidade de brincar com o excesso e com o exagero da modernidade. Agora, sinto-me eu, às vezes, como uma adulta com a mania da saúde. Igualmente ridícula, igualmente exagerada...
Foi por causa da saúde, ah a partir dos 40 é preciso fazer exercício, a vida sedentária provoca situações terríveis, se não fizeres exercício podes ter um AVC (se te mexeres também) , que resolvi inscrever-me num ginásio.
Eu odeio desporto. Quando era miúda, no liceu, até um dedo consegui partir a tentar jogar volleyball. 
Enfim, nos meus 58 anos desiludidos, lá fui eu para o ginásio.
Já ouviram aquelas afirmações:  Sentimo-nos revigoradas; ficamos com energia para o dia; até já perdi peso; é a minha hora de lazer? Pois bem, nunca senti nada disso. 
Detesto o ginásio! Odeio suar, incomoda-me a dor de pernas e braços, sinto-me ridícula a fazer aqueles levantamentos de pesos sabendo, por antecipação, que nunca serei o Schwarzenegger. Ainda por cima, não tenho um equipamento cinco estrelas, daqueles que permitem ir ao café com ar de saúde colorida...
Mas vou continuar a ir. Porque aprendi que a esperança é a última a morrer e, quem sabe?, lá para os 80 anos, se não tiver o tal AVC antes, poderei ser uma velhota cheia de músculo!

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A ENVELHECER

Uma constipação idiota, tão idiota que nem chega a gripe, feita de uma tosse que não me deixa sossegar há oito dias, forçou-me a ficar o fim-de-semana inteiro em casa, entre chás de limão, mel, leitura e televisão. 
Confesso que não sou muito adepta de televisão, pouco vejo, mas nestes dias, alternando com bons filmes (a Netflix é fantástica!)  vi os canais nacionais. Vi e espantei-me! 
Como é possível tanta mediocridade, tanta ausência de Valores, tanto lixo e vulgaridade?? Casa-se com quem nunca se viu? Brinca-se aos casamentos e, publicamente, discutem-se intimidades? Divulgam-se os problemas pessoais, explora-se o sofrimento físico e emocional?? Nem queria acreditar. Mas é mesmo verdade! Parece que é um conceito importado, de um caixote de lixo estrangeiro, com certeza...
Envelhecer deve ser isto: - Olhar o mundo com incompreensão e revolta!

domingo, 4 de novembro de 2018

Iémen

Quase me parece ridículo, por ser absolutamente inócuo, manifestar a minha revolta, mágoa, tristeza, medo, desilusão, raiva até, face ao que está a acontecer no Iémen. Sim, é um lugar, entre muitos, onde há guerra. Mas é mais do que isso (se é que há pior do que guerra). É um lugar onde uma criança morre, a cada dez minutos, por fome ou por doenças que facilmente podiam ser evitadas. 
Podiam ser os meus netos. Podiam ser as crianças que enchem de alegria a praceta onde moro, podiam ser os meus sobrinhos que adoro. 
A UNICEF não consegue chegar a tempo, a ONU anda "em negociações" e o sofrimento alastra. Não me saem da retina as imagens de esqueletos vivos, de enormes olhos vazios de esperança, que a televisão mostra. Lembro, também, os migrantes que tentam, com crianças, chegar aos Estados Unidos. E penso se, afinal, este século XXI, com os WebSummits e os milhões de alguns, não deveria ser designado como o século da indiferença. 
Que podemos fazer, dir-me-ão. Talvez pouco, talvez muito pouco, mas, com certeza, alguma coisa. Falar no horror, exigir acção, não aceitar como inevitável e distante esta questão. Ensinar, os que nos rodeiam, desde muito cedo, que o amor é o caminho, que a compreensão é o veículo que permite construir a equidade! 
Nas escolas portuguesas, em algumas,  desenvolvem-se competências cívicas. A revolta e a indignação são exercícios de cidadania. O silêncio e a indiferença são a arma da cobardia!

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

E DEPOIS?

Quando os meus sobrinhos muito queridos ficam comigo, o que acontece normalmente uma vez por semana, tento ir conversando e percebendo o que se passa na escola e na vida destes miúdos que adoro. 
Mais ou menos a brincar, tenho a preocupação de lhes falar de Valores, de elogiar a Beleza e de os alertar para muitas injustiças. Na sua fantástica infância, eles vão conversando. Às vezes, supreendem-se , a sério tia?, outras vezes discordam, isso não me interessa nada!, outras vezes, ainda, tentam escapar ao difícil, a minha mãe é que sabe... Ontem, numa tarde fria, com eles bem quentinhos e a televisão  ligada no canal de crianças, surgiu o anúncio de um boneco, proposta para presente de Natal, que, juro que é verdade!, tem como habilidade dar puns! Exactamente! O dito boneco dá puns sonoros! 
Fiquei entre surpreendida e indignada. Quis ouvi-los. E logo o meu rapazinho garantiu querer um boneco daqueles! Felizmente, as meninas não gostaram...
Não deixo de pensar no boneco nojento. 
Sempre tive, e continuo tendo, muito cuidado com a compra de presentes para crianças. Faço questão de não comprar armas, ou sequer bichos feios e aterradores. Acredito, como mãe, avó e educadora, que desde cedo se aprende a valorizar o Bem e a preferir o Bom. Nunca me passaria pela cabeça comprar aquele boneco mas, ainda assim, não consegui dormir em paz. 
Porque há-de haver muitos miúdos, como o pequeno B, a pedir o boneco porco. E há-de haver pais e avós a comprarem. A minha angústia vem, por isso, do depois. Como será o futuro de uma criança que cresce entre o sujo e nojento, que se diverte com porcaria?
Talvez eu esteja a exagerar e, afinal, seja apenas um brinquedo diferente. Mas, mesmo assim, fico preocupada e desiludida (mais ainda) com a sociedade que integro. Como será depois? Depois, quando os meninos e as meninas e forem homens e mulheres que adoram puns e os acham naturalmente divertidos??

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

SEMPRE IGUAIS


Já não eram sempre os mesmos. Entravam carregando vidas estrangeiras, presenças alheias, na velha taberna que, respondendo aos desafios, de chamava agora Casa de Petiscos. Já não se encostavam ao balcão queixando-se do calor excessivo, da chuva serôdia, do roubo dos intermediários. Agora, surpreendiam-se com os ovos machos, a que insistiam chamar ovos com tomate, e confundiam a farinheira com a linguiça perguntando, entre receosos e gulosos o que eram mesmo os papa-ratos.  Era ali, mesmo no centro da vila, ali no espaço a que a placa dera o nome da Revolução, Praça 25 de Abril, que todos se dirigiam para provar as maravilhas que saíam das mãos rugosas da Tia Adriana. Velha, com uma mala de vida onde guardava a morte do único filho lá longe, naquele Ultramar que o deixara de ser, a Tia Adriana continuava lutando, cozinhando, vendo os tempos a mudar. Tantos que tinham partido… Lembrava-se de quase todos, fixava-lhes os títeres com que o povo os batizara e que, muito mais do que os nomes de madrinhas, os definia e identificava. Nunca esquecera o Bacalhau, alto e seco como o dito, que partira para os filhos, para essa Lisboa que ela nunca conhecera; nem o boca torta, funcionário da justiça, carregando nos ombros curvados o peso das leis que o dr. Juiz sempre iludia.
Ah… se ela fosse a contar o que vira, o que vivera e o que assistira… Mas calava-se. Falar para quê? Nada mudaria mesmo e, isso a universidade da vida lhe ensinara, os homens por dentro são todos iguais, todos feitos da mesma parra e, bem ao contrário do vinho que alegremente servia, o mosto não se transformava em coisas muito longe de ruins. Com ela, sempre fora assim. Tinha começado na vida dura bem cachopa, sete anos e já dobrava os enormes lençóis da Casa Grande. Depois, passara a criada de dentro, e daí a cozinheira. Casara, tivera um filho, vira morrer o marido a tossir-lhe no colo e ali continuava. Tantas histórias… a da praça, por exemplo, que de um dia para o outro vira mudado o nome sem que nem uma folha do velho plátano mexesse. Fácil, isso de mudar os nomes às coisas. A taberna onde o marido servia vinho, bagaço para aquecer os trabalhadores a todas as horas, ganhara também novo nome, depois de vendida ao menino velho da Casa Grande. Esse, voltara. A Casa, depois de esquecida e abandonada, fora recuperada, era agora uma espécie de hotel, e o movimento fazia-se nos fins-de-semana, nas férias também.
O menino velho pedira-lhe para ficar cozinhando, e ela aceitara porque nada mais tinha para fazer. Gostava do cheiro da madrugada, do cantar do galo agora baralhado com a troca das horas (mania a dos homens de mandarem em tudo), do vinho novo que os novos fregueses experimentavam, conhecedores, deixando-o brilhar à luz do candeeiro moderno de que ela não gostava. Era a sua vida, o vinho. Da colheita, ao mosto, do engarrafar ao vender. Era, afinal, a vida que ela doara, inteira, ao Alentejo imenso onde nascera e onde, um dia, a morte a beberia na voracidade do Tempo!
Já não eram sempre os mesmos, mas eram ainda e sempre iguais.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

PALAVRAS

Gosto de palavras. E oiço Eugénio de Andrade "Há palavras que nos beijam(...)" há palavras que nos mimam, há palavras que nos agridem, acrescento. E são as palavras que nos fazem! Cada pessoa, na sua fantástica individualidade, tem forma de falar que lhe confere identidade. Acho eu! Há pessoas que privilegiam o calão, há as que usam muletas, há as que optam por discursos obesos, cheiinhos de palavras redondas e sem significado de força.
Muitos políticos são exímios em palavras obesas. Constroem discursos redondos, privilegiam a sonoridade em detrimento do conteúdo. Há, e isto incomoda-me, jovens que reproduzem o modelo do discurso redondo convictos de que, se o fizerem gritando, ganham razão... 
Às vezes, acho que deviamos salvar as palavras dos que as usam sem sentido, dos que, como diz Sophia, as prostituem pelas ruas.
Eu gosto tanto de palavras! E tenho tanta pena de as ver mordidas de raiva, enroladas em des-sentidos!

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

CONTÁGIO

Há meninas e meninos, crianças e adolescentes que, em Portugal, vão à escola. A escola é obrigatória até aos 18 anos, ou até à conclusão do 12º ano. E os meninos, e as meninas, vão à escola. E ouvem os professores, mesmo sem perceberem muito bem o que dizem. 
Há meninos e meninas de muitas cores, de muitas religiões, com muitas histórias diferentes ouvidas antes de nascerem.  Alguns sonham, sentados nas cadeiras incómodas, com  terras quentes e vermelhas, outros com as mornas cantadas à noite, outros tremem quando a porta bate, com medo que haja mais tiros, que a manhã se faça de mais funerais. Há muitas crianças na Escola Portuguesa. Neste universo de diferenças, há professores. Uns aborrecidos porque não lhes contam os anos todos de serviço, outros zangados porque os meninos não são todos iguais, outros mal dispostos porque o computador não funciona, outros com vontade de fazer alguma coisa com sentido. E a campainha toca de espaços a espaços, estridente, tornando imensa a fila para poder comer alguma coisa que, se não ilude o tempo, pelo menos distrai o estômago. 
Na sala de professores, cruzam-se diferenças. Vale a pena tentar fazer de outro modo, afinal a escola deve mesmo ser para todos, deve eliminar o determinismo social; não adianta mudar nada, aprender é igual sempre, os meninos e as meninas têm é de ouvir e estudar, nem todos vão concluir os doze anos de escola, sempre foi assim; eu não vou mudar nada, não me pagam para isso e há trinta anos que faço assim; afinal, foi com o ensino tradicional que o homem foi à lua...
Os meninos e as meninas passam no corredor. E o corredor enche-se de sonhos desfeitos. 
Ou não... 
Porque, de repente, do lado de lá do vidro, podem ver-se miúdos a circular por grupos, a experimentar escrever um conto, a muitas mãos, onde Luís de Camões dialoga com a mãe contando coisas da Índia distante. E há dois professores na sala, um deles num grupo, o outro a fazer uma pesquisa com três alunos - Afinal, a canela é, ou não, afrodisíaca? E há um menino que ensina, noutro grupo, a fazer um doce de canela e gengibre, receita da avó negra que veio do Brasil
Um dia, a Escola vai mesmo ser para todos os meninos e para todas as meninas. Porque a transformação já começou e há, felizmente, práticas que contagiam!

BOLSONARO

Compreendo que Bolsonaro tenha vencido as eleições no Brasil. Um povo cansado da injustiça, da corrupção, da miséria, das arbitrariedades, escolhe o que acredita ser uma possibilidade de mudança. É legítimo preferir a força ao caos. É compreensível que se escolha o medo, face à violência nas ruas.
Oiço o mundo a indignar-se e compreendo, também, a revolta dos ditos países desenvolvidos. São, muitas vezes, esses países ditos desenvolvidos que recusam os refugiados, que defendem a pena de morte.... 
Todos os regimes de força e medo, de perseguição e fome, deviam ser extintos. A Venezuela devia ter direito à dignidade humana, o Brasil devia ser uma democracia plena, em Portugal a justiça devia funcionar, os terroristas deviam estar detidos, as mulheres não deviam ser discriminadas, as crianças não deviam ser vendidas e escravizadas, as minorias deviam ser respeitadas. Mas o mundo faz-se de barbaridades, que ignoramos à velocidade de um delete, e, por isso, parece-me um pouco exagerada esta reacção contra Bolsonaro. Se tivesse vencido o PT de Lula, fosse com que nome  de cabeça de lista fosse, seria a salvação do enorme Brasil? Não acredito... 
O Brasil, digo eu que não percebo nada de política, mereceria um olhar sério, colaborativo, dos países desenvolvidos. Mas onde estão esses países? É a Alemanha? É a Inglaterra? É a França? São os Estados Unidos? Não me parece... Cada um destes países vive absorto nos seus graves problemas. E eu, que sou professora, não acredito em soluções oferecidas, ou impostas, a a outros. 
O Brasil, como tantos outros países, precisa da pedagogia da democracia. Precisa de aprender a respeitar diferenças, precisa de desenvolver a consciência da individualidade. Como Churchill dizia "Eu gosto de aprender, mas não gosto que me ensinem"! assim acontece com a democracia: - Aprende-se, mas não se ensina!
Que o Mundo deixe o Brasil fazer o seu caminho. Deixemos a democracia funcionar porque, afinal, as eleições no Brasil foram livres...

terça-feira, 23 de outubro de 2018

EXAGERO

Não sei de onde vem. Talvez, afinal, não venha de lado nenhum, não haja causa num efeito que, inegavelmente, se faz sentir. Chega sem aviso, instala-se de mansinho e deixa-me com um desejo absurdo de sofrer. Mas eu não sou Cesário, não sou poeta. 
Sou mulher. E ser mulher é, não tenho nenhuma dúvida e apesar do politicamente correcto, ter características particulares. A minha especialidade, aquilo em que eu cruelmente sou boa, é em sentir! 
Sinto tudo de forma exacerbada e, em mim, o coração não gira a entreter a razão. Sinto a urgência da transformação do mundo, sinto a revolta perante a injustiça violenta face às mortes nesse mar que se tornou cemitério de sonhos, sinto a mágoa do ódio pequenino, tecido de inveja e maldade, sinto a solidão que a noite insiste em encompridar de forma dolorosa, sinto a saudade intensa de ausências sempre presentes, sinto a mágoa da impossibilidade de dizer da minha confiança na possibilidade real de construção de um mundo diferente.
Ah! Não sei de onde vem. Não sei como chegou, sem aviso, este absurdo desejo de encostar a cabeça, fechar os olhos e acreditar que sim. Que tudo vai correr bem...

domingo, 21 de outubro de 2018

CONFIANÇA

Os CFAE, para quem não está muito familiarizado com a sigla, são os Centros de Formação de Associação de Escolas. Existindo há já 25 anos, têm vindo, ao longo do tempo, a tornar-se uma estrutura de apoio fundamental às escolas e à educação. No CFAE encontra-se formação, esclarecem-se dúvidas, constroem-se bases de dados que permitem faer uma radiografia real de muitos aspectos das escolas associadas e, sobretudo, pensa-se a Educação. No CFAE a que pertenço, o CEFOPNA, há ainda uma revista online, http://cefopna.edu.pt/revista/, onde, desde 2010, se discute a Educação, se confrontam ideias, se mostra o que as escolas associadas entendem dever mostrar. Para mim, os CFAE são espaços de liberdade!
Com as transformações que, nos últimos dois anos, têm (finalmente) sido propostas às escolas, os CFAE viram o trabalho aumentar mas, ainda assim, não baixaram os braços.
No último fim-de-semana, participei no XIV Congresso dos CFAE, em Santo Tirso. O que eu ouvi de novas possibilidades de sentidos para a escola!! 
Foram dois dias intensos, mas, para mim, ricos de informação de muita qualidade. Destaco, de tantas e tão boas comunicações, a intervenção da Professora Ariana Cosme. Confesso que tinha altas expectativas, mas foram superadas. Ouvi-a e emocionei-me.
Não vou desistir, enquanto puder pensar e agir, de ajudar a transformar a Escola Pública Portuguesa no espaço de aprendizagem em liberdade e de liberdade que Ariana Cosme defende. E, é bem verdade, a Síria , África, a Venezuela, estão logo ali. Perto de nós. A exigir uma reação que só terá efeito se a actual geração for educada para a prática da Humanidade!
Tenho andado desiludida, com vontade de me render. Este Congresso injectou-me, mais do que esperança, confiança. 
Há-de acontecer a aprendizagem real, para todos, como todos!

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

ANIVERSÁRIO DA MINHA AMIGA

Defendo o valor da amizade. Aliás, eu não seria quem sou (para o bem e para o mal) se não tivesse os amigos que tenho... E de entre os bons amigos que tenho, felizmente poucos mas verdadeiros, há na minha existência uma amiga especial. Uma amiga tão especial que, se eu pudesse ter escolhido, seria minha irmã. 
Eramos miúdas quando nos conhecemos, no então ciclo preparatório, aproximando-nos por nenhum motivo especial, apenas pela ausência de razões, tornando-nos inseparáveis. Adolescentes, no tempo em que a vida provoca sentires e questiona razões, passávamos o dia juntas na escola e, depois, continuávamos juntas em casa um da outra, ou ao telefone. A mãe da minha amiga (saudades!) foi um apoio para mim. A minha mãe tinha outras preocupações e ali, comendo bolachas com um doce de tomate que nunca esqueço, sentia-me mimada e protegida.
Eu a minha amiga chegámos a partilhar namorados. Só para sabermos se valeriam a pena um investimento mais sério... As gripes e anginas, reais ou simuladas, permitiam-nos passar tardes no quarto, conversando e ouvindo música, sonhando coisas só nossas. 
Então, havia as festas de garagem. Tão boa a sensação de transgressão nos abraços mais ousados, o sabor dos primeiros beijos com os namorados que garantíamos eternos. A velha praceta acolhia as motas, as conversas de grupos onde nós, sempre as duas, tínhamos um casulo privado.
O tempo passou. Casámos, eu descasei, vieram as filhas e tornamos-nos comadres. Trocamos filhas e afilhadas, e a amizade continuou. Mesmo no silêncio, a certeza de que a outra está lá. Sempre onde faz falta e quando é precisa! 
Chegaram os netos e, entre risos e conversas mais sérias, a quatro mãos ajudamos a minha neta a fazer cocós. Era o que a nossa habilidade manual permitia... As conversas continuaram, os segredos, só nossos, continuam a existir. Só ela ralha comigo, só ela sabe como sofro às vezes, só ela adivinha, na minha voz, quando a tristeza bate forte. 
Hoje, esta minha Amiga mais que irmã faz anos. Eu vou estar longe, porque o trabalho obriga, mas é noite, tarde, e eu penso no fantástico privilégio que é ter esta amiga. Choro, agora, com saudades de ontem. Com essa certeza de, como diz Pessoa, ter sido feliz  outrora agora.
Parabéns, Mena!


quarta-feira, 17 de outubro de 2018

ARANHA

Há uma aranha que, com arte e persistência, tece a teia na minha janela. Eu, que não gosto de aranhas, desfaço a teia. E ela insiste. E eu desfaço. E ela faz de novo. E eu desfaço. Hoje, olhei para ela e estive quase a acabar-lhe com a teimosia, usando para isso o meu sapato. Mas, olhando melhor, não apliquei a pena.  
Fiquei a pensar na insistência, acéfala, de um bicho tão pequeno e, sem querer, pensei que eu, que tenho cérebro (acho...) desisto de tantas coisas com excessiva facilidade...
A teimosia é negativa, mas a persistência é necessária! 
Como a  aranha, eu devia continuar a tecer uma teia de possíveis, uma malha de apoio à realização das transformações que, para mim, são imprescindíveis e urgentes nas escolas. 
No entanto, ao contrário da aranha, apetece-me desistir. Estou muito farta de mãos alheias a desfazer as muitas tentativas de  construção de redes de mudança...

terça-feira, 16 de outubro de 2018

ESTE PAÍS QUE ME CHATEIA

Eu estou tão desiludida com o meu país! Onde está aquele espaço de aventureiros, de gente ousada mais que todas, de paisagens diversas e belas, de diversidade e harmonia? Onde estão as certezas de possíveis que, enquanto jovem, me venderam como certas? O que fizeram com a liberdade que anunciaram ter sido conquistada? Onde moram os poetas da diferença e da originalidade?
Este país, este Portugal de hoje, revolta-me, humilha-me, indigna-me, chateia-me! 
Não gosto de um país, que é o meu, onde as assimetrias não param de aumentar, onde se trabalha demais para se ter de menos, onde se pagam impostos sufocantes de potencial qualidade de vida. Não gosto deste país de arbitrariedades, que insiste em decidir o que entende dever ser bom para mim sem respeitar as minhas opções. Não gosto deste país de imitação, feito, cada vez mais, de ideias pré-concebidas, de normalizações do absurdo! 
Não gosto do meu país de mentirosos e vendedores de falsidade!
Ah! Eu queria um país livre! Um país que valorizasse a individualidade, que fomentasse a igualdade de oportunidades, que permitisse escolhas individuais e práticas de bem-estar e prazer.
O meu país é infeliz. 
O meu país faz-me infeliz! E eu não gosto de ser infeliz!  

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

SEXO E PODER??

A recente remodelação governamental já tardava. O Ministro da Defesa era um problema grave, os que o acompanharam figuras que provaram a sua incompetência. Outros há, com certeza... Mas, enfim, pelo menos houve alguma mexida nesta paz muito podre que se vive em Portugal. 
Pessoalmente, com a liberdade que me confere viver em democracia (às vezes aparente) não gosto deste governo, geringonça ou seja lá o que for, não confio em muitas das políticas adoptadas e não me revejo nas opções tomadas. Dói-me que se enganem as pessoas com 10 euros mensais, com anúncios de algo que, temo, teremos de pagar mais adiante de forma dolorosa. Custa-me ver que no meu país não se cria riqueza, não existem ideias novas e reformadoras e que, no geral, se vive de impostos directos e indirectos, de jogos e habilidades financeiras. 
Perdemos tudo: - O mar, onde os espanhóis pescam mais do que nós;  a agricultura, a viver de subsídios e sufocada por a UE; a saúde, com hospitais a colapsarem e pessoas a morrer nos corredores;...
Mas, hoje, há algo que me chateia, me indigna, mais ainda. Indigna-me que a opção sexual seja anunciada como determinante (ou não?) da capacidade intelectual de um indivíduo.  
Não questiono a opção de cada um. Mas não percebo por que razão se apresenta um ministro, ou ministra, frisando que é "assumidamente homossexual"! Nem sequer ouvi que dos outros se dissesse serem "assumidamente heterossexuais"! 
Nesta fobia do politicamente correcto, corremos o risco de entrar na intimidade de cada um e, depois, quando tivermos perdido de todo o direito à privacidade e à intimidade, vamos lamentar!
A senhora ministra é homossexual? O que me interessa isso? Azar o dela, apetece-me dizer!

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

SILÊNCIO

Não é nada verdade que o silêncio seja claro e elucidativo. O silêncio, acho eu que gosto de achar, é um mundo de palavras não ditas que pode, muitas vezes, impedir a solução de problemas, boicotar o esvaziamento de desentendimentos em potencial. 
O silêncio, mesmo quando se suporta na linguagem do olhar, induz em erro. Porque as interpretações são tantas...
Podemos calar-nos por desinteresse, por cobardia, por medo, por mágoa, por revolta, por ausência de palavras, ... 
O silêncio, que eu conheço tão bem e com o qual convivo diariamente, pode também ser uma forma de violência.
Eu sinto-o assim!
Muitas vezes, eu calo a revolta. Silencio a mágoa. Oculto a humilhação na ausência de palavras.
O silêncio, o meu pelo menos..., é especialista em não verbalizar o desinteresse, a certeza do já não vale a pena.
E, quando já não vale a pena, as palavras seriam um desperdício!

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

OUTONO

As primeiras chuvas, o primeiro acordar com o mundo envolto em nevoeiro, a primeira noite com édredon, sempre despertam na minha memória nostalgias diversas. Chega aquele  acordar desejado, perdido algures, nos braços de alguém, os corpos cruzados, a vontade de deixar crescer a preguiça temperada com café forte. Vêm, ainda encontrando-me descalça, os cheiros e cores do campo que, na mesa da cozinha, aguardam os meus esforços. São os marmelos, os dióspiros, as primeiras uvas, a presença da canela que juro não sei de onde salta nesta época.
Quando eu era miúda, quando foi isso?, em minha casa havia, nesta época,  marmelada a secar na varanda de vistas largas. Formava-se uma capinha fina, húmida, que eu adorava roubar com os dedos por lavar. Então, acho que ainda não tinham inventado as bactérias e as esterilizações e nós, mesmo com os dedos pouco limpos, lambíamos doces sem ficar doentes. Nesse tempo, a cozinha tinha sempre cores diferentes. Muitas vezes, muitas mesmo, eu achava que a vinha virgem desbotava para o interior da minha casa.
A minha casa também era um espaço mágico. Era um casulo. Um lugar onde ser feliz era mesmo uma possibilidade, e onde eu não suspeitava sequer de um qualquer futuro a haver... Então, eu não conhecia palavra fim e ninguém tinha arrancado, ainda, as últimas páginas dos meus livros de fadas.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

DIÁRIO

Guardava-o com mil cuidados, com chave, e escrevia nele os inconfessáveis, os indizíveis, os vazios, os silêncios, as ousadias e transgressões também. Um dia, perdi a chave. Perco tanta coisa... E resolvi, depois de arrombado, prendê-lo com um elástico. Segurança aparente, mas há tanta coisa aparente... 
Não deixava que ninguém lesse o meu diário. Era o meu eu comigo, a minha forma de me encontrar, de, por vezes, afastar os fantasmas corporizando-os nas palavras. Ali, naquelas páginas, havia um mundo-outro, tão meu, e por isso tão do mundo também.
O  meu diário vivia no fundo de uma gaveta. Saía sempre que eu precisava esvaziar sentires, procurar sentidos, ou, simplesmente, registar evidências. 
O meu diário existe ainda. Em vários volumes, em cadernos que me oferecem os muitos amigos que sabem que eu gosto da escrita. Muitos não têm chave, nem sequer elástico,  vivem à solta na minha casa e tornaram-se presenças no espaço que é só meu.
Às vezes, só às vezes, tenho pena que já não haja ninguém com curiosidade para espreitar o meu diário. Arrancando o elástico, ou folheando os cadernos. 

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

AS MALAS

Escolho sempre a mesma, embora tenha mais duas, igualmente pequenas, que vivem no fundo do meu roupeiro. A minha mala é verde, brilhante e já bastante suja dos maus tratos dos aviões. Mas, mesmo assim, a minha alma ganha vida quando a abro em cima da cama e começo, com cuidado, a dobrar a roupa para partir - Partir, perder países, ser outro constantemente! -  para ir ao encontro de outro espaço, de um outro cenário, de outros cheiros e sabores.
Hoje, a minha mala já está aberta e, com mil cautelas, tento que as boleimas que levo para os netos não se desfaçam entre as cuecas e as meias.Escolho roupa cómoda e gozo, por antecipação, o fresco que me vai acolher em terras de sua Majestade.
Embora vá com alguma frequência Inglaterra, não tantas como desejaria, cada viagem surge-me sempre com sabor a estreia. É cada vez melhor, para mim, partir. Sobretudo, partir com a possibilidade de voltar ao meu espaço, ao meu mundo  silencioso, almofadado pelas ausências que sempre estão presentes.