domingo, 2 de abril de 2023

CIRURGIA

 Vai correr tudo bem, garantem-me. Mas eu tenho medo. Vou ser internada, anestesiada, operada, voltarei (?) para casa de canadianas para uma longa, muito longa, recuperação. Tenho medo, sim. Medos, plural. Da dor, da intervenção, do espaço asséptico, da humilhação que a doença acarreta.

Quando a doença acontece, há, para mim tem havido, uma despersonalização que me dói . De repente, já não sou a Luísa, nem a professora Luísa, nem a mãe, nem a avó, nem a provedora. Sou a doente da cama X ou Y. Sou um corpo, apenas. E sofrerei calada, porque eu sou boa a ser calada.

Mas não concordo que seja assim. Às vezes, muitas vezes, penso que devia ser exactamente o contrário e que, num hospital, ou quando em situação de doença, o carinho e a humanidade deveriam ser práticas ainda mais constantes e intensas. Talvez os profissionais de saúde, com o hábito, se esqueçam que os corpos são habitados por pessoas, com toda a complexidade que ser Pessoa implica.

Sendo eu uma mulher de Fé, quero acreditar que tudo vai mesmo correr bem. Mas, se correr mal, deixo escrito que parto muito contrariada.

É Páscoa, e Páscoa significa passagem. Que seja passagem para melhores dias!

quinta-feira, 9 de março de 2023

Afinal, todos acabamos.

 Tenho saudades do meu Pai. Recordo histórias vividas por ele. 

“O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”. As palavras da avó Josefa, escritas por Saramago, apareciam escritas na linha do horizonte que olhava. Há quantos anos teria lido aquela carta a Josefa? Nem era grande admirador do Nobel, mas aquela frase ficara-lhe gravada e, agora, insistia em aparecer com excessiva frequência. Levantou o olhar. Era o seu chão, o seu Alentejo, a planície, o vento soão, e como soava às vezes, os verdes que, logo, logo, seriam amarelos. Gostava do seu chão. Sentia-lhe a falta quando, no ar, naqueles monstros que sempre o apavoravam, viajava para outros lugares. …. E eu tenho tanta pena de morrer. Josefa insistia. Estava velho, ele.

Quando era novo, com os cães, calcorreava a planície atrás das lebres orelhudas, das perdizes ligeiras, das rolas sonoras. Gostava da caça, da solidão das manhãs húmidas, cinzentas, do regresso ao fim do dia, de ver o sol partir.

Já tinha vivido muito, pisado muito chão, acumulado muitas histórias. Um dia, quantos anos teria?, tinham vindo arrancá-lo à cama, estava ferrado, depois de uma caçada. Tinham batido com força, a mulher acordara primeiro, dissera-lhe com um abraço, sempre o abraçava, tens de lá ir. E fora. Vida de médico era assim. Um tipo matava-se, uma mulher caía ou era derrubada, um gaiato caía da árvore, e lá vinha a guarda buscar o doutor,  buscá-lo a ele. Que fora então? Ah, um suicídio. Enforcado na trave do sótão, informou o guarda, cinto mal apertado, também ele, decerto, arrancado aos braços do sono, ou da mulher. Vestira-se num instante e lá fora. Estava muito frio, um frio que lhe chegava aos ossos e o fazia, mais ainda, desejar o regresso rápido para o conforto do corpo da mulher.

Os guardas eram de poucas palavras, o jipe seguia aos trambolhões chocalhando o desinteresse incómodo daquela morte. Que mania, a de suicidarem de noite, pensava.  Como se, mesmo mortos, fizessem questão de chatear os que ficavam. Uma travagem brusca arrancara-o aos pensamentos. A partir daqui o senhor doutor tem de ir na mula, o jipe não passa a ribeira, vai cheia. Na mula? Sim está ali o cunhado do morto, a gente acompanha o doutor a pé. Era ágil então e, num pulo, lá estava escarrapachado na animália. De cada um dos lados um guarda, era preciso a autoridade para provar a morte do morto. Um dos homens, mais pesado, barriga testemunha de boas amizades regadas com bom néctar, refilava. Que o gajo não merecia o incómodo, coitada da viúva, sete gaiatos a cargo e o cabrão, com licença do senhor doutor (toda!) , lá no céu descansadinho.

Agora, há luz de mais de cinquenta anos, achava graça. Então, não se lembrava de ter sorrido sequer. Quando chegaram ao Monte, o silêncio feria. A viúva, sentada junto ao lume, parecia aliviada, os garotos estavam junto dela, ao borralho. O guarda, cheio da autoridade que a farda, ou perímetro abdominal, lhe conferia, perguntou: - Onde está o seu marido? Lá em cima, pendurado, respondeu ela, sem tirar os olhos das brasas.  Talvez estivesse zangada com ele, ou com a vida. Devia ter razão.

O guarda impôs-se de novo. Eu vou à frente, o doutor segue-me. E em fila indiana, o guarda , eu, o cunhado e o outro guarda, lá começamos a subir os degraus íngremes que levavam ao sótão. Ao abrir a porta, uma rajada de vento forte entrou e o corpo, pendurado, caiu da trave. Ah que o morto está vivo! Ah que o gajo está vivo!

E a autoridade desceu a tal velocidade que todos íamos caindo na estreita escada.

Infelizmente, o morto estava morto, acontece. Passados os documentos, lá fiz de novo o percurso na mula, a manhã quase a romper e, quando entrei em casa, gelado na alma e no corpo, mergulhei confortado no corpo quente da minha mulher.

No dia seguinte, na casa de apoio à Igreja, uma espécie de sacristia alargada, lá estava o morto e lá se fez o funeral. 

Uns quinze dias mais tarde, o senhor prior chamou-me, estava eu a acabar o serviço na então Casa do Povo, para ir ao petisco da matança. Fui. Na mesma mesa onde vira o enforcado, estava agora um grande porco, esventrado, as mulheres zumbindo de volta dos alguidares, os homens assando umas presas no lume de chão. Não fui capaz de comer.

 

Hoje, velho, troço de mim mesmo. Homem, porco, todos acabamos da mesma maneira.

Estou velho, vi muita coisa, mas tenho muita pena de morrer.

É que o mundo é tão bonito!

sábado, 25 de fevereiro de 2023

MEDOS

 Nos programas de português, ao longo de diferentes anos, falamos muito de heróis. Vamos caracterizando cada herói de acordo com a sua acção, sempre inserida em Tempos específicos. 

Há o herói medieval, de lança e a cavalo, salvando donzelas, perseguindo assustadores mouros de pele escura; há o do renascimento, que enfrenta os mares, os horizontes anteriores a nós, os monstros e o escorbuto; vem também o amante das utopias, o romântico que persegue a liberdade, o amor absoluto; e ainda há o que resiste à sociedade, não cede à corrupção, procura a utopia. 

Todos os heróis enfrentam o medo. Porque o medo existe sempre, veste-se de muitas roupagens, mas sempre carrega sombras e desconhecimento. 

Eu tenho medo(s). Receio cada daqui a bocadinho, temo cada acordar, tremo perante muitos agoras, choro face a ameaças que não controlo. Quando os meus braços embalavam crianças, cantava para lhes afastar os papões, os maus que ameaçavam o sono. Hoje, falta-me essa música abraçada, essa palavra securizante.

Sim, tenho medo.

E não sou heroína, nem vivo num romance.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

GENTE

Talvez por ser professora de português, ou se calhar apenas porque gosto muito de palavras, sempre faço distinção entre gente e pessoas. As pessoas valem a pena. Justificam telefonemas, encontros, saídas, conversas. 

A gente incomoda, chateia, é enchimento desnecessário na minha vida. 

Infelizmente, ultimamente tenho tido de suportar muita gente. Gente reles, mesquinha. Gente que implica por tudo, e por coisa nenhuma também. Gente que acusa, que culpa, que vive de mente fechada à diferença de opiniões e às razões que lhe são externas.

Ah! Que saudades eu tenho de Pessoas! 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

ANIVERSÁRIO

Em minha casa, desde que tenho memória, os aniversários eram comemorados com grandes festas. O meu Pai gostava de ter a casa cheia, e nós gostávamos de nosso dia com muitos amigos, e familiares, à nossa volta. Havia, para as crianças, sempre duas festas: - A das crianças, de tarde, com bolos e mousse de chocolate; e a dos adultos, à noite, com a mesa posta na sala grande e os tios a mimarem-nos.

Depois, vieram os aniversários das minhas filhas. Festas e amigos. Nem sempre eu, mãe, estava feliz. Lembro-me de madrugadas choradas, a anteciparem o dia de sorrisos que as crianças exigiam.

Agora, é o tempo dos netos. Cabe aos pais fazerem as festas e eu, sempre que posso, estou presente para aproveitar a alegria, a ternura, os bons momentos deles. 

Hoje, a Constança faz dez anos. É uma miúda determinada, corajosa e inteligente. Sofre por causa de um divórcio feito de maldade, e eu sofro com ela.

Devia ser proibido sofrer-se antes dos 36 anos, mais ou menos...

Parabéns Constança!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

NATAL

 Já vivi 62 Natais. 

Não me lembro dos primeiros, acredito que estivesse quente, amada e alimentada. Mas lembro-me de muitos, imensos Natais. 

Como católica, o Natal é, para mim, uma época mesmo especial. Acredito na ideia da Renovação e gosto, mesmo muito, da possibilidade de metamorfose que se me oferece, que quase me é imposta. Queria poder voltar ao passado, ao tal que me esqueci de trazer roubado na algibeira, como o Poeta, mas, porque é impossível, resta-me a vontade de viver plenamente o presente.

Já aprendi, a vida ensinou-me, que não se morre de tristeza e, por isso, nada mais me resta do que vestir-me de alegria, agarrar a vida pelas orelhas, aceitar o inevitável, ter coragem para lutar pelo que é possível e muita inteligência para discernir a diferença. 

Hoje, 23 de Dezembro, tranco a sete-chaves os sentires, recordo que there's no use crying over spilt milk, tempero e recheio o peru, compro azevias já feitas, e coloco, logo à noite, mais um edredão na cama. (Só para não sentir a dor do frio da solidão.)

Que Seja Natal!

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

HIPOCRISIA

 Já sei porque razão não há um Nobel para o hipócrita do ano. Os candidatos são incontáveis! Hoje, assisti a um exercício claro de hipocrisia e espantei-me. Com que ligeireza, com que facilidade, se apregoa o que não se faz, se afirma o contrário do que acontece. E há quem aplauda! A sério, estou ainda a recuperar...