Tenho saudades do meu Pai. Recordo histórias vividas por ele.
“O mundo é tão bonito, e eu tenho
tanta pena de morrer”. As palavras da avó Josefa, escritas por Saramago,
apareciam escritas na linha do horizonte que olhava. Há quantos anos teria lido
aquela carta a Josefa? Nem era grande admirador do Nobel, mas aquela frase
ficara-lhe gravada e, agora, insistia em aparecer com excessiva frequência.
Levantou o olhar. Era o seu chão, o seu Alentejo, a planície, o vento soão, e
como soava às vezes, os verdes que, logo, logo, seriam amarelos. Gostava do seu
chão. Sentia-lhe a falta quando, no ar, naqueles monstros que sempre o
apavoravam, viajava para outros lugares. …. E eu tenho tanta pena de morrer.
Josefa insistia. Estava velho, ele.
Quando era novo, com os cães,
calcorreava a planície atrás das lebres orelhudas, das perdizes ligeiras, das
rolas sonoras. Gostava da caça, da solidão das manhãs húmidas, cinzentas, do
regresso ao fim do dia, de ver o sol partir.
Já tinha vivido muito, pisado
muito chão, acumulado muitas histórias. Um dia, quantos anos teria?, tinham
vindo arrancá-lo à cama, estava ferrado, depois de uma caçada. Tinham batido
com força, a mulher acordara primeiro, dissera-lhe com um abraço, sempre o
abraçava, tens de lá ir. E fora. Vida de médico era assim. Um tipo matava-se,
uma mulher caía ou era derrubada, um gaiato caía da árvore, e lá vinha a guarda
buscar o doutor, buscá-lo a ele. Que
fora então? Ah, um suicídio. Enforcado na trave do sótão, informou o guarda,
cinto mal apertado, também ele, decerto, arrancado aos braços do sono, ou da
mulher. Vestira-se num instante e lá fora. Estava muito frio, um frio que lhe
chegava aos ossos e o fazia, mais ainda, desejar o regresso rápido para o
conforto do corpo da mulher.
Os guardas eram de poucas
palavras, o jipe seguia aos trambolhões chocalhando o desinteresse incómodo daquela morte. Que mania, a de suicidarem de noite, pensava. Como se, mesmo mortos, fizessem questão de
chatear os que ficavam. Uma travagem brusca arrancara-o aos pensamentos. A
partir daqui o senhor doutor tem de ir na mula, o jipe não passa a ribeira, vai
cheia. Na mula? Sim está ali o cunhado do morto, a gente acompanha o doutor a
pé. Era ágil então e, num pulo, lá estava escarrapachado na animália. De cada
um dos lados um guarda, era preciso a autoridade para provar a morte do morto.
Um dos homens, mais pesado, barriga testemunha de boas amizades regadas com bom
néctar, refilava. Que o gajo não merecia o incómodo, coitada da viúva, sete
gaiatos a cargo e o cabrão, com licença do senhor doutor (toda!) , lá no céu
descansadinho.
Agora, há luz de mais de
cinquenta anos, achava graça. Então, não se lembrava de ter sorrido sequer.
Quando chegaram ao Monte, o silêncio feria. A viúva, sentada junto ao lume,
parecia aliviada, os garotos estavam junto dela, ao borralho. O guarda, cheio
da autoridade que a farda, ou perímetro abdominal, lhe conferia, perguntou: -
Onde está o seu marido? Lá em cima, pendurado, respondeu ela, sem tirar os
olhos das brasas. Talvez estivesse
zangada com ele, ou com a vida. Devia ter razão.
O guarda impôs-se de novo. Eu vou
à frente, o doutor segue-me. E em fila indiana, o guarda , eu, o cunhado e o
outro guarda, lá começamos a subir os degraus íngremes que levavam ao sótão. Ao
abrir a porta, uma rajada de vento forte entrou e o corpo, pendurado, caiu da
trave. Ah que o morto está vivo! Ah que o gajo está vivo!
E a autoridade desceu a tal
velocidade que todos íamos caindo na estreita escada.
Infelizmente, o morto estava
morto, acontece. Passados os documentos, lá fiz de novo o percurso na mula, a
manhã quase a romper e, quando entrei em casa, gelado na alma e no corpo,
mergulhei confortado no corpo quente da minha mulher.
No dia seguinte, na casa de apoio
à Igreja, uma espécie de sacristia alargada, lá estava o morto e lá se fez o
funeral.
Uns quinze dias mais tarde, o senhor
prior chamou-me, estava eu a acabar o serviço na então Casa do Povo, para ir ao
petisco da matança. Fui. Na mesma mesa onde vira o enforcado, estava agora um
grande porco, esventrado, as mulheres zumbindo de volta dos alguidares, os
homens assando umas presas no lume de chão. Não fui capaz de comer.
Hoje, velho, troço de mim mesmo.
Homem, porco, todos acabamos da mesma maneira.
Estou velho, vi muita coisa, mas
tenho muita pena de morrer.
É que o mundo é tão bonito!