sábado, 30 de janeiro de 2021

NEUTRO

 

Era um sofá moderno, cor neutra, como neutra é a realidade vintista, feita de achismos e indiferença, com parangonas a tentar, sem êxito, dar sentido ao vazio. Era pois neutro, o sofá. Comprido, convidativo e neutro. Há quanto estava ali o neutro? A quantas conversas, a quantas ousadias teria assistido, quantos rabos teria já acariciado? Ela tentava enxotar, qual mosca incómoda, os pensamentos sobre o neutro e sorria por dentro. Sim, pode sorrir-se por dentro, pensava, e pode brincar-se por dentro, mantendo aparência séria, cumprindo, pretensamente, o desempenho que a vida exigia. Porque estava ali?

Havia muitos anos que atravessava vida, somava perdas, perdia alegrias. Trazia na bagagem uma imensidão de desilusões e, quantas vezes?, de desistências  anunciadas. Mas seguia sempre.

Se lhe perguntassem se ainda acreditava na felicidade, garantiria que felicidade só conhecia a Dona, a que vendia as melhores hortaliças no mercado da sua cidade. Talvez, dizia, a existência fosse mesmo isto, uma operação de deve e haver, de débito e crédito, numa contabilidade complexa. Estava ali. E, incapaz de sacudir pensares e sentires, esforçava-se por ignorá-los. Estava ali, era livre, e não queria ser neutra. Não.

Queria, como o poeta, sentir tudo de todas as maneiras e, não desejando ir na vida como um automóvel último modelo, não queria ficar, à margem do rio, vendo a água passar.

Ele abraçou-a e sentaram-se. Um Porto? Preferiu um Gin. Há momentos, na vida, em que as bebidas doces pecam por excessiva inocência. Muito limão, pediu.

Dois copos gordos, redondos mesmo, deixavam dançar a casca do fruto amargo.

Dançamos? E o abraço surgiu total, absoluto, fazendo com que as almas acertassem no ritmo dos pés deslizantes. Bésa-me, bésa-me mucho, pedia Bocceli. E ela sorria, porque ris?, pensando que não precisava do pedido. Sentia o corpo forte, viril, a segurar o seu e deixava-se ir. Não pensava nada, sentia só. 

O Gin esperava, a quentura do abraço ritmada fazia-a recuperar a praia, as ondas do mar imenso, a intensidade do por do sol, a incessante busca, sem êxito, do ponto verde. Bocceli continuava e, agora, os dois eram uma clave.

O sofá era neutro. Só ele era neutro.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

CUCO

 O meu cuco veio da Alemanha. Veio embrulhado por partes, com mil cuidados, e, durante muito tempo, assim permaneceu. Não encontrava um lugar certo, perfeito, para ele. Acontece-me isto muitas vezes, pensar que as coisas fazem sentido no lugar onde pertencem, achando-as deslocadas quando tento realojá-las. Com o cuco, foi assim.

Depois, numa das muitas voltas da minha vida, surgiu uma parede que pedia algo. O cuco, pensei! E lá o coloquei, pêndulo e acessórios, na parede da sala. 

O cuco, talvez zangado por tanto tempo de abandono, não funcionava, e foi o querido Senhor Elói, tantas saudades, que com muito engenho e paciência lhe devolveu a vida. E o  cuco foi-se impondo. Indiferente a alguns protestos, oh mãe o cuco faz imenso barulho de noite, oh avó faz lá o cuco sair, ele foi cumprindo o seu papel. Certinho, fazendo jus às origens alemãs, vinha cá fora anunciar as horas, as meias-horas também.

Eu habituei-me à companhia do cuco. Afinal, já me habituei a coisas bem piores.

Ora, há uns dias, o meu cuco resolveu atrasar o tempo, arrastar as horas, encompridar os minutos. Começa certinho e, aos poucos, vai preguiçando, preguiçando, de tal modo que, ao fim da noite, já ganhou meia hora ao dia! Como, infelizmente, já não posso pedir ajuda ao Senhor Elói, tenho andado a pensar como resolver este atraso do meu cuco. 
Hoje, acordei com uma ideia: - Não vou acertar o cuco, vou aderir a este arrastamento voluntário do tempo, a ver se ganho mais paz e tranquilidade na minha existência de não cuca!

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

INSULTOS?

 

A agitação começava de véspera. Era preciso verificar se havia cartuchos, preparar as armas, pensar na merenda, ensebar as botas, preparar as cartucheiras. Depois, noite ainda, os homens tomavam um pequeno-almoço e saiam.

Era dia de caça. O ar ganhava uma cor diferente, o entusiasmo do meu irmão era contagiante e o meu pai, sempre péssimo a cumprir horários, ouvia-o a reclamar. Eles saiam e, muitas vezes, eu, ainda na cama, ficava a imaginá-los nos campos, atrás das perdizes e das lebres, camuflados pelo nevoeiro da manhã, silenciando os passos nos terrenos amolecidos, caminhando num mundo tão natural, tão autêntico, tão, até, inicial.

Ficavam fora todo o dia e, ao anoitecer, voltavam com os cães de língua de fora, cartucheiras vazias, peças que dariam refeições bem boas, e muitas histórias para contar. Falavam de marouços, de batedores e de aguardos, de grades e falhanços. Eu ouvia-os e, sendo como sou feita de silêncios, imaginava as vivências da caça, espantava-me com o carinho e a emoção dos relatos. Li Torga, guardei para mim passagens inteiras do Conto O Caçador, que ainda hoje sei de cor, e fui ganhando, talvez por herança ou educação, uma paixão enorme pela caça.

Hoje, não tendo meu Pai, vejo a euforia da caça nas vivências dos meus sobrinhos, do meu irmão sempre, e continuo a encantar-me a emocionar-me. Às vezes, tenho saudades de ouvir um tiro de uma espingarda de dois canos. A caça é, para mim, como para Torga, um desporto de harmonia entre o homem e a natureza, um reencontro com a Natureza primordial.

Com onze anos, comecei a montar a cavalo. Como eu me sentia realizada, feliz e plena, quando, em Monforte, cavalgava as férias. Aprendi, ali, a força da amizade, o respeito pelos animais, as regras de convivência entre homens e bichos. Nunca me ensinaram a maltratar, a falhar, a desleixar-me, fosse com a montada, fosse comigo.

Hoje, com tantas perdas acumuladas, penso sempre que esses foram os meus tempos de verdadeira felicidade.

Com o meu pai, fui muitas vezes a touradas e gostava muitíssimo! Conheci gente ligada aos toiros, só gente muito boa, conheci quem gostasse de cavalos, touradas, caça, e nunca, neste ambiente, encontrei ódio, maldade ou crueldade. Bem pelo contrário! Gente pura, autêntica, que valoriza a Terra, a amizade, a essência das coisas.

Hoje, depois dos resultados eleitorais, alguém me dizia que quem votou em AV é gente da caça e das touradas! Como é preconceituoso, ignorante e cruel este comentário. Como se pode acusar Torga de cruel?

O meu Pai era médico, excelente pessoa, amigo do seu amigo, humanista, sempre disponível a ajudar o próximo e gostava de caça e de touradas. Eu não sou ignorante, leio, oiço, vejo, penso, e gosto de poesia, da caça e das touradas. Como pode haver quem queira proibir tudo, quem condene os que ousam pensar ou sentir diferente? Quem se julgam aqueles que me chamam ignorante e cruel? Que direito tem alguma esquerda pseudointelectual de me apelidar de selvagem e bronca??

Não, quem votou AV não o fez por gostar de caçadas e de touradas.

Fê-lo por estar descrente deste país que não permite o sonho, que condena a autenticidade, que quer cidadãos formatados a um modelo de sociedade cheio de vazio. Fê-lo por se sentir violentado no que é a sua essência. Fê-lo por não querer mais pactuar com uma classe política balofa de aparência, sem um projeto sério para o país. Fê-lo porque tem medo, como eu tenho, de um dia acordar e já não poder ser eu!

PREOCUPAÇÃO

 Dormi mal, preocupada e triste com o rumo que o meu país leva. Não, não tenho vergonha, nem estou zangada, com o meu distrito, ou com o meu Alentejo. Este é o meu chão, conheço as pessoas, orgulho-me muito de fazer parte desta comunidade onde o sol encomprida as tarde e majestosos sobreiros ponteiam os campos. Somos gente boa!

O que me entristece, profundamente, é o que, a meus olhos, parece cegueira coletiva.
Porque é que Ventura colhe tantos votos por aqui? Porque nós, alentejanos, estamos cansados de ser ignorados, porque sentimos que o 25 de Abril nos esqueceu, porque o envelhecimento cresce, porque não há trabalho, porque nem sequer temos representação, digna do nome, na Assembleia da Republica.
O Alentejo indignado deu um grito de revolta. E eu, que não votei e nunca votaria AV, compreendo.
Não acredito, sinceramente, que esta votação signifique algo mais do que revolta e mágoa.
Vergonha tenho, e muita, quando penso que apenas cerca de 1/4 dos portugueses votou em Marcelo, como eu fiz. Vergonha porque a abstenção, que os comentadores dizem ser de "apenas" 60%, denuncia um povo desinteressado, sem consciência cívica, sem interesse por aquilo que a todos diz respeito.
Eu era miúda quando aconteceu o 25 de Abril, não tenho memórias reais da ditadura, mas aprendi, na literatura e na vida, que a Liberdade é um Valor essencial. E ser Livre é votar, é pensar no quotidiano de todos, é escolher em consciência.

Penso, sincera e tristemente, que estas eleições presidenciais deviam obrigar os atores políticos a, se fossem capazes, repensarem o seu desempenho. Portugal merece bem melhor!

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

INDECISÃO

 Vão fechar as escolas, passaremos ao regime não presencial. Não! As escolas vão continuar abertas, o governo não deixa fechar. Afinal, vão fechar, há já muitas turmas em casa. Não, parece que é para continuar abertos. Vai mesmo fechar, Campo Maior e Monforte já estão em regime de aprendizagem à distância. Não! Parece que não têm autonomia para tomar essa decisão, afinal parece que abrem as escolas mas os alunos não vão...

É mais ou menos assim que jovens, professores e famílias, estão a viver cada dia, cada hora. 

Instabilidade, angústia, a associar-se aos problemas de saúde, ao desemprego, à ansiedade que marca o quotidiano de cada um de nós. 

Neste momento, e depois de ter já defendido que as escolas deviam, até Março, encerrar portas e desenvolver aprendizagens à distância, já só queria que houvesse uma decisão a sério, que pudesse adormecer e acordar sabendo com o que, pelo menos profissionalmente, conto. Sinto que vivemos à deriva, que não há ninguém ao leme do navio chamado Portugal, nesta terrível tempestade que atravessamos. 

Como dizia Fernando Pessoa

"(...) tudo é incerto e derradeiro

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro".

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

INCOERÊNCIA

 Trago os ouvidos cheios de morte, de sofrimento e dor. Trago a alma encolhida, de medo, desconfiança e tristeza. 

Os números de infectados e mortes não páram de crescer, e as medidas anunciadas parecem-me claramente deficientes e desajustadas. 

É no salão de cabeleireiro, que funciona por marcação, uma ou duas pessoas em simultâneo, máscaras e higienização, que os contágios acontecem? É no comércio local, com porta para a rua, onde entra um cliente de cada vez, com máscara e higienização, que nos contaminamos? É nos restaurantes, onde a higiene é rigorosa e o distanciamento praticado, que tudo se complica? 

E não há risco nas escolas, onde trinta a trinta e duas pessoas convivem sem distanciamento? Não são um perigo os transportes públicos, onde partilham espaço cem pessoas ou mais? E não há contágio à porta das escolas, onde se aglomeram dezenas de pais que vão levar e buscar as crianças?

Claro que não sou especialista, mas penso, e basta pensar para compreender as incoerências deste confinamento assim-assim. Dizem que noutros países também há confinamento, e é verdade. Mas confinamento: - Escolas a funcionar à distância, TODA a gente em casa. Aqui, no meu país que adoro, é sempre um remendo, uma coisa assim-assim, mais ou menos, que não prejudique os maiores, mas sufoque os mais pequenos. Quanta injustiça!

Sou professora e prefiro as aulas presenciais. Gosto de olhar os meus alunos ao vivo, gosto de poder estar junto deles. Mas, neste momento, e com tantas ferramentas para apoiar o trabalho à distância, não compreendo porque não se fecham as escolas.

Enfim, resta-me fazer a minha parte, cumprir o que posso e como posso, e rezar. Rezar muito!

domingo, 10 de janeiro de 2021

HIGIENE DA ALMA?

Aproveitando o domingo, com tempo para mim, vesti um casaco forte e fui caminhar. O telemóvel avisou que estariam entre zero e cinco graus, mas eu, que gosto de frio, não liguei nenhuma. De luvas e cachecol, botas e casaco, fiz-me ao caminho. São passos que dou com gosto, no chão a que chamo meu, olhando, e surpreendendo-me sempre, com a beleza do espaço, a curiosidade dos cães, a agilidade dos rebanhos de cabras com que me cruzo. 
Caminho pensando. Em quê? Em tudo, e em nada. Embaraço o pensar no sentir, e deixo-me levar por aí.
Quando regressei, quinze mil passos e quase duas horas depois, acendi a lareira e, sem porquê, chorei.

Dizem que chorar faz bem, que lava a alma. Mas, talvez porque a minha alma não esteja suja, hoje não me fez bem e vestiu-me de funda tristeza. 
Eu, que sempre disse que não quero ser animal de companhia, às vezes sinto que me sobra solidão.



 

INSULTO?

Tenho, em relação à política, uma mistura de pensares. Racionalmente, compreendo que é impossível vivermos em sociedade sem ação política, sem organização e ordem. Compreendo que devemos lutar pelo modelo de sociedade que preferimos e que, se queremos mesmo uma sociedade melhor e diferente, não podemos alhear-nos do quotidiano social e político. 

Emocionalmente, a maior parte das vezes acho que os políticos, todos de uma forma geral e os portugueses da forma particular, não são verdadeiros, não são competentes e só prejudicam. 

Neste confronto entre pensar e sentir, obrigo-me a impor a razão. E, porque, como dizia Sophia de Mello Breyner "Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar", eu não ignoro e faço escolhas, envolvo-me, participo. 

Sempre fui Humanista e, por isso mesmo, sempre me posicionei, no espectro político, na área da Direita social. Para mim, cada Pessoa é o primeiro valor. 

Assim, movida por ideais de cidadania liberal, humanista, faço opções e participo, como posso (e como me deixam), na vida da comunidade.

Ora, ontem à noite, alguém de quem MUITO gosto, o meu irmão muito querido, por eu ter dito que votarei em Marcelo Rebelo de Sousa para a Presidência da República, chamou-me "intelectual de esquerda"! Foi, para mim, mais ofensivo do que se me tivesse chamado um palavrão vernáculo. Em primeiro lugar, porque não quero ser intelectual, em segundo porque abomino a esquerda.

Para mim, as esquerdas, todas, não se libertaram, nem libertarão,  das amarras estalinistas que eu repudio! As esquerdas perseguem a individualidade, combatem o direito à iniciativa privada, são, para mim, abjeções sociais. Não! Eu NÃO SOU de esquerda. 

E sim, vou votar Marcelo. Porque o meu país não é uma brincadeira, porque só Marcelo tem cultura e educação, porque só ele (errando com certeza muitas vezes) sabe o  que é uma sociedade humanista. Votar em Ana Gomes é apoiar uma esquerda que já mostrou do que é capaz, votar Ventura é abrir a porta à falta de liberdade, votar Marisa é ser pretensioso e vazio de projeto, e votar em qualquer um dos outros candidatos é brincar com coisas tão sérias como o dia-a-dia de cada um dos portugueses.

Doeu-me a ofensa. Mas sigo firme nas minhas convicções e sim, vou votar em Marcelo!


quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

PRIVILÉGIOS

 Eu penso que sou uma privilegiada dos afectos. Tive uns pais que privilegiaram os Valores e a educação, tenho duas filhas que são um privilégio de ternura e carinho, e sou professora. 

Sim, ser professora é uma profissão quase sempre cheia de privilégios. E não é o vencimento (curto e ofensivo), as condições de trabalho (absurdas), as chefias (ridículas muitas vezes), que tornam especial esta profissão. Não, o que faz com que o professor seja um ser privilegiado, é a possibilidade de criar laços com gente jovem e de ajudar a construir futuros. É a possibilidade de inscrever no coração olhares que fazem sentido.

Hoje, com a máscara quase a esconder os olhos lindos que tem, a Sofia chegou com um presente para mim. Quando lhe disse que o melhor presente é poder estar com ela umas horas na semana, quase se desculpou pelo que trazia, dizendo: - Foi por ser Natal! 

A Sofia trouxe-me uma caixa com bolachinhas, deliciosas (já comi uma dúzia) feitas por ela. 

Eu não tenho forma de agradecer suficientemente a todos os alunos, e ex-alunos, que adoçaram e adoçam a minha existência. São tantos!! Mas, mesmo em silêncio, agradeço o privilégio de ser professora e a capacidade que tenho de amar os meus alunos (quase todos)!


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Dia de Reis

Hoje, é Dia de Reis. Gosto desta metáfora da descoberta de Jesus. Gosto, também, da tradição da romã, do bolo rei, do desmanchar do Presépio. Contudo, este ano resolvi deixar a sagrada Família do Presépio numa estante o ano todo. Para me lembrar que, como fizeram os Reis Magos, depois de descobrir Jesus há que escolher novos caminhos!