A agitação começava de véspera. Era
preciso verificar se havia cartuchos, preparar as armas, pensar na merenda,
ensebar as botas, preparar as cartucheiras. Depois, noite ainda, os homens
tomavam um pequeno-almoço e saiam.
Era dia de caça. O ar ganhava uma
cor diferente, o entusiasmo do meu irmão era contagiante e o meu pai, sempre
péssimo a cumprir horários, ouvia-o a reclamar. Eles saiam e, muitas vezes, eu,
ainda na cama, ficava a imaginá-los nos campos, atrás das perdizes e das
lebres, camuflados pelo nevoeiro da manhã, silenciando os passos nos terrenos
amolecidos, caminhando num mundo tão natural, tão autêntico, tão, até, inicial.
Ficavam fora todo o dia e, ao anoitecer,
voltavam com os cães de língua de fora, cartucheiras vazias, peças que dariam
refeições bem boas, e muitas histórias para contar. Falavam de marouços, de
batedores e de aguardos, de grades e falhanços. Eu ouvia-os e, sendo como sou
feita de silêncios, imaginava as vivências da caça, espantava-me com o carinho
e a emoção dos relatos. Li Torga, guardei para mim passagens inteiras do Conto O
Caçador, que ainda hoje sei de cor, e fui ganhando, talvez por herança ou
educação, uma paixão enorme pela caça.
Hoje, não tendo meu Pai, vejo a
euforia da caça nas vivências dos meus sobrinhos, do meu irmão sempre, e
continuo a encantar-me a emocionar-me. Às vezes, tenho saudades de ouvir um
tiro de uma espingarda de dois canos. A caça é, para mim, como para Torga, um
desporto de harmonia entre o homem e a natureza, um reencontro com a Natureza
primordial.
Com onze anos, comecei a montar a
cavalo. Como eu me sentia realizada, feliz e plena, quando, em Monforte, cavalgava
as férias. Aprendi, ali, a força da amizade, o respeito pelos animais, as
regras de convivência entre homens e bichos. Nunca me ensinaram a maltratar, a
falhar, a desleixar-me, fosse com a montada, fosse comigo.
Hoje, com tantas perdas
acumuladas, penso sempre que esses foram os meus tempos de verdadeira
felicidade.
Com o meu pai, fui muitas vezes a
touradas e gostava muitíssimo! Conheci gente ligada aos toiros, só gente muito
boa, conheci quem gostasse de cavalos, touradas, caça, e nunca, neste ambiente,
encontrei ódio, maldade ou crueldade. Bem pelo contrário! Gente pura,
autêntica, que valoriza a Terra, a amizade, a essência das coisas.
Hoje, depois dos resultados
eleitorais, alguém me dizia que quem votou em AV é gente da caça e das
touradas! Como é preconceituoso, ignorante e cruel este comentário. Como se
pode acusar Torga de cruel?
O meu Pai era médico, excelente
pessoa, amigo do seu amigo, humanista, sempre disponível a ajudar o próximo e
gostava de caça e de touradas. Eu não sou ignorante, leio, oiço, vejo, penso, e
gosto de poesia, da caça e das touradas. Como pode haver quem queira proibir
tudo, quem condene os que ousam pensar ou sentir diferente? Quem se julgam
aqueles que me chamam ignorante e cruel? Que direito tem alguma esquerda pseudointelectual
de me apelidar de selvagem e bronca??
Não, quem votou AV não o fez por
gostar de caçadas e de touradas.
Fê-lo por estar descrente deste
país que não permite o sonho, que condena a autenticidade, que quer cidadãos
formatados a um modelo de sociedade cheio de vazio. Fê-lo por se sentir
violentado no que é a sua essência. Fê-lo por não querer mais pactuar com uma
classe política balofa de aparência, sem um projeto sério para o país. Fê-lo
porque tem medo, como eu tenho, de um dia acordar e já não poder ser eu!
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