quarta-feira, 31 de outubro de 2018

SEMPRE IGUAIS


Já não eram sempre os mesmos. Entravam carregando vidas estrangeiras, presenças alheias, na velha taberna que, respondendo aos desafios, de chamava agora Casa de Petiscos. Já não se encostavam ao balcão queixando-se do calor excessivo, da chuva serôdia, do roubo dos intermediários. Agora, surpreendiam-se com os ovos machos, a que insistiam chamar ovos com tomate, e confundiam a farinheira com a linguiça perguntando, entre receosos e gulosos o que eram mesmo os papa-ratos.  Era ali, mesmo no centro da vila, ali no espaço a que a placa dera o nome da Revolução, Praça 25 de Abril, que todos se dirigiam para provar as maravilhas que saíam das mãos rugosas da Tia Adriana. Velha, com uma mala de vida onde guardava a morte do único filho lá longe, naquele Ultramar que o deixara de ser, a Tia Adriana continuava lutando, cozinhando, vendo os tempos a mudar. Tantos que tinham partido… Lembrava-se de quase todos, fixava-lhes os títeres com que o povo os batizara e que, muito mais do que os nomes de madrinhas, os definia e identificava. Nunca esquecera o Bacalhau, alto e seco como o dito, que partira para os filhos, para essa Lisboa que ela nunca conhecera; nem o boca torta, funcionário da justiça, carregando nos ombros curvados o peso das leis que o dr. Juiz sempre iludia.
Ah… se ela fosse a contar o que vira, o que vivera e o que assistira… Mas calava-se. Falar para quê? Nada mudaria mesmo e, isso a universidade da vida lhe ensinara, os homens por dentro são todos iguais, todos feitos da mesma parra e, bem ao contrário do vinho que alegremente servia, o mosto não se transformava em coisas muito longe de ruins. Com ela, sempre fora assim. Tinha começado na vida dura bem cachopa, sete anos e já dobrava os enormes lençóis da Casa Grande. Depois, passara a criada de dentro, e daí a cozinheira. Casara, tivera um filho, vira morrer o marido a tossir-lhe no colo e ali continuava. Tantas histórias… a da praça, por exemplo, que de um dia para o outro vira mudado o nome sem que nem uma folha do velho plátano mexesse. Fácil, isso de mudar os nomes às coisas. A taberna onde o marido servia vinho, bagaço para aquecer os trabalhadores a todas as horas, ganhara também novo nome, depois de vendida ao menino velho da Casa Grande. Esse, voltara. A Casa, depois de esquecida e abandonada, fora recuperada, era agora uma espécie de hotel, e o movimento fazia-se nos fins-de-semana, nas férias também.
O menino velho pedira-lhe para ficar cozinhando, e ela aceitara porque nada mais tinha para fazer. Gostava do cheiro da madrugada, do cantar do galo agora baralhado com a troca das horas (mania a dos homens de mandarem em tudo), do vinho novo que os novos fregueses experimentavam, conhecedores, deixando-o brilhar à luz do candeeiro moderno de que ela não gostava. Era a sua vida, o vinho. Da colheita, ao mosto, do engarrafar ao vender. Era, afinal, a vida que ela doara, inteira, ao Alentejo imenso onde nascera e onde, um dia, a morte a beberia na voracidade do Tempo!
Já não eram sempre os mesmos, mas eram ainda e sempre iguais.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

PALAVRAS

Gosto de palavras. E oiço Eugénio de Andrade "Há palavras que nos beijam(...)" há palavras que nos mimam, há palavras que nos agridem, acrescento. E são as palavras que nos fazem! Cada pessoa, na sua fantástica individualidade, tem forma de falar que lhe confere identidade. Acho eu! Há pessoas que privilegiam o calão, há as que usam muletas, há as que optam por discursos obesos, cheiinhos de palavras redondas e sem significado de força.
Muitos políticos são exímios em palavras obesas. Constroem discursos redondos, privilegiam a sonoridade em detrimento do conteúdo. Há, e isto incomoda-me, jovens que reproduzem o modelo do discurso redondo convictos de que, se o fizerem gritando, ganham razão... 
Às vezes, acho que deviamos salvar as palavras dos que as usam sem sentido, dos que, como diz Sophia, as prostituem pelas ruas.
Eu gosto tanto de palavras! E tenho tanta pena de as ver mordidas de raiva, enroladas em des-sentidos!

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

CONTÁGIO

Há meninas e meninos, crianças e adolescentes que, em Portugal, vão à escola. A escola é obrigatória até aos 18 anos, ou até à conclusão do 12º ano. E os meninos, e as meninas, vão à escola. E ouvem os professores, mesmo sem perceberem muito bem o que dizem. 
Há meninos e meninas de muitas cores, de muitas religiões, com muitas histórias diferentes ouvidas antes de nascerem.  Alguns sonham, sentados nas cadeiras incómodas, com  terras quentes e vermelhas, outros com as mornas cantadas à noite, outros tremem quando a porta bate, com medo que haja mais tiros, que a manhã se faça de mais funerais. Há muitas crianças na Escola Portuguesa. Neste universo de diferenças, há professores. Uns aborrecidos porque não lhes contam os anos todos de serviço, outros zangados porque os meninos não são todos iguais, outros mal dispostos porque o computador não funciona, outros com vontade de fazer alguma coisa com sentido. E a campainha toca de espaços a espaços, estridente, tornando imensa a fila para poder comer alguma coisa que, se não ilude o tempo, pelo menos distrai o estômago. 
Na sala de professores, cruzam-se diferenças. Vale a pena tentar fazer de outro modo, afinal a escola deve mesmo ser para todos, deve eliminar o determinismo social; não adianta mudar nada, aprender é igual sempre, os meninos e as meninas têm é de ouvir e estudar, nem todos vão concluir os doze anos de escola, sempre foi assim; eu não vou mudar nada, não me pagam para isso e há trinta anos que faço assim; afinal, foi com o ensino tradicional que o homem foi à lua...
Os meninos e as meninas passam no corredor. E o corredor enche-se de sonhos desfeitos. 
Ou não... 
Porque, de repente, do lado de lá do vidro, podem ver-se miúdos a circular por grupos, a experimentar escrever um conto, a muitas mãos, onde Luís de Camões dialoga com a mãe contando coisas da Índia distante. E há dois professores na sala, um deles num grupo, o outro a fazer uma pesquisa com três alunos - Afinal, a canela é, ou não, afrodisíaca? E há um menino que ensina, noutro grupo, a fazer um doce de canela e gengibre, receita da avó negra que veio do Brasil
Um dia, a Escola vai mesmo ser para todos os meninos e para todas as meninas. Porque a transformação já começou e há, felizmente, práticas que contagiam!

BOLSONARO

Compreendo que Bolsonaro tenha vencido as eleições no Brasil. Um povo cansado da injustiça, da corrupção, da miséria, das arbitrariedades, escolhe o que acredita ser uma possibilidade de mudança. É legítimo preferir a força ao caos. É compreensível que se escolha o medo, face à violência nas ruas.
Oiço o mundo a indignar-se e compreendo, também, a revolta dos ditos países desenvolvidos. São, muitas vezes, esses países ditos desenvolvidos que recusam os refugiados, que defendem a pena de morte.... 
Todos os regimes de força e medo, de perseguição e fome, deviam ser extintos. A Venezuela devia ter direito à dignidade humana, o Brasil devia ser uma democracia plena, em Portugal a justiça devia funcionar, os terroristas deviam estar detidos, as mulheres não deviam ser discriminadas, as crianças não deviam ser vendidas e escravizadas, as minorias deviam ser respeitadas. Mas o mundo faz-se de barbaridades, que ignoramos à velocidade de um delete, e, por isso, parece-me um pouco exagerada esta reacção contra Bolsonaro. Se tivesse vencido o PT de Lula, fosse com que nome  de cabeça de lista fosse, seria a salvação do enorme Brasil? Não acredito... 
O Brasil, digo eu que não percebo nada de política, mereceria um olhar sério, colaborativo, dos países desenvolvidos. Mas onde estão esses países? É a Alemanha? É a Inglaterra? É a França? São os Estados Unidos? Não me parece... Cada um destes países vive absorto nos seus graves problemas. E eu, que sou professora, não acredito em soluções oferecidas, ou impostas, a a outros. 
O Brasil, como tantos outros países, precisa da pedagogia da democracia. Precisa de aprender a respeitar diferenças, precisa de desenvolver a consciência da individualidade. Como Churchill dizia "Eu gosto de aprender, mas não gosto que me ensinem"! assim acontece com a democracia: - Aprende-se, mas não se ensina!
Que o Mundo deixe o Brasil fazer o seu caminho. Deixemos a democracia funcionar porque, afinal, as eleições no Brasil foram livres...

terça-feira, 23 de outubro de 2018

EXAGERO

Não sei de onde vem. Talvez, afinal, não venha de lado nenhum, não haja causa num efeito que, inegavelmente, se faz sentir. Chega sem aviso, instala-se de mansinho e deixa-me com um desejo absurdo de sofrer. Mas eu não sou Cesário, não sou poeta. 
Sou mulher. E ser mulher é, não tenho nenhuma dúvida e apesar do politicamente correcto, ter características particulares. A minha especialidade, aquilo em que eu cruelmente sou boa, é em sentir! 
Sinto tudo de forma exacerbada e, em mim, o coração não gira a entreter a razão. Sinto a urgência da transformação do mundo, sinto a revolta perante a injustiça violenta face às mortes nesse mar que se tornou cemitério de sonhos, sinto a mágoa do ódio pequenino, tecido de inveja e maldade, sinto a solidão que a noite insiste em encompridar de forma dolorosa, sinto a saudade intensa de ausências sempre presentes, sinto a mágoa da impossibilidade de dizer da minha confiança na possibilidade real de construção de um mundo diferente.
Ah! Não sei de onde vem. Não sei como chegou, sem aviso, este absurdo desejo de encostar a cabeça, fechar os olhos e acreditar que sim. Que tudo vai correr bem...

domingo, 21 de outubro de 2018

CONFIANÇA

Os CFAE, para quem não está muito familiarizado com a sigla, são os Centros de Formação de Associação de Escolas. Existindo há já 25 anos, têm vindo, ao longo do tempo, a tornar-se uma estrutura de apoio fundamental às escolas e à educação. No CFAE encontra-se formação, esclarecem-se dúvidas, constroem-se bases de dados que permitem faer uma radiografia real de muitos aspectos das escolas associadas e, sobretudo, pensa-se a Educação. No CFAE a que pertenço, o CEFOPNA, há ainda uma revista online, http://cefopna.edu.pt/revista/, onde, desde 2010, se discute a Educação, se confrontam ideias, se mostra o que as escolas associadas entendem dever mostrar. Para mim, os CFAE são espaços de liberdade!
Com as transformações que, nos últimos dois anos, têm (finalmente) sido propostas às escolas, os CFAE viram o trabalho aumentar mas, ainda assim, não baixaram os braços.
No último fim-de-semana, participei no XIV Congresso dos CFAE, em Santo Tirso. O que eu ouvi de novas possibilidades de sentidos para a escola!! 
Foram dois dias intensos, mas, para mim, ricos de informação de muita qualidade. Destaco, de tantas e tão boas comunicações, a intervenção da Professora Ariana Cosme. Confesso que tinha altas expectativas, mas foram superadas. Ouvi-a e emocionei-me.
Não vou desistir, enquanto puder pensar e agir, de ajudar a transformar a Escola Pública Portuguesa no espaço de aprendizagem em liberdade e de liberdade que Ariana Cosme defende. E, é bem verdade, a Síria , África, a Venezuela, estão logo ali. Perto de nós. A exigir uma reação que só terá efeito se a actual geração for educada para a prática da Humanidade!
Tenho andado desiludida, com vontade de me render. Este Congresso injectou-me, mais do que esperança, confiança. 
Há-de acontecer a aprendizagem real, para todos, como todos!

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

ANIVERSÁRIO DA MINHA AMIGA

Defendo o valor da amizade. Aliás, eu não seria quem sou (para o bem e para o mal) se não tivesse os amigos que tenho... E de entre os bons amigos que tenho, felizmente poucos mas verdadeiros, há na minha existência uma amiga especial. Uma amiga tão especial que, se eu pudesse ter escolhido, seria minha irmã. 
Eramos miúdas quando nos conhecemos, no então ciclo preparatório, aproximando-nos por nenhum motivo especial, apenas pela ausência de razões, tornando-nos inseparáveis. Adolescentes, no tempo em que a vida provoca sentires e questiona razões, passávamos o dia juntas na escola e, depois, continuávamos juntas em casa um da outra, ou ao telefone. A mãe da minha amiga (saudades!) foi um apoio para mim. A minha mãe tinha outras preocupações e ali, comendo bolachas com um doce de tomate que nunca esqueço, sentia-me mimada e protegida.
Eu a minha amiga chegámos a partilhar namorados. Só para sabermos se valeriam a pena um investimento mais sério... As gripes e anginas, reais ou simuladas, permitiam-nos passar tardes no quarto, conversando e ouvindo música, sonhando coisas só nossas. 
Então, havia as festas de garagem. Tão boa a sensação de transgressão nos abraços mais ousados, o sabor dos primeiros beijos com os namorados que garantíamos eternos. A velha praceta acolhia as motas, as conversas de grupos onde nós, sempre as duas, tínhamos um casulo privado.
O tempo passou. Casámos, eu descasei, vieram as filhas e tornamos-nos comadres. Trocamos filhas e afilhadas, e a amizade continuou. Mesmo no silêncio, a certeza de que a outra está lá. Sempre onde faz falta e quando é precisa! 
Chegaram os netos e, entre risos e conversas mais sérias, a quatro mãos ajudamos a minha neta a fazer cocós. Era o que a nossa habilidade manual permitia... As conversas continuaram, os segredos, só nossos, continuam a existir. Só ela ralha comigo, só ela sabe como sofro às vezes, só ela adivinha, na minha voz, quando a tristeza bate forte. 
Hoje, esta minha Amiga mais que irmã faz anos. Eu vou estar longe, porque o trabalho obriga, mas é noite, tarde, e eu penso no fantástico privilégio que é ter esta amiga. Choro, agora, com saudades de ontem. Com essa certeza de, como diz Pessoa, ter sido feliz  outrora agora.
Parabéns, Mena!


quarta-feira, 17 de outubro de 2018

ARANHA

Há uma aranha que, com arte e persistência, tece a teia na minha janela. Eu, que não gosto de aranhas, desfaço a teia. E ela insiste. E eu desfaço. E ela faz de novo. E eu desfaço. Hoje, olhei para ela e estive quase a acabar-lhe com a teimosia, usando para isso o meu sapato. Mas, olhando melhor, não apliquei a pena.  
Fiquei a pensar na insistência, acéfala, de um bicho tão pequeno e, sem querer, pensei que eu, que tenho cérebro (acho...) desisto de tantas coisas com excessiva facilidade...
A teimosia é negativa, mas a persistência é necessária! 
Como a  aranha, eu devia continuar a tecer uma teia de possíveis, uma malha de apoio à realização das transformações que, para mim, são imprescindíveis e urgentes nas escolas. 
No entanto, ao contrário da aranha, apetece-me desistir. Estou muito farta de mãos alheias a desfazer as muitas tentativas de  construção de redes de mudança...

terça-feira, 16 de outubro de 2018

ESTE PAÍS QUE ME CHATEIA

Eu estou tão desiludida com o meu país! Onde está aquele espaço de aventureiros, de gente ousada mais que todas, de paisagens diversas e belas, de diversidade e harmonia? Onde estão as certezas de possíveis que, enquanto jovem, me venderam como certas? O que fizeram com a liberdade que anunciaram ter sido conquistada? Onde moram os poetas da diferença e da originalidade?
Este país, este Portugal de hoje, revolta-me, humilha-me, indigna-me, chateia-me! 
Não gosto de um país, que é o meu, onde as assimetrias não param de aumentar, onde se trabalha demais para se ter de menos, onde se pagam impostos sufocantes de potencial qualidade de vida. Não gosto deste país de arbitrariedades, que insiste em decidir o que entende dever ser bom para mim sem respeitar as minhas opções. Não gosto deste país de imitação, feito, cada vez mais, de ideias pré-concebidas, de normalizações do absurdo! 
Não gosto do meu país de mentirosos e vendedores de falsidade!
Ah! Eu queria um país livre! Um país que valorizasse a individualidade, que fomentasse a igualdade de oportunidades, que permitisse escolhas individuais e práticas de bem-estar e prazer.
O meu país é infeliz. 
O meu país faz-me infeliz! E eu não gosto de ser infeliz!  

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

SEXO E PODER??

A recente remodelação governamental já tardava. O Ministro da Defesa era um problema grave, os que o acompanharam figuras que provaram a sua incompetência. Outros há, com certeza... Mas, enfim, pelo menos houve alguma mexida nesta paz muito podre que se vive em Portugal. 
Pessoalmente, com a liberdade que me confere viver em democracia (às vezes aparente) não gosto deste governo, geringonça ou seja lá o que for, não confio em muitas das políticas adoptadas e não me revejo nas opções tomadas. Dói-me que se enganem as pessoas com 10 euros mensais, com anúncios de algo que, temo, teremos de pagar mais adiante de forma dolorosa. Custa-me ver que no meu país não se cria riqueza, não existem ideias novas e reformadoras e que, no geral, se vive de impostos directos e indirectos, de jogos e habilidades financeiras. 
Perdemos tudo: - O mar, onde os espanhóis pescam mais do que nós;  a agricultura, a viver de subsídios e sufocada por a UE; a saúde, com hospitais a colapsarem e pessoas a morrer nos corredores;...
Mas, hoje, há algo que me chateia, me indigna, mais ainda. Indigna-me que a opção sexual seja anunciada como determinante (ou não?) da capacidade intelectual de um indivíduo.  
Não questiono a opção de cada um. Mas não percebo por que razão se apresenta um ministro, ou ministra, frisando que é "assumidamente homossexual"! Nem sequer ouvi que dos outros se dissesse serem "assumidamente heterossexuais"! 
Nesta fobia do politicamente correcto, corremos o risco de entrar na intimidade de cada um e, depois, quando tivermos perdido de todo o direito à privacidade e à intimidade, vamos lamentar!
A senhora ministra é homossexual? O que me interessa isso? Azar o dela, apetece-me dizer!

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

SILÊNCIO

Não é nada verdade que o silêncio seja claro e elucidativo. O silêncio, acho eu que gosto de achar, é um mundo de palavras não ditas que pode, muitas vezes, impedir a solução de problemas, boicotar o esvaziamento de desentendimentos em potencial. 
O silêncio, mesmo quando se suporta na linguagem do olhar, induz em erro. Porque as interpretações são tantas...
Podemos calar-nos por desinteresse, por cobardia, por medo, por mágoa, por revolta, por ausência de palavras, ... 
O silêncio, que eu conheço tão bem e com o qual convivo diariamente, pode também ser uma forma de violência.
Eu sinto-o assim!
Muitas vezes, eu calo a revolta. Silencio a mágoa. Oculto a humilhação na ausência de palavras.
O silêncio, o meu pelo menos..., é especialista em não verbalizar o desinteresse, a certeza do já não vale a pena.
E, quando já não vale a pena, as palavras seriam um desperdício!

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

OUTONO

As primeiras chuvas, o primeiro acordar com o mundo envolto em nevoeiro, a primeira noite com édredon, sempre despertam na minha memória nostalgias diversas. Chega aquele  acordar desejado, perdido algures, nos braços de alguém, os corpos cruzados, a vontade de deixar crescer a preguiça temperada com café forte. Vêm, ainda encontrando-me descalça, os cheiros e cores do campo que, na mesa da cozinha, aguardam os meus esforços. São os marmelos, os dióspiros, as primeiras uvas, a presença da canela que juro não sei de onde salta nesta época.
Quando eu era miúda, quando foi isso?, em minha casa havia, nesta época,  marmelada a secar na varanda de vistas largas. Formava-se uma capinha fina, húmida, que eu adorava roubar com os dedos por lavar. Então, acho que ainda não tinham inventado as bactérias e as esterilizações e nós, mesmo com os dedos pouco limpos, lambíamos doces sem ficar doentes. Nesse tempo, a cozinha tinha sempre cores diferentes. Muitas vezes, muitas mesmo, eu achava que a vinha virgem desbotava para o interior da minha casa.
A minha casa também era um espaço mágico. Era um casulo. Um lugar onde ser feliz era mesmo uma possibilidade, e onde eu não suspeitava sequer de um qualquer futuro a haver... Então, eu não conhecia palavra fim e ninguém tinha arrancado, ainda, as últimas páginas dos meus livros de fadas.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

DIÁRIO

Guardava-o com mil cuidados, com chave, e escrevia nele os inconfessáveis, os indizíveis, os vazios, os silêncios, as ousadias e transgressões também. Um dia, perdi a chave. Perco tanta coisa... E resolvi, depois de arrombado, prendê-lo com um elástico. Segurança aparente, mas há tanta coisa aparente... 
Não deixava que ninguém lesse o meu diário. Era o meu eu comigo, a minha forma de me encontrar, de, por vezes, afastar os fantasmas corporizando-os nas palavras. Ali, naquelas páginas, havia um mundo-outro, tão meu, e por isso tão do mundo também.
O  meu diário vivia no fundo de uma gaveta. Saía sempre que eu precisava esvaziar sentires, procurar sentidos, ou, simplesmente, registar evidências. 
O meu diário existe ainda. Em vários volumes, em cadernos que me oferecem os muitos amigos que sabem que eu gosto da escrita. Muitos não têm chave, nem sequer elástico,  vivem à solta na minha casa e tornaram-se presenças no espaço que é só meu.
Às vezes, só às vezes, tenho pena que já não haja ninguém com curiosidade para espreitar o meu diário. Arrancando o elástico, ou folheando os cadernos. 

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

AS MALAS

Escolho sempre a mesma, embora tenha mais duas, igualmente pequenas, que vivem no fundo do meu roupeiro. A minha mala é verde, brilhante e já bastante suja dos maus tratos dos aviões. Mas, mesmo assim, a minha alma ganha vida quando a abro em cima da cama e começo, com cuidado, a dobrar a roupa para partir - Partir, perder países, ser outro constantemente! -  para ir ao encontro de outro espaço, de um outro cenário, de outros cheiros e sabores.
Hoje, a minha mala já está aberta e, com mil cautelas, tento que as boleimas que levo para os netos não se desfaçam entre as cuecas e as meias.Escolho roupa cómoda e gozo, por antecipação, o fresco que me vai acolher em terras de sua Majestade.
Embora vá com alguma frequência Inglaterra, não tantas como desejaria, cada viagem surge-me sempre com sabor a estreia. É cada vez melhor, para mim, partir. Sobretudo, partir com a possibilidade de voltar ao meu espaço, ao meu mundo  silencioso, almofadado pelas ausências que sempre estão presentes.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

LÁGRIMAS INÚTEIS

Chorar lava a alma. Ajuda a diluir desgostos e, mesmo deixando os olhos a arder, a visão turva e as olheiras negras, dá algum sabor - salgado - às dores. 
Chora-se por muito e por pouco, pelo mal e pelo bem.
Eu choro de irritação, de saudade, de gozo, de desespero, de emoção, de riso, de surpresa, de ternura. Choro quente, e choro frio. Mordo as lágrimas que escaldam, limpo as que que me refrescam.
Eu choro. E eu sei que não há lágrimas inúteis...

APRENDER A DESISTIR

Como professora, e como mulher também, sei bem que a vida se faz de muitas aprendizagens, de muita capacidade de adaptação e reformulação.  Sei, no entanto, que também faz parte da vida, da existência, a desistência. Saber dizer chega, basta, é uma aprendizagem por vezes dolorosa. Porque implica desistir de algo, ou de alguém, de um sonho, de uma certeza convicta por vezes. Nesses momentos, em mim surge um conflito interno : - A bem da minha paz interior, sinto que chegou o momento de ignorar, de deixar andar; a bem da minha inteligência racional e emocional, social também, penso que devo continuar a lutar, a querer, a acreditar. Ao longo da minha já comprida vida, passei muitos momentos assim.
Agora, quando os cabelos brancos me deveriam já oferecer alguma tranquilidade, volto a sentir-me incapaz de desistir. 
E lá volto eu, de novo, à Educação... Estou sincera e verdadeiramente cansada das muitas manifestações que, na minha opinião sustentada em muitas leituras e muitas sessões de trabalho, são vazias de conteúdo. Estou cansada de ouvir bons profissionais contestarem a mudança, fingindo - só pode ser a fingir! - acreditar que o mundo está igual ao que era há vinte anos. Estou cansada de ver levantar impossíveis que mais não são, de certeza, que resistências individuais a fazer diferente.
Acredito nos Decretos gémeos, o 54 e o 55, defendo as competências enunciadas no documento Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória e tenho a certeza, tão certa como acreditar que o sol é uma estrela, que as crianças e os jovens portugueses merecem uma Escola diferente, aprendizagens mais efectivas, metodologias mais dinâmicas e colaborativas, uma avaliação que seja mesmo PARA as aprendizagens! 
Não tenho dúvidas que não é fácil mudar, mas tenho a certeza que é impossível não o fazer...
Se calhar, eu devia desistir (antes que muitos colegas me detestem mais ainda), mas não aprendi a desistir de convicções...

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

POR AMOR

É por amor que te olho 
É por amor que te quero
É por amor que te abraço
É por amor que me faltas
É por amor que te envolvo
É por amor que choro
É por amor que desespero.

É por amor que, nas noites longas, te odeio!