Já não eram sempre os mesmos.
Entravam carregando vidas estrangeiras, presenças alheias, na velha taberna
que, respondendo aos desafios, de chamava agora Casa de Petiscos. Já não se
encostavam ao balcão queixando-se do calor excessivo, da chuva serôdia, do
roubo dos intermediários. Agora, surpreendiam-se com os ovos machos, a que
insistiam chamar ovos com tomate, e confundiam a farinheira com a linguiça
perguntando, entre receosos e gulosos o que eram mesmo os papa-ratos. Era ali, mesmo no centro da vila, ali no
espaço a que a placa dera o nome da Revolução, Praça 25 de Abril, que todos se
dirigiam para provar as maravilhas que saíam das mãos rugosas da Tia Adriana.
Velha, com uma mala de vida onde guardava a morte do único filho lá longe,
naquele Ultramar que o deixara de ser, a Tia Adriana continuava lutando,
cozinhando, vendo os tempos a mudar. Tantos que tinham partido… Lembrava-se de
quase todos, fixava-lhes os títeres com que o povo os batizara e que, muito
mais do que os nomes de madrinhas, os definia e identificava. Nunca esquecera o
Bacalhau, alto e seco como o dito, que partira para os filhos, para essa Lisboa
que ela nunca conhecera; nem o boca torta, funcionário da justiça, carregando
nos ombros curvados o peso das leis que o dr. Juiz sempre iludia.
Ah… se ela fosse a contar o que
vira, o que vivera e o que assistira… Mas calava-se. Falar para quê? Nada
mudaria mesmo e, isso a universidade da vida lhe ensinara, os homens por dentro
são todos iguais, todos feitos da mesma parra e, bem ao contrário do vinho que
alegremente servia, o mosto não se transformava em coisas muito longe de ruins.
Com ela, sempre fora assim. Tinha começado na vida dura bem cachopa, sete anos
e já dobrava os enormes lençóis da Casa Grande. Depois, passara a criada de
dentro, e daí a cozinheira. Casara, tivera um filho, vira morrer o marido a
tossir-lhe no colo e ali continuava. Tantas histórias… a da praça, por exemplo,
que de um dia para o outro vira mudado o nome sem que nem uma folha do velho
plátano mexesse. Fácil, isso de mudar os nomes às coisas. A taberna onde o
marido servia vinho, bagaço para aquecer os trabalhadores a todas as horas,
ganhara também novo nome, depois de vendida ao menino velho da Casa Grande.
Esse, voltara. A Casa, depois de esquecida e abandonada, fora recuperada, era
agora uma espécie de hotel, e o movimento fazia-se nos fins-de-semana, nas
férias também.
O menino velho pedira-lhe para
ficar cozinhando, e ela aceitara porque nada mais tinha para fazer. Gostava do
cheiro da madrugada, do cantar do galo agora baralhado com a troca das horas
(mania a dos homens de mandarem em tudo), do vinho novo que os novos fregueses
experimentavam, conhecedores, deixando-o brilhar à luz do candeeiro moderno de
que ela não gostava. Era a sua vida, o vinho. Da colheita, ao mosto, do
engarrafar ao vender. Era, afinal, a vida que ela doara, inteira, ao Alentejo
imenso onde nascera e onde, um dia, a morte a beberia na voracidade do Tempo!
Já não eram sempre os mesmos, mas
eram ainda e sempre iguais.
Desconcertante o paralelo entre dois tempos, ladeando o contínuo da linha de uma vida. Os tempos mudam e não voltam a ser o mesmo, deve ser isso o passar do tempo na vida de uma pessoa. Texto cativante... Parece um excerto de uma longa his/estória deveras promissora.
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