sexta-feira, 23 de outubro de 2020

SEXTA-FEIRA

 "A gente habitua-se a quantas tropelias a sorte quer", dizia o velho Garrinchas, no Conto Natal, do meu escritor Miguel Torga. Grande verdade! Hoje, dei comigo a rir-me do meu próprio azar e da forma como o encarei.

Tenho sofrido muito, nos últimos tempos, com maldade e a injustiça. Maldade que vem de porções de existências terrenas, não pessoas, com cobertura de outras porções existenciais que, achava eu, deveriam ser boas. Enfim. 

Ora, hoje, esbarrei com as duas porções numa esquina, ar conspirador, de negro mortal vestidas, olhar  torcido, esgar frio e cortante. Em vez de ter medo, ou de me chatear com o encontro indesejável, dei comigo a rir da minha sorte por ter podido passar de largo, sem ter de respirar o ar poluído que as ditas coisas emanavam!


domingo, 18 de outubro de 2020

ESTUPIDEZ E MALDADE

Já há algum tempo, li uma crónica do Miguel Sousa Tavares, jornalista e escritor que muito admiro, onde ele reflectia sobre o facto (inegável) de as redes sociais, facebook e afins, darem palco a toda a gente. A pessoas muito interessantes, cultas, que muito trazem a quem as lê e, também, a idiotas e ignorantes que, subitamente, têm púlpito. E é exactamente o facto da ignorância, maldade, estupidez e ignorância terem palco que leva, cada vez mais, ao alastrar da calúnia, da mentira, da maldade. Qualquer pessoa pode, se lhe apetecer, acusar, insultar, julgar o outro, numa janela aberta ao mundo. E há sempre público garantido, quem leia; quem, com inteligência, condene; quem se deixe enredar, e faça coro.

Não se pode fazer nada contra esta realidade. É a vida actual. Podemos, claro, não utilizar redes sociais, auto excluirmo-nos da realidade. Podemos ignorar, responder com silêncio e desprezo. Podemos, se quisermos gastar dinheiro e se confiarmos na Justiça dos Tribunais, avançar com processos. Mas, façamos o que fizermos, o dano da calúnia não será jamais apagado. A mancha fica, nódoa que lixivia alguma elimina sem danificar o tecido.

É assim. 

O ser-humano está construído do avesso, virado mais para fora do que para dentro e, por isso, tem de ser capaz de sobreviver neste caos de gente que, a cada dia, menos humano é.

Lamento muito. E opto pelo silêncio, pelo desprezo absoluto que me merece a maldade e a calúnia. 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

COISAS DOS HOMENS

"Ninguém falou em troca nem em venda. Ninguém disse palavras chocantes. Mas quando se levantaram os três e se dirigiram para junto dos outros convidados para a sala grande, o espírito do Bispo estava pesado de confusão. Ele era como um homem que, envolvido num negócio que não entende bem e convencido por um hábil advogado, compra o que não quer comprar e vende o que não quer vender.

E Deus no Céu teve dó daquele Bispo porque ele estava só e perdido e não sabia lutar contra os hábeis discursos dos donos do Mundo."
in, O Jantar do Bispo, Sophia de Mello Breyner.

Às vezes, muitas vezes, os meus amigos espantam-se por eu dizer que sou católica, que tenho Fé, que vou à Missa nos domingos e que rezo. Compreendo a surpresa.
Vivemos, cada vez mais, num mundo de visibilidades, de ciência e Razão. Eu preciso de Deus. Preciso de acreditar que a minha essência não se limita à triste existência.
Sim, acredito que Deus me escuta e que me ajuda a discernir, a fazer escolhas. Que me permite errar, e conhece o perdão. O meu Deus é infinitamente BOM, não é cruel nem castigador, não me manipula porque não sou marionete, dá-me o livre arbítrio porque sou humana. O meu Deus não é a prática da Igreja porque, penso eu, a Igreja se faz de homens e, infelizmente, vive mais para eles do que para ELE.
Hoje, estou zangada, desiludida, com a Igreja.
Lembro que, pelo menos desde o séc XVI, na obra de Gil Vicente, o clero era denunciado. Fê-lo também Camões, António Vieira (O sal que não salga) , Garrett (mas frade, Deus me livre que o seja), Eça (ai o Amaro), Saramago, etc.
Recuperei Sophia, a minha poeta de eleição. para acalmar a minha enorme desilusão, revolta, mágoa, com figuras da Igreja na minha cidade. Rezo. Penso no Papa Francisco, em João Paulo II, e quero acreditar que Deus se indigna comigo.
Tenho Fé, sim! E é, talvez por aparente antinomia, Deus que me ajuda a sobreviver à maldade dos homens. Até padres, até bispos.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

DOCES

 Nestes dias de Outono hesitante, eu entro em modo de confiança na existência. Recupero muitas memórias, deixo correr mil histórias dentro de mim, reinvento tradições. Ontem, foi domingo de doce de abóbora. Nascida na Quinta, a abóbora é perfeitamente amiga do ambiente, livre de tratamentos e de  casca bem dura. Coloquei o meu avental, carregado de muito lavadas nódoas de vidas, e fiz o doce. Pronto, enchi os frasquinhos de vidro e, como sempre acontecia quando eu era criança, fervi-os de cabeça para baixo. Depois, com mil cuidados, deixei-os arrefecer na tábua (que é de plástico) da cozinha. Hoje, olhei para os frasquinhos e tive pena. Estão de rabo para o ar desde ontem! Endireitei-os e procurei os amigos, sempre procuro os amigos, para fazer distribuição. Gosto mais de fazer os doces de Outono do que de comê-los, confesso. 


domingo, 4 de outubro de 2020

OUTONO

 É, sem dúvida, a minha estação preferida, o Outono. Gosto das cores, do vento, das folhas enlouquecidas que dançam no quintal, das abóboras e dos marmelos. Gosto dos cheiros dos doces, dos fumos das queimas dos restos de Verão, dos castanheiros carregados de verdes ouriços.

Tenho pensado que também eu estou a entrar no Outono. Não no passageiro mas, pelo contrário, num Outono que só terminará no fim total. 

Já não tenho a inocência da Primavera, não encho de flores arbitrárias cada quotidiano, já não me iludo com borboletas tontas e efémeras. 

Já esgotei o meu Verão. Vivi-o com excesso, com garra e exagero, deitei-me em muitas praias e sofri afogamentos de diversas ondas. Agora, estou no Outono. Já não corro atrás do arco-íris, já não acredito em todas as aparências, já despejei os bolsos das minhas verdades.

Quando o meu Inverno chegar, terei pouco do que me despedir. Levarei comigo as emoções fortes, as paixões intensas, os momentos mágicos. 
Que venha o meu Inverno, assim que eu esgotar o meu Outono.