domingo, 27 de maio de 2018

Cinema

Tirou o casaco, leve e de linho, e colocou-o nos ombros dela. Sorriu. Vira inúmeras vezes aquele gesto no cinema, Robert Redford, até Gere, sem dúvida Jeremy Irons e Clark Gable, mas ali a luz brilhava e não tinha comprado bilhete.
Ninguém compra bilhete para a vida.
Ela agradeceu, vinha salgado e fresco o vento do mar. Sentaram-se e olharam-se. Eram outros eus, o mesmo cenário, a alma diferente. Ela pediu um chá, ele uma imperial, e o tchintchin saiu com música estranha. Havia um erro no guião, talvez.
Ninguém escreve o guião da própria vida.
Ele falou do vento. Ela sorriu os poetas de sempre. Sim, ela queria isso. Não, ele não podia ser a personagem desejada.
Ninguém se prepara para o papel secundário.
Ela entregou o casaco, acabou o chá e partiu.
O fim nunca surge com the end apaziguador.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

INÓCUA

Li há muitos anos, tantos que já não sei precisar onde, que escrever é dar a alma à palmatória. É mesmo! 
E eu, que gosto de ter opinião, que acredito que uma das maiores vantagens da democracia é podermos, livremente, dizer o que pensamos, tenho levado grandes sovas por ousar escrever. Sei, claro, que não sou a única a pensar o que escrevo mas, para meu infortúnio, não sei pensar e calar em todas as ocasiões. Tenho vindo a aprender essa técnica, e tenho feito muitos progressos, garanto. 
No entanto, ainda não atingi a perfeição e, às vezes, escrevo/falo demais. Não sou, como alguém dizia "diplomata" ou, como outro alguém me informava, "socialmente hipócrita". Mas vou aprendendo. 
À minha custa que, sem dúvida, é a melhor e mais eficaz forma de aprendizagem. E continuo pensando...
Continuo escrevendo. Por isso, vou sempre reafirmar o meu não ódio a pessoas! Discuto ideias, não pessoas. Não insulto ninguém, nem em silêncio, e não percebo que mal pode vir do facto de questionar seja o que for. Afinal, perguntar é legítimo, ou não?
Enfim... 
Se, por um lado, me ferem os insultos e palavrões que me enviam, muitas vezes sob anonimato, fico feliz por saber que, afinal, há muita gente que perde tempo comigo. 
Mesmo que seja só a insultar-me! É bom não ser inócua...

sexta-feira, 11 de maio de 2018

FELICIDADE

Digo muitas vezes, e digo porque o penso, que dá muito trabalho ser feliz. Ou estar feliz. Implica, creio, a capacidade para valorizar as pequenas coisas e, o que custa mais, a resistência constante a agressões da vida. Para se ser feliz é preciso ser-se muito forte, relativizar, manter um rumo próprio e colar, na quilha da alma que rasga os oceanos de desilusão, uma energia tremenda.
Para se ser feliz, é também preciso abdicar. Muitas vezes, abdicar do próprio eu e aderir a vontades alheias. 
Por tudo isto, e se calhar muitas outras razões, a gente habitua-se à rotina da infelicidade, ao vai-se andando, ao deixa lá ver no que vai dar. Vai-se sendo infeliz aos poucos, mas fica-se almofadado por essa ilusão de um dia melhor...
Assim, eu acho que devia haver um limite para a infelicidade suportável. Devia existir um limite para a infelicidade de cada pessoa.
Se isto acontecesse, a minha fasquia já teria sido ultrapassada.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

ANIVERSÁRIO

Dizem que é natural, que é, mesmo, o sinal de uma educação de sucesso ver partir os filhos. Afinal, aquelas criaturas indefesas, frágeis, choronas e sorridentes, que saem de dentro de nós, não nos pertencem.
Até concordo. É bom que os filhos ganhem mundo, que se lancem em existências independentes. Mas, ainda assim, dói muito sabê-los longe.
Hoje, faz 33 anos a minha filha mais nova. E eu sinto doer o vazio do colo, o vazio do bolo que não fiz, a ausência da alegria em volta da mesa. Parece-me que foi há pouco, há um bocadinho mesmo, que ela me olhava enquanto mamava sofregamente. Parece que foi há bocadinho que, na sala de partos, ao acordar da anestesia, ouvia dizer que estava tudo bem e que tinha morrido o Dr. Mota Pinto. O meu irmão estava comigo, garantia-me que a rapariga estava perfeita, e eu temia por ela, a minha pequenina, e pela irmã que estava nas mãos dos avós.
Parece que foi há bocadinho, e ela já está a festejar 33 anos longe de mim, com a família que é dela e onde eu sou visita.
Pode ser natural. Muito natural. Mas dói que se farta!