segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

A NOITE VELHA

Espero a meia-noite. Morreu o Joaquim Bastinhas. No mundo vive-se a esperança e o alívio, um ano a chegar, outro superado. É uma repetição de clichés, da ilusão de liberdade vivida pelos escravos da modernidade. Hoje, esta noite, é obrigatório ir a festas, beber, estrear roupa, olhar o fogo fátuo, comer passas e telefonar, ou - o que para mim é sempre uma mostra de sentimentos falsos e plastificados - repassar mensagens, e vídeos, iguais para toda a gente. Esta é a noite em que os verdadeiros amigos ficam igualados aos conhecidos, e aos inimigos, por vezes, também. 
É a última noite de 2018. Morreu o Joaquim Bastinhas. A televisão mostra o mundo em festa, de relance mostra os contrastes, os refugiados, os mexicanos, os venezuelanos, muitos africanos, a Síria, o Iémen, a poluição crescente, os tsunamis. E rebentam foguetes. Já chegou 2019 a muitos países, e eu opto por ser grega. Comi as passas ao ritmo de Atenas e vou dormir à hora das ilhas de Ulisses.
Morreu o Joaquim Bastinhas. E há tantos foguetes no mundo!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Vida Velha

Passou o Natal, aproxima-se o Ano Novo. Detesto a chegada do Ano Novo que, invariavelmente, chega a cheirar a velho e prenhe de más notícias. Odeio a passagem de ano, muitas vezes passei a meia-noite de 31 de Dezembro a dormir, e detesto as reportagens dos horrores que fizeram o ano velho cinzento e deprimente.
Este 2019 não traz nada de novo. Os preços vão subir, a miséria vai aumentar, as injustiças vão crescer, a guerra não vai acabar e eu vou envelhecer. Como se não bastasse,  vai haver eleições...
Ano Novo, vida velha!

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

QUASE

Hoje, é véspera de Natal. Há doces na mesa a lareira crepita e, sinto eu, o ar está diferente. Penso nas ausências, tantas e com tão diferentes razões. Há os que partiram, e continuam vivos nos meus sentires; há os que, podendo estar presentes, optaram pela ausência; há os que faltam sempre, levados por outras urgências talvez. Cheiram a peru assado as minhas memórias. Cheiram a musgo e a fritos. É quase noite mágica e, em breve, as crianças vão encher de alegria ansiosa o espaço calado da sala onde, agora, apenas eu e o Zorba conversamos. Tento afastar as memórias, iludir as saudades, mas fracasso. Eu sou perita em fracassos... 
All I want for Christmas is you, garante o CD que roda sem parar desde manhã. Sim, all I want for Christmas is you... E este you embrulha, ainda que sem laço vermelho, o meu Presente mais desejado!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

MENINO JESUS

Menino Jesus,
Há muitos anos que não Te escrevo. Não porque Te tenha esquecido, ou por ter-Te abandonado, nem sequer por achar que tens e-mail. Acho que deixei de escrever porque perdi, e como o lamento, a capacidade de acreditar no Milagre da Tua vinda, na noite de 24, colocar presentes no meu sapatinho. Desaprendi também, talvez, a segurança da infância, a fé em cada amanhecer, a tranquilidade de saber que havia sempre alguém para me amparar.  O que eu fiz da vida, os estragos e erros, desfizeram a minha Paz interior e semearam de escombros o meu tempo de estar contigo.
Quando era pequena - em que mundo foi isso? - escrevia-Te todos os Natais. Contava-Te as minhas maldades, as boas acções e, de caminho, aproveitava para Te pedir presentes. Não sei onde param essas cartas, decerto no lixo ou desfeitas pelo Tempo.
Este ano, nesta noite-véspera de ter comigo os meus netos, resolvi escrever-Te outra vez. E não venho pedir nada!
Menino Jesus, obrigada por estares aí para mim. Obrigada pela calma com que esperaste o meu regresso do lado de lá da Fé. Sim, estive muito zangada contigo. É sempre mais fácil zangarmo-nos para fora, com os outros, do que com nós próprios, Tu sabes. Às vezes, de tão cega de desgosto e raiva, chegava a virar-te para a parede achando que nem devias ver-me chorar. Mas Tu resististe e, por isso Obrigada! 
Prometo não mais te virar para a parede e sempre te olhar, antes de adormecer, para aquela conversa só nossa. Aquela, Tu sabes, em que me viro do avesso e te peço ajuda para lavar a alma. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

OS POBRES

A despersonalização, o esbater da identidade de cada um em nomes comuns é, para mim, algo que fere. Nesta época de Natal, quando os corações andam mais amolecidos e a vontade de ser mais humano se faz sentir, penso que a desidentidade dos mais desfavorecidos devia ser extinta. 
Os pobres. 
Quem são os pobres? Dizemos, eu digo, os pobres, como se me referisse a uma contingência, a uma massa anónima feita de uma colectividade de infelicidade. 
Quem são os pobres? Os que têm uma sopa e refeição melhorada num qualquer lugar das cidades, os que nada têm e vivem o Natal como se fosse Agosto ou desgosto?  
Os pobres. Os pobres têm rosto, são gente que, muitas vezes, foi esquecida de ser pessoa.
Os pobres têm sonhos, desejos e consciência da sua falta de muita coisa. Olhar os pobres devia implicar saber-lhes o nome, a história, as razões e os sonhos rasgados, muitas vezes, pela desumanidade reinante.
É Natal. E eu, no cómodo calor da minha insónia, lutando comigo mesma por erros tão sem sentido, penso no Manel, na Rita, no Ambrósio, no Marcelino, na Conceição, na Fátima, nos muitos nomes sem rosto que enchem a palavra pobres. Como será o Natal das mulheres que não têm comida para dar aos filhos? Como será o Natal dos que sofrem na solidão e vêem, de fora, os reflexos da felicidade alheia? Cada um dos singulares que fazem o plural da miséria - pobres - tem uma história para contar. Aquele veio de longe, num barco clandestino, numa terra onde não havia frio e por isso não usava sapatos; este perdeu o emprego, veio a bebida, os consumos, perdeu os dentes, a razão e o medo, sobrou a vergonha; a outra fugiu de uma vida violenta, pede esmola com o filho ao colo. E é Natal, por isso há que aproveitar, os não-pobres dão mais nesta altura...
Os pobres têm nome. Os pobres são gente.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

HOJE

Sempre que o Natal se aproxima, eu transformo-me. Estupidamente, sinto uma irresistível vontade de sorrir, de brincar, de cantar(!!) e de acreditar. Apetece-me andar na rua, sentir o frio no nariz, aquecer as mãos no café quente e espalhar Boas Festas pelos olhares que cruzo.
O Natal, em mim, tem um efeito mesmo positivo! Nesta época, a cabeça e o coração dão as mãos e, no uníssono da vontade de ACREDITAR, dizem que o mundo é lindo e a existência perfeita.
Por tudo isto, não me apetece mesmo nada trabalhar. Como dizia o Poeta, "a minha alma anda a monte" e a cabeça faz-lhe companhia... Olho a lista de coisas por fazer e não avanço. Não me apetece pensar na Escola, ou na formação, ou na preparação da próxima Revista, ou nas barbaridades cometidas em nome de uma flexibilidade não compreendida. 
O que me apetece mesmo, mas mesmo-mesmo, é dar um abraço forte ao dia e pedir-lhe que fique, que se multiplique, que permaneça tecendo ACREDITARES no meu coração, que se encompride neste meu desejo de ser feliz e não deixe voltar a rotina de vazios que, assustadora, espera Janeiro para se impor!

domingo, 16 de dezembro de 2018

PONTUAÇÃO

Se eu fosse escritora, daqueles escritores fantásticos, reais, que dão longas entrevistas e podem alterar a língua, eu havia de acabar com os pontos finais. Os pontos ficavam, servem para respirar, ajudam a novos inícios. Mas os finais, são uma chatice. São complicados, e dolorosos, quase sempre; são tardios no outro quase que completa o sempre. Os pontos finais, redondos e poderosos, incomodam mesmo. 
Se eu fosse escritora, havia de escolher mais vírgulas, das que prometem curvas no caminho e eternas continuações. Privilegiaria as reticências, há sempre hipótese de calar algo, de deixar adivinhar, de sugerir, e daria destaque ao ponto e vírgula: - Paramos, olhamos a curva e seguimos com energia redobrada.
Como eu não sou escritora, sigo tentando iludir os pontos finais da vida. São tantos!

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

MICRO NARRATIVAS


Hoje, deu-me para brincar com o português e criar micro narrativas!

A espuma das ondas salgava o enorme vazio do vidro sujo. Ela olhava. O mar nada dizia, mas a saudade vinha de lá, de longe, das ondas onde ele navegava deixando-a sempre ali, no cais da saudade, ancorada na mágoa. Sempre!

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Saltava do baloiço para o escorrega sem adivinhar os trambolhões da vida. Mais alto, mais alto, estou quase a tocar nas nuvens. E, de repente, o tempo choveu, o escorrega enferrujou e o baloiço quebrou-se. Agora, já não tira os pés do chão.

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Se não me caíres nos braços, se não me deres o teu coração,  se não disseres que não ao adeus, eu desisto.  E ela sorriu. Os dois escreveram então uma narrativa longa. Tão longa, que não cabia nas micros. Deve andar por aí...


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quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

NEVE

É quase Natal. Tenho a casa com muitos embrulhos, cheira a doces e o meu coração, já mole, está quase a desfazer-se. O frio faz-se sentir e eu recupero a memória da neve, o vinho quente e o abraço escaldante nas pistas velozes de mil cores.
A neve é um lugar perfeito. Prefiro, de longe!, a neve à praia. 
Na neve, bem cedo as vozes soam enérgicas, as cores dos fatos transbordam vida e o café forte enche os espaços. 
Gosto das subidas para as pistas, olhando cá em baixo as pegadas dos bichos que, durante a noite, recuperam o espaço que é deles. Gosto das descidas velozes, dos óculos embaciados, do nariz congelado e muito à moda da rena Rodolfo. 
Na neve, até fazer xixi é divertido, porque é preciso não deixar cair os casacos, não permitir que as calças se encharquem na lama que foi neve.
Depois, à tarde, há o chocolate quente, ou o vinho aromatizado, as conversas cheias de gargalhadas, as quedas lembradas como divertidas.
E chega a noite. Os vidros embaciam-se, o banho quente aquece a alma e disfaça as nódoas negras do dia. Na neve, na montanha, as estrelas brilham de modo especial e parece choverem carreinhos de felicidade directamente no quarto de hotel.
Na neve, o jantar permite excessos - afinal, são férias!-, e o sono não se faz difícil porque o cansaço é muito.
É quase Natal. E Natal é tempo de neve. Gosto tanto da neve!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

EU SOU ANTERIOR À NET. E SOBREVIVI!

Quando eu era miúda não havia internet. Sendo a filha do meio, tinha com a família uma relação difícil, sempre achei que ninguém - com excepção do meu Pai -, gostava de mim. Tinha fama de calada, de estranha e, já adolescente, ganhei ainda o insulto (confesso que para mim elogio) de snob. 
Como era calada e passava muito tempo sozinha, lia muitíssimo. Creio mesmo que me tornei uma leitora compulsiva, uma viciada na escrita, por necessidade de dar sentido às muitas horas de solidão. Lia em todos os lugares, mas era no  parapeito da janela do sótão que eu mais gostava de me refugiar, com um livro no colo e os olhos excessivamente húmidos. Comecei pela Condessa de Ségur. Que saudades daquelas histórias que me faziam chorar e eram, sempre, cheias de moralidade. Depois, vieram os Cinco, o Colégio das Quatro Torres, seguindo-se os romances do Júlio Dinis. Na minha imaginação, havia também a possibilidade de se ser feliz para sempre, como nos livros.
Eça, e sobretudo o Crime do Padre Amaro, foram devorados nos intervalos da leitura de Alexandre Herculano que sempre detestei. Alguém se apaixona por uma Hermengarda?! Felizmente, Eça dava-me uma Amélia cheia de desejos, um Amaro transgressor, uma Luísa frágil e muitas figuras bem reais...
Nunca mais parei de ler. Hoje, ainda numa vivência muito solitária, ainda, por vezes, sentindo-me marginal dos afectos, a leitura é a minha melhor companhia! E é a mais fiel das companhias: - Não critica, não julga, não condena, e está sempre pronta para me deixar partir para mundos possíveis!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

OUTRA VEZ

Outra vez. 
Sempre que digo outra vez, sinto um terrível eco de quase condenação à rotina. É outra vez segunda-feira todas as semanas, é outra vez Verão, é outra vez hora de ginásio, é outra vez hora de dizer adeus, é outra vez tempo de vazio. 
Felizmente, também conheço outra vez coisas boas. É outra vez tempo de ter os netos, é outra vez hora de ficar na minha casinha lendo só com o Zorba por companhia, é outra vez tempo de ir à massagem, é outra vez Domingo , é outra vez hora de cozinhar para os amigos e queimar o leite de creme!
"A vida cumpre-se num fazer de pequenas coisas" - disse Umberto Eco. Eu acho que a vida se cumpre numa repetição de fazeres (e afazeres) que, maioritariamente, nos são impostos de fora para dentro. Se eu pudesse impor à vida os meus fazeres e sentires, muitos outra vez seriam definitivamente eliminados. Dizer adeus deixaria de ter outra vez, e as ausências nunca aconteceriam. Se eu pudesse mesmo fazer a vida que desejo, só haveria outra vez para a ternura, para as conversas compridas perto da lareira, para o leite de creme partilhado, para os serões encompridados de palavras sãs. 
Se eu mandasse mesmo, reinventaria o direito ao espanto - esse do meu Poeta - e havia de estrear a existência com muito mais frequência!

REUNIÕES?

A Professora Catalina Pestana costumava dizer que, quando não se quer resolver um problema, se nomeia uma comissão para o analisar... Eu acrescento que, para além das comissões, há em Portugal o hábito, mais vício, de fazer reuniões. 
As reuniões sucedem-se, multiplicam-se e, curiosamente, repetem o figurino sem se pensar se o mesmo se adequa, se faz sentido. 
Este ano lectivo, um ano de muitas (dolorosas) experiências tenho assistido a reuniões aberrantes. Muitas! Desde reuniões onde se vai sem  se saber quais os assuntos a abordar, passando por reuniões que são conferências, a outras onde somos - sou - chamada a "prestar todo o apoio necessário"! Sendo que não me consta que haja coxos a dinamizar as ditas, preparo-me para servir cafés e ver escoar-se o meu precioso tempo em fazer coisa nenhuma!
Se podia ser diferente? Obviamente! Bastaria que as reuniões acontecessem com objectivos claros, que quem nelas tem de participar fizesse parte efectiva da sua preparação, que a eficácia das mesmas fosse avaliada e, sobre os resultados dessa avaliação, houvesse pensamento crítico!
Criticar, verbo de origem grega, etimologicamente, significa separar, peneirar para limpar do que não presta. E como eu gostava que estas reuniões fossem peneiradas, mesmo que nada sobrasse!

domingo, 9 de dezembro de 2018

CONCERTO NA IGREJA DO BONFIM

Raios dourados espalhavam luz sobre as cabeças. Muitas cabeças brancas, muitas carecas também, ombros encasacados e desejos de boas-tardes que senti amigos. É uma comunidade mesmo. Gente que se conhece de sempre, que sorri, que identifica presenças ainda que não saiba individualizá-las. 
A igreja, a belíssima igreja do Senhor Jesus do Bonfim, aquele espaço barroco onde vivi momentos únicos de pura felicidade, estava completamente cheia aguardando a música do grupo de Cantares o Semeador. E a magia aconteceu. Vozes fortes, fatos a lembrar outros tempos e os instrumentos, bombo-viola-acordeão-pandeiretas-cavaquinho-, a marcar os ritmos. Tinha vontade de me deixar embalar, de fechar os olhos, subir num dos raios dourados e partir. Partir para um lugar onde a música fosse a verdade, onde a amizade fosse total e  onde se desfizesse no escuro esta mágoa intensa que carrego dentro de mim.
É bom pertencer. É bom ser parte, ainda que minúscula, de uma comunidade com pontos de referência segura. Hoje, foi Natal no meu sentir.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

TUDO COMBINADO

Tinha sido combinado com tempo. Seria uma tarde especial, a dois, com conversa sem reticências, com vírgulas no lugar e pontos nunca finais. Ela chegou primeiro, o vício dos horários colado à pele, e ficou esperando, na tarde seca, com as mãos a embrulhar a chávena de chá fumegante. Apeteciam-lhe scones, ou queques, ou uma fatia de pão-de-ló bem húmido, mas resistiu, sorrindo sozinha, lembrando a ditadura da moda em tempo de democracia. É proibido ser gordo, ser gorda pior ainda!, é obrigatório respeitar os olhares alheios, sempre dolorosamente críticos, é imprescindível evitar os comentários rotineiros de estás mais gorda, raramente, estás mais magra...
Ele chegou. Um beijo rápido e desculpas. Outro chá. Uma torrada partilhada e a conversa a iniciar-se com silêncios de doer. Tudo tinha sido preparado com tempo... mas o Tempo dos não-ditos não permite combinações.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

LEMBRA AO CHINÊS

Quando eu era miúda e algo aberrante acontecia, a justificação era célere: - Isso nem lembra ao chinês! 
O tempo passou, eu deixei de ser miúda e, porque todo o mundo é composto de mudança, o chinês também se transformou. Hoje, no meu país há um chinês que fez vedar meia capital, que alugou o melhor Hotel inteirinho, que obrigou a alargar paredes para passarem as suas limusines xl. Hoje, o meu país presta vassalagem ao dinheiro, ignorando as barbaridades de um país, provavelmente o mais rico do mundo, onde existe pena de morte e  onde milhões passam fome. 
Este chinês representa muito mais do que uma visita. Este chinês vem provar, como se tal fosse preciso, que o que comanda o mundo é o dinheiro. Apenas e só.
Ainda assim, eu não queria ser este chinês!

ESCRITA IRREGULAR

-Desliga a televisão.
- Porquê?
-Porque quero que me oiças.
- Estou a ouvir.
-Desliga a televisão. 
- Não oiço com os olhos, diz...
E no diz a nenhuma vontade de ouvir, a centralidade no eu de enorme umbigo. E ela a tentar. Ouve, conta-me da escola, como está tudo a correr? E a resposta seca, feita de linhas cruzadas para ela decifrar. Tudo bem, sempre a mesma coisa, os testes já acabaram. Ela a insistir. Mas para além dos testes, estás a gostar? Não há nada para gostar. Mas descansa, está tudo bem. Nada descansada, com os olhos húmidos da solidão, ela virou os bifes. Como chegar aquele jovem, aquele miúdo que tinha saído, numa metamorfose estranha, do menino doce de caracóis e joelhos esfolados que gostava de ouvir histórias ao adormecer'
Olhou pela janela o silêncio da noite, a calma dos cães deitados na entrada. 
Não era assim que tinha sonhado a vida. Mas, naquela narrativa, o final não lhe pertencia e a página que viraria, mais logo, ao adormecer, não respeitava as normas da escrita regular...

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

ESTE DEZEMBRO

Queria ser melhor pessoa. De verdade! Queria ser capaz de perdoar sem mágoa, queria poder rezar o Padre Nosso sem a minha adaptação "...assim como nós tentamos perdoar". Queria, mas queria tanto!, que este Tempo Natal me mostrasse que o Pai Natal existe mesmo e que, com a sua magia abençoada - afinal, ele deve ser amigo do Menino Jesus -, me deixasse no sapatinho um mapa de acesso à paz e à tranquilidade interior.
Este Dezembro, olho o céu com mais frequência. 
Haverá uma estrela, um planeta não descoberto, capaz de me apontar o rumo? Queria ser capaz de reinventar a minha confiança em cada hoje, a minha convicção de que, apesar de muitos pesares, o Amor ainda faz sentido...
Tenho frio. Um frio de dentro, escuro e intenso, tão frio que faz o coração encolher-se e a alma fugir para longe. Este Dezembro, rezo com os olhos embaciados. Porque o Tempo não pára e eu não consigo ser melhor. E, ainda assim, eu amo, luto, ajudo e abro a ternura a quase todos. Só que, ainda este Dezembro, o quase é grande demais...

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O PRESÉPIO

Ainda não fiz o presépio. Em minha casa, na casa que já não há e no tempo que já não é, a casa só se vestia de Natal no dia 8 de Dezembro, dia do Natal Pequenino, como sempre se dizia. Era só nesse feriado que íamos ao musgo, ao pinheiro, e sujávamos a sala de lama e pratinhas de chocolate. Este ano, decidi, ao abrigo da minha liberdade de ser sozinha, recuperar também esta tradição. E conto os dias para o acontecimento! Antevejo o musgo a encher de cheiro essencial a minha casa, adivinho as luzinhas e as velas que hão-de dar cor à minha casa. Gosto, sobretudo, do Presépio. Gosto dos meus animais, alguns já danificados por duas gerações de pequenas mãos. O Menino Jesus continua com o sorriso tranquilo e, acredito eu, a Nossa Senhora olha-o antecipando o futuro...
Aqui, agora, no quentinho da minha lareira, antecipo o prazer do Natal que se avizinha. 

domingo, 2 de dezembro de 2018

Não Adianta

Às vezes, o manto da noite, tecido de estrelas, vem confrontar a minha saudade. Está escuro. Estou quente, espevitei a lareira, os meus pés descalços afundam-se no tapete macio. Olho as mil fotografias que preenchem a minha salinha. Ali estão as minhas filhas pequeninas, os meus sobrinhos adorados, os meus netos, já quatro. 
Onde me perdi eu? Em que cenário errei a fala, perdi o pé? Levanto-me para colocar um madeiro no fogo. É quase Natal. E a minha essência amolece, fica mais húmida, mais incapaz de calar saudades, revoltas, mágoas e desejos. Ah, tantos desejos que são mais do que vontades, tantas vontades que adio para aquele Tempo que nunca chegará.
O fogo devolve-me outros Natais. Tempos que não o são já, existências que desapareceram. Tranco a alma à saudade angustiada. Não adianta chorar sobre o leite derramado, digo de mim para comigo. Está frio. E ainda assim o fogo continua ardendo forte. Paradoxos. A vida, afinal.