Há muito tempo já que não ia à lota. Lembrava-se de, miúda, ir à lota em Quarteira, sempre madrugadora acompanhava o Pai, e achava bem mais triste do que acompanhar a avó ao cemitério porque, pensava no silêncio de menina, no cemitério os mortos estavam sossegadinhos, tinham muitas flores e jarras bonitas e, ali, os mortos-peixes sangravam, tinham olhos a saltar das orbitas e pareciam tristes por não poderem nadar. Um dia, contara ao Pai da impressão daqueles peixes tristes e ele explicara que os peixes não estavam tristes, porque não tinham memória e não sabiam o que era a dor. Ficara às voltas com a ideia de não ter memória, mas não ousara fazer mais perguntas... Adulta, desejara muitas vezes não saber o que era a dor.
Agora voltava à lota, sozinha. Durante anos esquivara-se à compra do peixe, agora, livremente, decidira vir à lota. Decidira, também, abrir a velha casa de onde via o mar forte, o mar do Norte. A Casa. E lá vinha Saramago, a Casa que visitara em Tenerife, então a dois. E o pregado a mostrar os olhos vermelhos - pode ver, freguesa, a frescura vê-se aqui, no vermelho do olhos - e ela fugia com o olhar ao gel do olhar vazio do pregado anunciado. Sim, pode levar à confiança, este foi pescado agorinha mesmo. E era um polvo mole, e era António Vieira a ecoar com as repreensões, e o aspecto amorfo a desinteressá-la - que ideia a sua, a de ir à lota! Mas queria um peixe fresco, bom para fazer ao sal, fácil e saboroso para dar início ao que desejava ser uma nova fase de vida. Respirou fundo - que pivete deita o peixe moribundo! - e lá se aventurou num robalo grande - por favor amanhe-mo! - que com certeza ficaria bonito na mesa. Com alívio deixou a lota, comprou fruta, uvas e melão, flores do campo, canelinhas - deliciosas! - e foi para casa. Colocou no frio o Alvarinho - bem gelado seria um acompanhamento perfeito - faria, de tarde, um gelado de lima e coco. Agora, praia. Embrulhou-se no casaco que ele esquecera - cheirava ainda a muitos passados - e sentou-se na esplanada invejando a coragem dos surfistas.
O dia correu com a velocidade da expectativa e, ao anoitecer, abriu a janela para deixar que o ar do mar intenso enchesse a sala. Gostou da mesa, da toalha branca, dos copos altos e das flores coloridas. Quando ouviu o carro, descalça, abriu a porta e sorriu. Às vezes, é bom sorrir.
Muito bonito, Luísa! Um beijo
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