sábado, 28 de junho de 2014

OS SENHORES DE FRAQUE

Claro que sabia que as Casas não falam, não têm memória, não trancam passados. Mas o conhecimento de pouco lhe servia quando, finalmente na posse da chave amarelada, entrou na velha Casa. Havia marcas visíveis do tempo, soalho roído, aranhas abusadoras, janelas empenadas. Mas havia, também, o cheiro que lhe trouxe de rompante, sem dar tempo sequer a que  trancasse a alma, a infância que, como o Poeta "não trouxera roubada na algibeira". 
Tinham passado muitos anos, tinha estado longe, enxugado lágrimas em lugares distantes, adormecido em ombros para sempre ausentes. Vira crescer os filhos, morrer os pais, chegar os netos. Vivera encantamentos, desilusões, dores e mágoas, ilusões e esperanças. Agora, com a imensa solidão por companhia, depois de um doloroso processo de partilhas, regressava à Casa de onde, pensava, nunca chegara a partir. Retirou os lençóis brancos que povoavam a velha sala de fantasmas e inventariou o futuro próximo: entre vassouras, esfregonas e baldes de tinta, tinha muito que fazer. Sentou-se e ficou esperando que os fantasmas, agora os dos sentires, viessem fazer-lhe companhia. Encostou-se e viu, debaixo do sofá pequeno, uma caixa toscamente atada. Puxou-a. Fotografias! Uma caixa cheia de fotografias, muitas a preto e branco, esperando um olhar atento. Pegou-lhes. Casamentos, baptizados, primeiras comunhões, algumas viagens, almoços, Natais. Sorrisos, conversas apanhadas num momento. Ali estavam os Pais, tão jovens, os amigos de infância, os filhos pequenos. Com dificuldade identificava algumas das crianças, pareciam todas iguais... 
Uma fotografia grande, quadrada, ficou a desafiá-la.  Podia até ser a Geração de 70, pensou sorrindo, reconhecendo que tal seria pouco provável. Olhou com atenção-ao: Duas filas de homens, todos de fraque, os detrás em pé, os da primeira linha sentados com as pernas direitas  cruzadas num alinhamento perfeito. No verso, nenhuma identificação de data ou nome. Procurou o avô, talvez fosse ele o causador do flash, mas não o detectou.  Voltou a olhar os fraques cuidados, os sapatos engraxados. O cenário parecia Coimbra, a escadaria da Universidade. Ou talvez não... Acendeu a luz. Alguma coisa a encantava naqueles rostos barbados. Teriam acabado de tomar alguma decisão importante? Seriam políticos? Seriam só amigos? Decididamente, não conhecia ninguém. Lembrou-se de uma amiga, professora de história, e sorriu pensando quanto ela se indignaria se assistisse ao concretizar da sua decisão: - Ia queimar tudo! Ia acender a lareira suja, encher um copo de Porto (tenha de haver uma garrafa esquecida) e queimaria todas as fotos. Levantou-se, foi ao quintal e trouxe uma braçada de lenha bem seca. Riscou o fósforo e ficou vendo a dança da chama azulada. Depois, procurou o Porto, rezando para que a marca não fosse Velhotes, lavou um cálice empoeirado e sentou-se no chão. Uma a uma foi vendo as fotografias encarquilharem-se e desfazerem-se. Era melhor assim, o passado é dos próprios e ela também não gostaria que andassem a mexer nas suas histórias. Os senhores de fraque ficaram para o fim. Havia alguma coisa de especial naqueles rostos. Antes que a coragem lhe falhasse, lançou-os nas chamas. Arderam como todos! Afinal, pensou, os senhores de fraque também ardiam...Ficou olhando o fogo, pensando que, no dia seguinte, as velhas cartas da gaveta da escrivaninha seguiriam o mesmo destino. As recordações, as memórias, só são pertença de cada um! 

3 comentários:

  1. Arrepia-me pensar se há verdade na história e se a senhora queimou as fotografias... Deviam ser do Dr. Galiano!
    António

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    1. Fique descansado, é TUDO ficção! Bom domingo e obrigada pela visita

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  2. Do anterior se conclui que a Luisa é mt boa a escrever ficção! Claro que essa qualidade traz confusão aos seus leitores deixando-nos na dúvida.

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