Voltei à Escola, à sala de aula onde sou tão eu e, hoje, resolvi seguir António Vieira. Enchi-me de energia e vá de escrever um Sermão, à moda de Vieira, para os meus alunos de 11º ano que agora começam a conhecer este escritor fantástico! Como irão reagir?
SERMÃO da Professora Aos Alunos
Vós sois o jardim da terra. E,
tal como os jardins, floridos, dão cor e aroma aos espaços urbanos, tantas
vezes cinzentos e carregados de cheiros desagradáveis, vocês, jovens, devem dar
à humanidade cor, alegria e perfume. Mas, ou seja que vocês deixaram crescer excessivas
ervas daninhas no vosso coração, ou que o mundo está de tal modo negro e
empedrado que não tem terra fértil para que floris, a verdade é que vós não
conseguis alegrar a existência.
Faltará perfume às flores do
vosso jardim? Será que viveis mais preocupados em olhar as ervas daninhas, do
que em contemplar a forma harmoniosa como as pétalas se abrem ao sol? Fernando
Pessoa, esse grande Poeta português, disse “o melhor do mundo são as crianças”.
Saberia, talvez, que essas são tenras ainda, puras, não tentadas a perder tempo
com ervas daninhas. Talvez Pessoa devesse ter dito que vós, jovens, sois a
mudança concretizada. Reparai que Camões, esse enorme Poeta do Classicismo,
afirmou que “Todo o mundo é composto de mudança” e, cremos nós, a mudança constrói-se
convosco, com a seiva renovada que, enxertada das melhores qualidades, consegue
colorir e perfumar a existência humana.
Olhemos, então, a rosa. É bela,
carregada de simbologia, capaz de dizer amor, paixão, saudade e até esperança.
A rosa vermelha, brilhante, faz sorrir o olhar mais infeliz. Também um sorriso
sincero, jovem, alegra a existência dos que sofrem. Mas, cuidado, muitas vezes
a rosa perde as pétalas, basta que o vento sopre com força desusada, e ficam só
os espinhos, fortes e agressivos, fazendo sangrar e chorar. Os espinhos, esses,
rasgam e não acarinham, ferem e não curam. Poderia haver, então, rosas sem
espinhos? Reparem no que diz o povo: Seria um jardim sem flores!. Sim, da bela
rosa fazem parte os espinhos, como da vossa juventude faz parte a tentação do
mal. Mas a rosa, naturalmente, serve-se dos espinhos para se alimentar, para se
proteger de mãos abusadoras e vós,
jovens, servis-vos da tentação para, muitas vezes, destruir o perfume e a
beleza que vos define. A rosa agride, com os espinhos, aqueles que a colhem.
Vocês agridem, e destroem, o vosso próprio eu quando, em vez de pensardes na
cor e perfume da vossa condição, vos deixais agarrar pelos espinhos da vossa
idade. A rosa tem vida curta. Também vocês, jovens, não a tendes longa. A
juventude é um período passageio, ligeiro como o voo da andorinha, que perde o
perfume e deixa cair as pétalas antes de ter tempo de ser admirada.
Pensais que apenas a rosa
embeleza o jardim? Não! Oh! Quantas cores, quantos aromas, quanto néctar delicioso
encontramos num jardim. No meu jardim, do qual cuido diariamente, há uma
cameleira. É uma árvore vestida de verde brilhante, viçosa, carregada de flores
brancas e bem trabalhadas. Ao longe, quando chego ao jardim, a cameleira
encanta-me. Quanta cor! Quanto viço! Quanta promessa de vida nos botões que a
preenchem! Porém, como me ilude a imagem… As camélias têm o pé curto, não podem
ornamentar a jarra da minha sala; as pétalas são tão frágeis que, mal lhes
toco, caem no chão; os troncos da árvore, parecendo tão perfeitos, são fracos e
sem resistência. Perguntais-me porque tenho tal árvore no meu jardim? Porque me
enche o olhar, sem me tocar o coração. Porque me ilude na sua aparência de
perfeição sendo, afinal, tão imperfeita. Sabeis que a camélia não tem odor? Ah!
Quantos de vós sois apenas camélias neste jardim que é a humanidade. Como a
camélia, quantos de vós viveis da imagem falseada, da aparência trabalhada para
ocultar a essência desleixada! Mas a camélia, essa, não tem opção que não seja
render-se à sua condição. Vós, jovens, tendes a possibilidade de inverter a
condenação da flor e de, livremente, sobrepor a essência à aparência. Oiço-vos
a protestar, o sermão vai longo e aborrece-vos já. Mas tende paciência, lembrai-vos
das palavras desse poeta que também era cientista, António Gedeão, quando
afirmava que “Cada vez que o homem sonha, o mundo pula e avança”. Não sois vós,
também homens e mulheres em embrião? Então, ouvi-me um pouco mais e depois, se
assim quiserdes, contrariai Fernando Pessoa que, em sofrimento, afirmava
“Querendo, quero o infinito//fazendo nada é verdade”. Vós podeis ser a Verdade.
A diferença. A mudança. Não, não olheis para quem vos antecedeu, não olheis
para os jardins que desprezais. Não. Olhai sim, e vede, o mundo onde cresceis e
os desafios que vos são colocados. Sim, tendes razão, também a rosa precisa
regada, também os jardins precisam limpos das ervas daninhas que dão abrigo à
destruição e à doença. Mas esse tratamento tende-lo vós, diariamente, na
escola, na palavra dos professores, nos autores que ledes, nas aprendizagens
que fazeis. Estudais filosofia? É a água fresca que permite que cresça robusto
o vosso caule de ser; estudais português? É o fertilizante eficaz para que as
vossas folhas e pétalas cresçam viçosas; estudais história? É o ancinho do
jardineiro cuidadoso que permite que compreendeis o canteiro onde cresceis;
estudais geografia? É o sacho cuidadoso a preparar espaço para que cresçais.
Não estudais nada? É a doença da ignorância, a praga da estupidez, a dominar o
vosso crescer, a viciar a vossa existência.
Julgais, talvez, que a escola de
nada serve, que as aulas são a seca que mata a exuberância livre. Como estais
enganados! O que aconteceria à beleza da rosa, sem o amor do jardineiro? O que
aconteceria ao jardim, sem a atenção terna do que o cuidam? Cuidais, talvez,
que vos basta a natureza da vossa condição jovem. Bastará ao jardim o selvagem
crescer? Bastará à rosa o natural desenvolvimento? Não! Ao homem cabe
enriquecer o belo, desenvolver o Bem. Sim, oiço-vos dizer. Não, ouvi-me gritar.
Porque a rosa torna-se mais viçosa, o lírio mais brilhante, a orquídea mais
perfeita quando o jardim é cuidado, limpo, enriquecido e regado. Vós sois o jardim da terra. E como esta
Terra, cada vez mais feita de alcatrão e cimento, precisa de jardins! Termino
agradecendo a António Vieira a grande lição e a vós, alunos jovens, deixo uma
missão: - Perfumai de sentido a existência, sede corajosos para que, com o
vosso florir renovado, sejais capazes de exterminar as ervas daninhas que,
agora, livremente ocupam jardim e florestas… Lembrai-vos que o Tempo, esse
jardineiro atento, todos os dias colhe e todos os dias semeia. Fazei parte da
sementeira, não querereis ser o lixo que ele sempre recolhe.
Luísa, oxalá tenha sido o “Sermão aos Peixinhos” e portanto ouvido! Tenho na memória uma gravura do Santo a falar aos peixes, todos com a cabecinha fora de água!
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