Na parede há um painel que garante “o oxigénio do ar é dos melhores medicamentos. Muitos o desprezam por não custar dinheiro” V. Pauchet. Lembro-me de ler aquelas palavras, primeiro com dificuldade, depois procurando um sentido, por fim sabendo-as de cor. São palavras em azulejos pintados, com cor, fazendo moldura para além do sentido ou da actualidade. Para além das palavras, a varanda tem mil outros significados, mesmo sabendo que, por si só, não é sequer um significante. Em miúda, sentava-me ali, sozinha, muitas vezes ao fim do dia, espreitando a cidade que, lá ao fundo, me parecia sempre tranquila. Via a Sé, a igrejinha do Bonfim, a Senhora da Penha, as muralhas do velho castelo. E fantasiava: - Se eu pudesse voar, ainda que não sendo pássaro, partiria do parapeito da varanda, planando, até pousar mesmo na ponta mais bicuda da torre da Sé. Se eu fosse fada, bruxa nunca quis ser, inventaria um feitiço, com asas de morcego e patas de gafanhoto, para cristalizar os momentos em que ali me instalava, fugida da agitação da casa, confessando ao ar as minhas angústias, os meus temores, acho que os meus sonhos também. Foi naquela varanda que, pela primeira vez, vivi intensamente aquela hora mágica em que tudo pára. Era miúda e, depois do banho obrigatório ao fim de um dia de brincadeira, já de camisa de noite e descalça, escapulira-me para ali enquanto o resto da casa, sob as orientações da minha mãe, continuava a preparar-se para o jantar e para o fim do dia. Sozinha, comecei a perceber o silêncio dos cães, as asas quietas dos pardais, a tranquilidade quieta do vento. Ao fundo, mesmo por detrás da serra da Penha, havia riscos vermelhos em torno de uma bola gorda, brilhante, que se preparava para, também ela, ir dormir. Estranhei o silêncio. Lembro-me que me levantei, espreitei os baloiços que ainda há pouco ousavam tocar as nuvens, e me surpreendi com a sua imobilidade total. Fiquei quieta também. Tive algum medo, pensei que o mundo, por um qualquer mistério, tivesse simplesmente deixado de girar. Mas não. Instantes depois, lembrando penitentes de alma lavada, os pardais abandonaram o fio do telefone e os cães retomaram a conversa animada que ligava o canil aos que estavam soltos. Muitos anos, milhares de vezes, vivi este momento e, sempre, me surpreendia a beleza que a minha varanda me oferecia. Era o lugar mais perfeito da serra, achava eu. E, como para me mostrar que, às vezes…, eu tinha razão, os meus pais mostravam sempre a varanda, com algum orgulho mal disfarçado, a quem pela primeira vez nos visitava.
Quando o tempo permitia, e fazia-o muitas vezes, almoçávamos na varanda. O meu pai gostava de jantar ali, conversando, contando da vida e ajudando-nos a crescer. Ali lhe contei os meus maiores desgostos, ali me garantiu, tantas vezes!, a sua cumplicidade eterna. Então, já mais velha, a varanda era para mim um espaço de apaziguamento interior. Ali, sentia-me protegida.
Era, acho eu, a minha fortaleza!
Já adulta, mãe, pegava nos meus bebés ao colo e mostrava-lhes a cidade, as igrejas que conhecia tão bem, os voos dos pardais, a cama do sol, as nuvens de algodão. Muito pequeninas, ao colo, espetavam o dedo e identificavam os lugares que me tinham emoldurado o crescimento. Então, elas começaram a ler as palavras do azulejo e oxigénio saía com dificuldade…
Hoje, estou com saudades da varanda. Os tempos correram, há outras gentes na minha varanda, há outros risos que desconheço, e desejo que haja quem seja capaz de ensinar aos pequeninos os lugares da cidade. Hoje, a minha varanda faz apenas parte do património imenso de recordações que, vale-me esse consolo, nunca ninguém me poderá roubar.
A vida, o tempo, as gentes (pessoas nem todas) têm-me, com demasiada frequência, assaltado as emoções, roubado realidades. Mas o meu património de recordações, ao menos esse!, é inviolável!
Tenho tantas saudades da minha varanda…
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