quarta-feira, 22 de maio de 2013

O Manguito

Todas as tardes fazia o caminho, os joelhos cansados a pedir misericórdia, para recolher as cabras, eh bichos danados!, e sempre reparava nas cores diferentes do chão. No inverno levava o bordão, que um homem nunca sabe quando a vida o atraiçoa numa escorregadela valente. No resto do ano levava apenas as mãos, calejadas, hábeis  ainda a trabalhar o bunho, ligeiras para acabar com o atrevimento a alguma cobra mais ousada. Perdera o conto aos anos. Talvez andasse perto dos 90. Ou mais. O doutor, sempre que tinha de ir pedir as receitas, garantia que tinha de ter mais porque se lembrava do rei D. Carlos. Ora como não se havia de lembrar se o avô, que Deus o tenha, toda a vida contara como o vira morrer, ali, mesmo à frente da senhora dona Amélia?
E não seria normal um homem lembrar-se do rei?! Os de agora nem lhes fixava os nomes, uns gaiatos ainda a cheirar a cueiros e já a darem cabo da vida de um velho! A mulher é que os ouvia, entre umas Avé Marias e uns palavrões, na televisão, depois das novelas que a deixavam a fungar. Coisas de  mulheres. Ele nem queria saber! Sabia só que nunca mais havia de ir votar, que preferia ficar ali, na encosta da sua serra, a guardar as cabras, a dar caça às cobras, do que descer à cidade para fazer de pasto aos homens. 
Era velho sim. Mas não era um número comprido da segurança social e recusava ser lixo para os janotas que botavam discurso nos telejornais. Queriam a sua reforma? Queriam o que lhe restara de quase 50 anos a servir o estado? Pois ficassem com tudo, que a dignidade, essa, ninguém lha roubaria nunca! Com um manguito bem feito, assobiou às cabras.

3 comentários:

  1. É o que mais apetece fazer... um manguito, DAQUELES, bem feito, de manga arregaçada, de sobrolho bem contraído e acompanhado de um TOMA, dito com os dentes cerrados, de zangado, de, quase, desesperado...

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  2. Grande pinta de texto e de Senhor pastor! Assim mesmo, p'ra estes badamecos da treta, surripiadores!!

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  3. É um texto doce e revoltado, ao mesmo tempo.

    Ana

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