Anda, sentamo-nos ali, à sombra,
conversamos um pouco. E foram. Com cuidado ela alisou o chão, empurrou os
ouriços, despiu o casaco e estendeu-o. Senta-te. E ele sentou-se. Trazia os
olhos cheio de azul, azul de muitos mares, carregava sal esquecido nas pregas
que a pele, cansada, deixava plena de desistências e olhares. Respirou fundo,
ele. Ela, esperou.
É preciso saber esperar. É
difícil dar tempo ao Tempo, deixar que o Chronos
dite as regras, que os deuses menores se acoitem. E então, ele perguntou. Que
árvore é esta? E ela explicou. Não te lembras do castanheiro? Não te lembras de
virmos com o meu avô apanhar castanhas, não tens memória das mãos calejadas da
minha avó a retalhar? E ele a sentir o marulho, a força das ondas, o apelo da
utopia, daquele lugar não-lugar onde ele desejava tanto chegar. O cheiro do
magusto a vir nas brumas da memória, a impor-se ao acre do sal que lhe enchia a
pele.
Ah, pois, castanheiro. E apanhou
uma castanha, trincou-a, e ficou a mordiscar como quem, aos poucos, saboreia a
vida. Sabes, já não me lembrava do cheiro da terra, da humidade do chão, da
imensidão da sombra destas árvores. Não me lembrava do chão que não mexe, dos
passos sem dança.
Ela abraçou-o a medo. Onde
perdera aquele homem? Ele fora seguindo o sonho, respondendo ao apelo líquido, seguindo
outras ousadias, desvendando outros longes. Ela ficara. Presa à terra, firme
como o velho castanheiro que a vira crescer, chorar, desesperar e sorrir
também. A terra e o mar, a mesma madeira que faz barcos a abrigar a sua
solidão, o vazio imenso.
Tive saudades tuas. E ele sorriu.
São boas estas castanhas. Sim, são muito boas. Felizmente, os castanheiros não
correm atrás de sonhos, não abandonam, não perseguem utopias e protegem com
picos e coragem os frutos deliciosos. Assim fossemos nós, humanos.
Ele fechou os olhos, deixou
escorregar o tronco, pousou a cabeça na saia amarrotada e continuou a morder a
castanha. Sabes, às vezes a Terra é pequena demais para os sonhos de um homem.
É preciso partir, para se poder voltar. Já aqui estou. Queria dizer-lhe que era
tarde demais, que fizera vida, que precisava da segurança da sua quinta. Do
souto onde caminhava sempre, dos picos que sabia como não picarem, do adormecer
ouvindo o ramalhar junto à janela. Às vezes, é tarde, disse. Os frutos também
têm um tempo, e não há castanhas em Maio.
Sem abrir os olhos, ele abraçou a
coxa onde se encostara. Tive saudades tuas. Tive, talvez, saudades dos ouriços,
do ramalhar do souto. Por isso voltei. Porque não há mais mundo do que o que as
fronteiras dos afectos limita. Voltei. Ela deixou que os dedos percorressem sem
destino os cabelos pontuados de nuvens brancas. Foi bom teres voltado, gosto de
te ter aqui, de poder pisar o mesmo chão que tu. Sabes, és um pouco como as
castanhas que trincas. Vives num ouriço, proteges-te com picos que não deixam,
por vezes, entrar o meu eu. E, sabes também, já não tenho forças para tentar
resistir aos picos…. Ele virou-se um pouco, agora olhar líquido, e confessou o
vazio. Preciso de chão. Preciso da essência da terra, afinal, nós somos terra
também, preciso de ti. Para navegar, agora, basta-me o teu corpo e nele quero
afogar-me.
Ela fechou os olhos, entregou-se,
já sem picos, livre e inteira, sob a proteção do velho castanheiro que a
ninguém conta segredos alheios.
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