segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Não Há Castanhas em Maio


Anda, sentamo-nos ali, à sombra, conversamos um pouco. E foram. Com cuidado ela alisou o chão, empurrou os ouriços, despiu o casaco e estendeu-o. Senta-te. E ele sentou-se. Trazia os olhos cheio de azul, azul de muitos mares, carregava sal esquecido nas pregas que a pele, cansada, deixava plena de desistências e olhares. Respirou fundo, ele.  Ela, esperou.
É preciso saber esperar. É difícil dar tempo ao Tempo, deixar que o Chronos dite as regras, que os deuses menores se acoitem. E então, ele perguntou. Que árvore é esta? E ela explicou. Não te lembras do castanheiro? Não te lembras de virmos com o meu avô apanhar castanhas, não tens memória das mãos calejadas da minha avó a retalhar? E ele a sentir o marulho, a força das ondas, o apelo da utopia, daquele lugar não-lugar onde ele desejava tanto chegar. O cheiro do magusto a vir nas brumas da memória, a impor-se ao acre do sal que lhe enchia a pele.
Ah, pois, castanheiro. E apanhou uma castanha, trincou-a, e ficou a mordiscar como quem, aos poucos, saboreia a vida. Sabes, já não me lembrava do cheiro da terra, da humidade do chão, da imensidão da sombra destas árvores. Não me lembrava do chão que não mexe, dos passos sem dança.
Ela abraçou-o a medo. Onde perdera aquele homem? Ele fora seguindo o sonho, respondendo ao apelo líquido, seguindo outras ousadias, desvendando outros longes. Ela ficara. Presa à terra, firme como o velho castanheiro que a vira crescer, chorar, desesperar e sorrir também. A terra e o mar, a mesma madeira que faz barcos a abrigar a sua solidão, o vazio imenso.
Tive saudades tuas. E ele sorriu. São boas estas castanhas. Sim, são muito boas. Felizmente, os castanheiros não correm atrás de sonhos, não abandonam, não perseguem utopias e protegem com picos e coragem os frutos deliciosos. Assim fossemos nós, humanos.
Ele fechou os olhos, deixou escorregar o tronco, pousou a cabeça na saia amarrotada e continuou a morder a castanha. Sabes, às vezes a Terra é pequena demais para os sonhos de um homem. É preciso partir, para se poder voltar. Já aqui estou. Queria dizer-lhe que era tarde demais, que fizera vida, que precisava da segurança da sua quinta. Do souto onde caminhava sempre, dos picos que sabia como não picarem, do adormecer ouvindo o ramalhar junto à janela. Às vezes, é tarde, disse. Os frutos também têm um tempo, e não há castanhas em Maio.
Sem abrir os olhos, ele abraçou a coxa onde se encostara. Tive saudades tuas. Tive, talvez, saudades dos ouriços, do ramalhar do souto. Por isso voltei. Porque não há mais mundo do que o que as fronteiras dos afectos limita. Voltei. Ela deixou que os dedos percorressem sem destino os cabelos pontuados de nuvens brancas. Foi bom teres voltado, gosto de te ter aqui, de poder pisar o mesmo chão que tu. Sabes, és um pouco como as castanhas que trincas. Vives num ouriço, proteges-te com picos que não deixam, por vezes, entrar o meu eu. E, sabes também, já não tenho forças para tentar resistir aos picos…. Ele virou-se um pouco, agora olhar líquido, e confessou o vazio. Preciso de chão. Preciso da essência da terra, afinal, nós somos terra também, preciso de ti. Para navegar, agora, basta-me o teu corpo e nele quero afogar-me.
Ela fechou os olhos, entregou-se, já sem picos, livre e inteira, sob a proteção do velho castanheiro que a ninguém conta segredos alheios.

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