segunda-feira, 20 de julho de 2009

Pão Quente

Cedo ainda. Cedo para as férias da modernidade, mas não para ela. Senta-se na cadeira da esplanada ainda fechada e fica a ver. O sol começa a despertar, empurrou já um pouco o cobertor de nuvens com que se protegeu da humidade da noite e, de mansinho, afagando-lhe os braços nus, espreguiça-se. As gaivotas grasnam, parecem protestar, caminham sobre a praia, pousam perto dela, nos suportes dos guarda-sóis fechados, e olham-na com superioridade. Se ele estivesse com ela, ali, fotografá-las-ia. Eterna mania de captar tudo, com frenesim, como se quisesse aprisionar momentos, prender tudo na câmara moderna que, mais tarde, ligava ao po comprtátil computador, filtrava num qualquer Picasa e tornava obras de arte… Ela não precisava de máquinas, prendia momentos com a alma, registava-os no coração e, depois, tratava-os na memória filtrando-os também. Perto passava agora um desportista. E ela sorriu. A febre da vida saudável, a paranóia da corrida, levava homens e mulheres a fazerem figuras curiosas. Ridículas. Ali ia um homem, mais de 60 anos talvez, barriga flácida, meiinha branca, ténis à Nelson Évora, t-shirt garantindo a saúde a quem bebesse uma determinada água saudável, suor escorrendo repulsivamente pela cabeça careca e pescoço enrugado. À frente, uma jovem senhora, equipada também, rabo de cavalo e colar de pérolas (??) num passo estranho que a desengonçava. Marcha, seria? Voltou a concentrar-se nas gaivotas. Bem mais autênticas, pensou.
Levantou-se a caminho do supermercado. Ia ao pão quente – “Pão quente faz mal ao ventre!” – ouvia na memória as palavras da velha criada dos avós e, deliberadamente, ignorava a sensatez. Estava em férias! FÉRIAS!! E, depois dos espécimes que tinha encontrado a caminho da saúde, tudo o que lhe apetecia era não ser correctamente saudável e comer o que lhe agradava. Olhou o relógio. Tinha ainda meia-hora antes do supermercado abrir. Lentamente, foi andando pelo paredão. Chegavam já os miúdos donos da praia, bronzeados, tatuados, cheios de força, que começavam a carregar os colchões e a abrir os guarda-sóis. Gostava de os ver, bem-dispostos, jovens, cumprimentando-a todos os dias, de ano para ano, levando-lhe a caipirinha até à sombra alugada. Se ele estivesse ali, dir-lhe-ia que caipirinha pelo meio-dia era loucura. Mas ele não estava, partira há muito, e ela gostava de loucuras. Aliás, quanto mais esbarrava com as aberrações pretensamente correctas da modernidade, mais lhe apeteciam loucuras. O miúdo dos guarda-sóis viu-a e acenou-lhe um já por aí bem disposto. Ela respondeu um vou ao pão, até já. Lembrava-se das filhas pequenas, a acordarem a horas assim e a virem com ela ao pão. Não tinha saudades desses tempos, revivia-os sempre que queria nas suas memórias, e fazia-lhe bem vê-las mulheres, felizes, enérgicas, fazendo percursos de sucesso. Saudades tinha dele. Do abraço a saber a sal, das observações sensatas face às suas transgressões, dos jantares de peixe fresco e champanhe a ouvir rebentar as ondas… Olhou o relógio e foi ao pão quente. O ventre que tivesse paciência, se ficasse mal podia sempre associar-se ao coração!

2 comentários:

  1. Gostei muito do que escreveste, está lá muita coisa de ti, como sempre, na linha das tuas confidências sem medo, da tua "transgressão" nunca abandonada... Coragem, amiga!
    Espero que as férias sejam boas!

    ResponderEliminar
  2. Até que enfim que apanho o "Pão Quente"! O que eu adorava relê-lo...!
    Momentos aqui registados, plenos de cheiros a férias junto ao mar, tanto nos sentidos da Senhora como em muitas de nós, que nos vamos vendo neste cenário, tão adequadamente transportado para aqui...
    Não necessita realmente de máquina fotográfica, consegue passar-nos, bem filtradas, todas essas enternecedoras memórias.
    Sente-se o cheiro do pão quente, o cheiro fresco do mar de manhãzinha,o espreitar do sol por trás da nebelina e até ouvimos o grasnar da gaivotas. Adivinhamos as suas filhas a correr ao seu lado...
    Deve ser o céu, beber na praia, uma caipirinha ao meio dia.Juro que vou experimentar, oh se vou!

    ResponderEliminar