Mal entrou em casa, abandonou os sapatos na entrada. Era o seu vício em busca de liberdade. Era, pensava, o desejo inconsciente de deixar na rua o que a prendia, fisicamente, ao mundo de que não gostava. Lembrava-se de Santo António a quem, segundo Vieira, nem a poeira dos caminhos se agarrava aos sapatos que não tinha.
Mas ela não era santa, não tinha vocação para tal e, na maior parte dos dias, nada lhe apetecia um paraíso in-humano, sem vícios nem cor, sem pôr-do-sol, sem cheiro a mar, sem uma caipirinha gostosa, sem o riso das crianças. Noutros dias, raríssimos, apetecia-lhe sim a paz branca, vazia, desse paraíso dos santos sem sapatos. Dias raros.
Mas hoje, não queria paraíso algum. Sabia-lhe bem a sua casa, o cd que rodava a seu gosto, o espaço onde, descalça, se concedia o privilégio de mordiscar bolachas do IKEA esticada no sofá. Sabia que devia ir trabalhar, organizar dossiers, planificar trabalho e aulas mas, deliberadamente, concedia-se o privilégio da transgressão que sempre estar descalça lhe sugeria. Abriu um romance gasto, de folhas soltas,marcado por nódoas do café que nunca dispensava e deixou-se ficar, ouvindo a trovoada ao longe, ignorando as chatices, esquecendo as angústias que pareciam agarrar-se-lhe à sola dos sapatos. Tão bom estar descalça!
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