Na rua principal, na avenida, bem cedo, antes mesmo de chegarem os jornais diários, o cego chega e instala-se. Nasceu antes do politicamente correcto, por isso é cego e não invisual. Deve ter nascido também antes dos apoios sociais, porque vive das esmolas de quem passa. O cego senta-se numa cadeira de praia, será que alguma vez foi à praia?, e põe no colo um rádio grande, um daqueles tijolos que, às vezes, estragam tardes de Verão na Costa da Caparica. A sintonia é sempre a mesma, ou serão cassettes?, porque a música alterna entre o fado e o pimba. O cego fica sentado, se Inverno sob um guarda-chuva preto, se Verão sob um guarda-sol de riscas. O cego não diz nada mais do que "obrigado" se calha ouvir cair uma moeda na sua caixa de cadeado. Mais à frente, na mesma avenida principal, deita-se um coxo. Amputaram-lhe a perna esquerda e ele mostra o coto, sujo, as calças cortadas e a camisa nojenta. Foi à guerra. Junto dele, um cão tinhoso, de olhar húmido e triste, pelo destratado e uma lata com água. Se cai uma moeda, o coxo diz "Deus lhe pague" e, acho eu, o cão late baixinho. Ao fundo da mesma avenida principal, com lojas e cafés dos dois lados, fica uma repartição de finanças onde, sempre de coração apertado, as pessoas, aí designadas de contribuintes, entram de olhar fechado.
É neste país que eu vivo. São estas as realidades do meu quotidiano e são muitas, tantas-tantas, as dúvidas revoltadas que me atacam. Contribuo, afinal, para quê? Onde está a segurança social, onde ficam os apoios a quem precisa, porque é que o cego tem de esperar a moeda caridosa e o amputado a esmola envergonhada? Julgo que até o cão faminto compreenderá a angústia e, só para mim, pergunto-me como é possível que haja ordenados de 26 mil euros mensais numa televisão do estado, como podem os nossos deputados dormir descansados, enquanto há portugueses que vivem, expondo a dor, numa rua da cidade.
Indignação mais do que justa...beijinhos
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