sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Palavrões

Já se sabe que as palavras são fortes. Há quem as trabalhe, quem as cante, quem as eternize, quem se envolva nelas e com elas. Eu gosto das palavras. De algumas... Porque há palavras que me incomodam. E muito! Incomoda-me, cada vez que entro nas escolas, ouvir os palavrões com que os miúdos se mimoseiam. Não consigo habituar-me a palavras que ferem! Dói-me, mas dói mesmo fisicamente, a pobreza vocabular de muitos jovens, rapazes e raparigas, de hoje. Incomoda-me ouvi-los chamarem-se por insultos, e fere-me entrar nas escolas acompanhada pelo som dos escarros que mancham o caminho. Todos os dias, cada vez mais, penso que deveria educar-se para a cidadania e para o respeito pelo outro! E todos os dias, também, sinto que esta batalha não tem tréguas... Claro que também há adultos que cultivam o palavrão. Mas esses, acho eu, já não têm cura. 
Os miúdos, pelo contrário, podem mudar! Chego a pensar que seria boa ideia instituir uma multa, ou uma coima, para quem assentar a sua oralidade no culto do palavrão....

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Alice No País das Maravilhas

Entrava pelo espelho e encolhia. Depois, a Alice fazia parte de um mundo de magia, com rainhas más, coelhos apressados, amigos fieis e lugares fantásticos. Nas suas aventuras, a Alice corria, vencia perigos e ameaças, conversava com a lagarta fumadora e desafiava a imaginação. Li a Alice No País das Maravilhas muitas vezes, em diversas idades, e adoptei uma frase sábia dita pelo coelho branco quando Alice lhe perguntou que direcção devia seguir. Respondeu ele: - "Isso depende, minha menina, de para onde tu queres ir!". 
Quando, num pequeno jardim verde, em Guidford, encontrei a Alice, lembrei-me de novo da história. E voltei a pensar que é muito importante sabermos para onde queremos ir. Definirmos um ponto de chegada, uma meta, um lugar onde possamos lançar o ferro! 
O pior, e isso o coelho branco não diz, é que o ponto de chegada, muitas vezes, parece fugir eternamente à nossa frente! 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A propósito de conteúdos...

Todos os professores sabem que agora se trabalha, ou deve trabalhar, em desenvolvimento de competências, em vez de em aquisição de conteúdos. Faz sentido. Faz sentido que seja importante saber usar o que se conhece, ser-se capaz de desenvolver conhecimentos e capacidades, trabalhar tendo em vista progressão e não, apenas, aquisição. Concordo com tudo! Como concordo que avaliar não pode ser comparar; que classificar é bem diferente (ou devia ser) de avaliar; como concordo com pedagogias activas e não exclusivamente expositivas. Assim, convicta das minhas didácticas, gosto de encontrar estratégias que permitam aos bons chegar a excelentes e aos maus atingiram, pelo menos, o aceitável. Com esta preocupação, e talvez excessivamente imbuída do espírito algo facilitista da época, costumo perguntar a mim mesma, quando preparo aulas "O que é que isto contribui para a felicidade dos alunos?". 
Porque eu acho que ser feliz, ou procurar sê-lo, é louvável. Acredito, mas de verdade, que existimos para ser felizes e não para penar...Ora, vem isto tudo a propósito de um conteúdo recorrente nos programas de português: - A Carta! Parece fora do tempo. Alguém escreve cartas, na era do email e do sms? Mas pego nas cartas de Lobo Antunes, ou nas de Régio à mãe, e deixo-me levar. Das cartas voamos para as emoções e, aos poucos, surgem cartas impossíveis. Há cartas que não ouso classificar, avaliar ainda menos, mas que revelam, na escrita intimista, muita da dor e ternura caladas nos meus alunos. 
Gosto especialmente de estudar a Carta! 
Assim, não resisti a partilhar a carta que um miúdo, 16 anos, escreveu para se desenvencilhar da tarefa proposta: - Redige uma carta impossível!
data: dia do nunca, ano sem graça de 00e qualquer coisa
Querido Mundo,
Escrevo-te porque, imagino, não tens email. Que outra razão haveria para o fazer? Provavelmente, não tens telemóvel, e isso justifica o estado lastimoso a que chegaste. Obviamente, não tens facebook e, meu caro, quem não tem facebook não existe! Por isso, tu não existes! Não existes como aprendi a definir-te na escola, uma bola achatada nas pontas (nunca percebi bem como é que as bolas tinham pontas, mas nunca perguntei não calhasse ter de cumprir um PIT), mas apenas como uma massa húmida, relativamente harmoniosa e assustadoramente perigosa. Escrevo-te, dizia eu, para mostrar à minha professora de português que aprendi a lição: - A data em cima, a saudação inicial e, em breve, a despedida. Porque tu nunca receberás esta carta (como são importantes, as ditas...) e porque, se a recebesses, não serias capaz de a ler, esta é mesmo a carta impossível. 
Para que serviu então? Em que medida contribuiu para a minha felicidade - palavras da minha setôra -? Não sei. Mas quero acreditar que desenvolvi a minha competência da escrita. Bolas, um tipo tem de acreditar nalguma coisa das muitas que nos impingem na escola!
Então, caro mundo, chegou a despedida. Canto inferior esquerdo, (ou direito, depende da perspectiva).

Até um dia destes e cuida-te, ainda que, para isso, tenhas de usar as terríveis catástrofes ambientais.
Com amizade (porque a carta é informal)
Miguel

Tenho alunos assim. E fazem-me achar que vale a pena trabalhar!

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O destino?

Não sou determinista, não acredito em coincidências, não quero crer em bruxas, mas há coisas do diabo (seja lá ele o que for). Deve ter sido o diabo, ou um anjo, quem me aconselhou na compra do romance que me acompanhou na última viagem a Inglaterra... Como sempre faço, já no aeroporto procurei uma leitura para companhia. Quero sempre algo fácil, que não me obrigue a pensar muito e me distraia, simultaneamente, da chatice da viagem e da rotina diária. Desta vez, porque a oferta era reduzida, escolhi uma autora feminina (gosto da escrita das mulheres), inglesa, bem cotada no país de Sua Majestade, Penny Vincenzi.
Ainda no terminal 2 iniciei a leitura, mas foi já em pleno ar, com o cinto apertado, que entrei no mundo de Guidford. EXACTAMENTE o lugar do meu destino! O livro que comprei , Promessas desfeitas, antecipava a minha chegada e, entre histórias e História, cruzando personagens reais e fictícias, fui conhecendo a cidade da minha ternura. Deliciei-me com os percursos propostos, conheci a High Street antes de, pela mão do meu neto, entrar na Toy Shop, e verifiquei que o Matt Shaw existe no meu quotidiano. Este romance levou-me, uma vez mais, a Covent Garden, fez-me recuperar memórias e reinventar vivências.
É verdade mesmo que escolhi o livro ao acaso, mas também é verdade que o acaso tece, vezes demais, a nossa vida...

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Se fores Capaz...

Se fores capaz...
Dá-me o sorriso do sol,
Dá-me a frescura da chuva,
Oferece-me o vento Norte
Acolhe-me no lugar sem fim!

Se fores capaz...
Abraça-me sem amanhã,
Apaga as palavras agudas,
Faz rimas com versos brancos!

Se fores capaz...
fala-me com ternura,
fala-me de possíveis...
conta-me de eternidades.

Tu és capaz! 






domingo, 25 de novembro de 2012

E se o avião cair?

Embora não tenha nenhum medo de andar de avião, penso sempre que poderá cair. Penso com calma, creio que com a convicção de que não cairá, permitindo-me, por isso, olhar para trás, para o que deixo, e para a frente, para o que perco. Lembro os momentos bons que vivi já, e foram muitos, lembro as saudades dos que partiram, imensas, e penso que terei (ou teria) muita pena de não ver os meus netos crescidos. No meu filme interior, sempre, passam imagens múltiplas, cruzando-se em grandes planos, surgindo em narrativas ilustradas. Nem sempre, felizmente, sou personagem e delicio-me sendo público das minhas vivências. Vendo bem-bem, se o avião cair, só a ternura - a perdida e a adiada -me deixarão saudade de passado e  de futuro.

sábado, 24 de novembro de 2012

Mistério

Ela envolve-se num casaco de vison, verdadeiro vison, comprido e brilhante. Calça uns sapatos bem altos, tem o cabelo preso num rabo de cavalo descontraído e a maquilhagem é ligeira; ele, de sobretudo cinza-escuro, apoia-a com firmeza. Os dois caminham pela High Street, murmurando, olhando as montras cheias de luz e rindo sem alarde. Ele sugere um café, e sentam-se no Costa, na esplanada. Ela tira as luvas, discreta, e ele entra para, de seguida, voltar com um capuccino onde dança um pinheiro de Natal e um café que respira odor intenso. Ele abre um mapa e segue, com o dedo, o percurso a fazer. Ela, aquecendo as mãos na chávena larga, concorda fazendo perguntas breves.
Ela olha o relógio e ele, imediatamente, tapa-lhe o pulso garantindo, num murmurio perfeitamente audível, que ignore o tempo. No olhar dela passa um raio de tristeza, célere, mas profundo. Ela abraça-a. Levantam-se ao mesmo tempo, e eu quase espero ver aparecer, em grandes parangonas THE END. Mas não, não é cinema. Na vida real, ainda acontece o mistério.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Terminal 2

Eufemisticamente, designam-no de terminal. Objectivamente, é um hangar enorme, desconfortável e escuro, onde quem viaja em low cost aguarda o embarque. Há gente adormecida sobre os bancos, um pequeno espaço que tenta impingir a marca Portugal, e uma venda de café queimado, decerto não da Delta.
Sempre que viajo sozinha, distraio-me, ou tento distrair-me, a descobrir a vida dos meus parceiros de voo. Neste caso, adivinhar tornou-se fácil porque muitos deles trazem ao pescoço os cachecóis da equipa que o Benfica venceu. Não parecem tristes, falam alto, encharcam-se em cervejas e riem-se no meio de palavrões com que se presenteiam.
Neste terminal 2, onde pela primeira vez espero o avião, fazem sentido os estrangeiros embriagados. Porque o espaço é deprimente. Bem ilustrativo, penso, da porcaria em que se tornou Portugal...        

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Guildford

No meio do verde ergue-se a cidade castanha. O frio é constante, mas o calor interno é muito. Às sete, noite já, acendem-se as luzes de Natal. Há ponche bem quente na rua, muita música, crianças e coros em cada esquina. É uma Inglaterra nova, para mim, e sinto-me bem. O coração enche-se de ternura e as histórias surgem para responder aos pedidos do Manuel Bernardo.
Era tão bom poder fazer na vida como nas histórias, escolher um fim feliz...

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Conquistas

As pequenas conquistas merecem comemorações! E, nestes tempos terríveis, quando elas acontecem, mais vontade eu tenho de as assinalar. Hoje, depois de um dia de Museus, caminhadas, cantorias, concursos, chuvadas e gargalhadas, sinto que valeu a pena. Conquistei, quero crer, um espacinho mais na cabeça (e na ternura) das doces pestes que são os meus alunos de 7º ano.
Ser Professora é isto: - Ajudar a descobrir que a vida, a cultura e o saber, existem para lá da sala de aula. Sei que é uma profissão ignorada, sei que a sociedade nos despreza, mas eu não podia ser outra coisa! Os meus alunos (quase todos? Não. TODOS!) merecem   tudo. Merecem, até, a enorme estafa com que estou hoje.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Propósito de Ricardo Reis

Bem cedo, saio de casa para trabalhar. É Outono  a sério, um Outono suave, pintado de cores ternas e fortes. Gosto de sair cedo, mal o dia desperta, tentando, ainda que sem sucesso, iludir as horas. Oiço Reis "Não quero recordar, nem conhecer-me". E eu quero recordar. Quero recuperar outros amanheceres, outros tempos, outras existências talvez. Na minha memória, o cenário repete-se: - a minha cidade embrulhada em nuvens, o descer da Serra de sempre carregando ora sonhos, ora desilusões. Sei, como Reis, que "Melhor vida é a que dura sem medir-se", mas eu não quero ser Reis. 

domingo, 18 de novembro de 2012

ENTREGA

Numa crónica de Eduardo Agualusa, uma crónica fantástica que usei numa avaliação da minha turma de 10º ano e gerou o pânico, lê-se "Entregar-se implica esquecer-se de si". Tento esquecer as interpretações absurdas dos meus alunos e fico a saborear a frase. Desembrulho o texto e deixo as palavras rolarem em mim, tornando-se alimento, desfazendo-se em calorias de sentires. Lembro as primeiras aulas de dança, o Pedro afirmando que ninguém pode ser um bom dançarino enquanto dançar pensando que o está a fazer. Tinha razão, o Pedro, como tem razão Agualusa. De facto, entregar-se é como amar, é ser-se para o outro antes de se ser para si.
Amar é querer o Bem do outro, ter vontade de desfazer todos os escolhos da vida, ser capaz de atapetar com alcatifa terna as estradas da existência. É ser almofada onde, a cada noite, se encosta a cabeça confiante no futuro.
Nesta noite escura, (não descubro a lua), penso na entrega total, no amor, na vida, nos sorrisos, nos poemas que me deliciam, nos netos que estão longe...

sábado, 17 de novembro de 2012

0,5 - O Manifesto

0,5 foi a cedência do governo para reduzir a sobretaxa de IRS. Quando ouvi a notícia, fiquei hesitante. Seria verdade? Ou seria, apenas, uma brincadeira? Creio que esta medida é um verdadeiro insulto - Mais um! -. Em termos práticos, significa que conseguimos poupar quanto? 20 ou 30 euros?!... Este orçamento, o possível que, de facto, é impossível, vai matar a economia portuguesa, vai enterrar-nos definitivamente na miséria. Um governo que penaliza o trabalho, é um governo incompetente!
Oiço, vindo não sei de onde, o Manifesto anti Dantas. Desejo um Manifesto anti Gaspar:

- BASTA PUM BASTA!

UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM GASPAR É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D'INDIGENTES, D'INDIGNOS E DE CEGOS!
É UMA RESMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E SÓ PODE PARIR ABAIXO DE ZERO!
ABAIXO A GERAÇÃO!
MORRA O GASPAR, MORRA! PIM!
UMA GERAÇÃO COM UM GASPAR A CAVALO É UM BURRO IMPOTENTE!
UMA GERAÇÃO COM UM GASPAR À PROA É UMA CANOA EM SECO!
O GASPAR É UM CIGANO!

O GASPAR É MEIO CIGANO!
O GASPAR SABERÁ ECONOMIA, SABERÁ CONTABILIDADE, SABERÁ ALEMÃO, SABERÁ FAZER ORÇAMENTOS PARA TRÓIKAS; SABERÁ TUDO MENOS GOVERNAR QUE É A ÚNICA COISA QUE ELE FAZ!
O GASPAR PESCA TANTO DE ECONOMIA QUE ATÉ FAZ ORÇAMENTOS COM MEIO POR CENTO!!
O GASPAR É UM HABILIDOSO!
O GASPAR VESTE-SE BEM MAS FALA MAL!
O GASPAR ESTÁ A MATAR OS PORTUGUESES!
O GASPAR ESPECULA E ROUBA QUEM TRABALHA!

O GASPAR É GASPAR!
O GASPAR PARA POUPAR GÁS ASSINA PAR!
O GASPAR É VITOR!
MORRA O GASPAR, MORRA! PIM!



sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Botija

Faço ferver a água na chaleira sonora e, com mil cuidados, encho a botija. Vejo o saco ficar bojudo, abraço-o e enfio-o na cama. Traz-me memórias. Oiço a minha avó recomendar cuidado, o meu pai insistir para, depois de enchermos as botijas, voltarmos a repor na panela de ferro, junto ao fogo, a água retirada. O perigo, dizia sempre, era que a panela rebentasse. Nunca rebentou, mas faz parte das minhas memórias de criança o ritual do encher das botijas de  cada um de nós, cada uma - (o meu irmão não tinha, acho que os rapazes não podiam ter frio) - tinha o seu saco de cor diferente. Tive amarelas, azuis e muitas cor-de-rosa. Muitas vezes, na solidão gelada da noite, feita de muitos frios diferentes, puxava a botija e abraçava-me a ela tentando aquecer-me para além do corpo. Depois, durante a noite, a água arrefecia e eu deitava-a para o chão. De manhã lá ficava, caída, sem que eu lhe ligasse nenhuma.
Esta noite, quando o vento assobia forte e a chuva cai torrencial, volto a encher a botija. De novo é cor-de-rosa, de novo a abraço para afastar fantasmas. Esta noite, não a deito fora, não a abandono. Se for preciso, voltarei a enchê-la mas não a vou largar! Sabe-me tão bem a presença quente das minhas memórias...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

DÚVIDA

Olho a violência, as pedras arrancadas e lançadas sobre os polícias, as montras partidas, os insultos gritados, as máscaras que escondem identidades, e tenho medo.
Medo e dúvida. O que move alguns destes manifestantes?
Não parece, apenas, o desespero colectivo e justificado; não parece a revolta e o desejo de mudança. Ali, naquela gente que agride os iguais, que parte por partir, que lança pedras num acto de marginalidade gratuita, vejo mais do que os motivos reais, e válidos, que nos levam à manifestação e à revolta.
Tenho medo. Medo do aproveitamento abusivo da liberdade, medo do ódio, medo da banalização da violência.
O que fizeram ao meu País? Quem destruiu a minha gente?!

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O DESAMOR

Às vezes, muitas vezes, o que é mau é demais. Às vezes, parece que só esbarramos com incompreensão, com ódio, com agressões e ofensas. Oiço dizer, entre amigos, que isto acontece por causa da crise. Que andamos todos mais nervosos, mais deprimidos, mais stressados (odeio esta palavra que acho ter mais de moderna do que significado) e que, por isso, disparatamos com mais facilidade, agredimos com mais celeridade. Por nada, ou por muito pouco, sucedem-se ondas de insultos e críticas e, com medo, a ternura, a confiança, o carinho, voam para longe quais gaivotas face à tempestade...
Honestamente, acho que a culpa (se se pode falar de culpa) não é apenas da crise. Talvez ela contribua, mas, creio, não é a única responsável. As pessoas tornaram-se muito egoístas e, todas, excessivamente seguras da sua razão. Com uma facilidade incrível, julga-se e condena-se, agride-se e fica-se calmamente instalado em aforismos ocos como "quem semeia ventos, colhe tempestades". Ou seja, a teoria do olho por olho, dente por dente, pré-histórica, faz lei na sociedade da informatização e do delete! Estranho, mas real. O perdão, a compreensão, o respeito pelo outro, a capacidade de ouvir, parecem ter desaparecido completamente, ou quase, do nosso quotidiano. E eu tenho pena. Tenho muita pena, porque sinto que estou a  assistir ao elogio do ódio, ao culto do desamor, e eu ainda acredito que, adaptando Sebastião da Gama,  Pelo amor é que vamos...

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Não faz mal nenhum!

Entro na sala escondendo o sorriso. Ralho para disfarçar a ternura, dito o sumário numa pressa fingida e começo a tentar - TENTAR - que os meus meninos cresçam, que me sigam nas leituras, que não se percam nos desafios que lhes lanço. São alunos de 10º ano, são a minha direcção de turma (os meus meninos), são os alunos que, este ano, me fazem companhia na viagem de aprender.
Lemos crónicas, comentamos, partilhamos ideias e sonhos e, como posso, vou puxando as conversas para a vida, vou despertando para Valores e destacando a amizade. De repente, há um aluna que, calmamente, põe creme na cara. Devolvo a minha indignação. Será normal? Sera que a culpa é minha? Esbarro com as respostas...Lá vem o habitual não faz mal nenhum. E por não fazer mal nenhum, muitas enormidades se tornam rotinas e muitas aberraçoes fazem norma.
Gosto dos meus alunos, um gostar de verdade que me faz sentir bem com eles, que me faz levantar e ir trabalhar com entusiasmo, que me faz, muitas vezes, ficar até de madrugada preparando aulas. Mas não sou capaz de calar a minha revolta, a minha indignação, a minha tristeza, quando jovens de 15 e 16 anos aproveitam as aulas para se maquilharem. E sei porque não tolero! É que estou muito farta FARTA mesmo, de uma Escola maquilhada...

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Golegã

O fumo das castanhas adoça o nevoeiro. Há poças de água traiçoeiras, lama, botas de todos os tipos e cavalos ajaezados. Passam de peito largo, peitorais de luxo, num trote certo que faz música na calçada. Desviamo-nos para os deixar passar, reparando sempre nos trajes cuidados de amazonas e cavaleiros. Gosto dos chapéus de aba larga, da varinha bem segura na mão fechada, dos coletes ribatejanos e das calças alentejanas, justas, bem elegantes. Há sempre muita gente jovem, passeando a cavalo ou a pé, enganando o frio com uma jeropiga gostosa ou um punhado de castanhas quentes. Olho os retalhos de notícias que envolvem as castanhas, dois euros a dúzia, e não consigo deixar de sentir algum prazer por ver a senhora Merkel de cara bem amachucada a embrulhar o petisco... 
Entramos nas barraquinhas, tendas de produtos diversos, e enchemos os olhos de um Portugal amado. Ali estão os correeiros, as botas, as samarras, os capotes, as polainas, as pelicas, as saias de amazonas, os calções de montar, os arreios de qualidade. O ambiente é de festa e pluralidade, de gentes ainda orgulhosas por poderem montar a cavalo, de ciganos à procura de bons negócios, de curiosos, de crianças a aprenderem Portugal. Gosto de caminhar por ali, de me desviar sempre que oiço as ferraduras, de me encostar ao picadeiro vendo desfilar os cavalos, de assistir à dressage exímia. 
A noite cai de mansinho, começa a música nas tendas, as festas que, de certeza, se prolongarão até de madrugada. 
Não sei como consegue a Golegã resistir e continuar assim, viva, igual a si mesma. Mas sei que é muito bom que isso aconteça. Vem de lá uma força anímica que me fazia mesmo muita falta...

domingo, 11 de novembro de 2012

Q10

A casa enche-se de conversas, de coisas para contar, de sonhos jovens e projectos de futuro. Acende-se a lareira, aquece-se o ambiente, deixa-se até o cão entrar e vai-se ficando, encompridando o serão, a imaginar amanhãs. Ecoam na memória outros tempos, outros sonhos, e afastam-se com força os farrapos de desilusões. É um tempo novo! E é preciso conservá-lo limpo do caruncho antigo, porque até as desilusões devem ser individuais. Até às desilusões, cada um deve ter direito... Oiço os mais novos planearem, vejo esboços de vidas certinhas e felizes, e calo o medo do que a vida poderá fazer com aqueles sonhos a haver. 
Conheço o sonho por dentro, mas sei bem como dói e fere a desilusão. Carrego em mim medos que calo, mágoas líquidas que tento secar. 
No meio das conversas de sonhos e projectos alheios, com um bebé a chegar e mil desejos de o acolher na tal felicidade ideal, a minha realidade é salpicada de ódio, de raiva, de violência também. 
Deve ser isto a vida, suponho: - Sonhos e desilusões, projectos e fracassos, possíveis e limitações. Deve ser, talvez, esta antítese escandalosamente cruel que nos faz envelhecer, que define os pés de galinha, que escurece o olhar. 
Com certeza, é isto o que nenhum creme rico em Q10 consegue eliminar.

sábado, 10 de novembro de 2012

Reparando

Quando a vida, a obrigatória, abre uma brecha, sabe bem reparar no que está perto. É que, vezes demais, andamos tão ocupados em cumprir prazos, em juntar o pouquinho que o estado não nos rouba para pagarmos contas, em responder a solicitações de familiares e amigos, que esquecemo-nos de viver. Por isso, sempre que a existência abre uma brecha, eu aproveito para enfiar por lá a vida. Então, gosto de ir para o quintal, de apanhar as nozes do chão, de brincar com os cães, de olhar os velhos muros da Casa grande que me fez pessoa, de caminhar um pouco no meio das hortenses envelhecidas. 
Ontem de tarde, tarde de sexta-feira sem bruxas nem terrores, ofereci-me um destes raros momentos  de vida. Passeei no meu quintal, vi o musgo infantil e verde, enchi o olhar de memórias vividas e esbarrei com o Outono a existir aqui bem perto. As videiras, já sem bagos, estão vermelhas e, acho eu, sentem grande orgulho na cor que, intensamente, ostentam. Gostei de ver a energia, a força das folhas pintadas qual lábios de mulheres ousadas. 
Agora, quando a noite se faz silêncio escuro, recupero a minha tarde. É bom carregar energias!

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Cansaço

Sinto um incrível cansaço de certezas. Estou farta das pessoas que sabem tudo, que sempre opinam, que prontamente condenam, que não sabem compreender, que trazem na algibeira a crítica  e o insulto que despejam do alto do vazio que as forma. 
Ao longo da minha vida profissional, muitas vezes esbarrei com criaturas assim. Importantes, instaladas na sua auto-intitulada distinção, a olhar os outros com desprezo e inveja, com rancor e cobiça. À medida que fui envelhecendo, porque a vida é mesmo assim, fui desenvolvendo resistências, criando carapaças, treinando o hábito de desligar e de ignorar, de sorrir e calar.
Mas agora, talvez porque a situação é grave e ando (andamos) todos mais sensíveis, tenho dificuldade em suportar a estupidez da sabedoria total, cansa-me a frequência da crítica idiota. Estou cansada e farta do meu quotidiano profissional. Tão, tão, tão cansada...

O Amor

AMOR
Se fosse fácil, 
teria instruções.
Se fosse real,
teria corpo.
Se fosse razoável,
teria explicação.
Se fosse eterno,
nunca morreria.
Se fosse possível,
sempre existiria.

Mas é difícil.
Faz doer.
Faz sofrer.
Faz-se de loucura.
Faz-se de desejo.
Faz-se de mágoa.
Faz-se de culpa.
Faz-se de impossível!

E, ainda assim, há
Quem o cante,
Quem o procure,
Quem o chore,

Quem envelheça por ele,
Quem viva morrendo nele!

É uma coisa assim, o Amor.
Um tirano de asas angélicas,
Um ditador de ausências,
Um destruidor de sonhos.

Talvez não.
Ou talvez sim.
Se e quando,
Apenas, 
Tu és para mim.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Mais do que posso


Soneto do Amor Total

Amo-te tanto, meu amor ... não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude
Vinicius de Moraes

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

OBAMA


Nos tempos do farwest, dos cowboys e dos índios, a América era um lugar distante, feito de pradarias a perder de vista, de desfiladeiros assustadores e de muito cheiro a pólvora. Os cavaleiros, todos muito machos e cheirando a animália, salvavam as donzelas que, invariavelmente, amavam depois desesperadamente. Mais tarde, a América corporizou sonhos de liberdade, construiu-se no imaginário colectivo como o lugar de todos os possíveis, como a terra da igualdade, como o mundo onde, a par das estrelas de Hollywood, os comuns mortais conseguiam fazer da vida o que o desejo lhes pedia.
Na América, um dia, um negro teve um sonho. Foi morto por esse sonho de igualdade mas, depois de Martin Luther King, o mundo, mesmo fora da América, não voltou a ser o mesmo. 
O mundo, essa bola amachucada, elíptica e  absurdamente perigosa, continuou rodando e, de repente, a América surgiu poderosa e dominadora. Podia tudo, ou quase. Veio à Europa para ajudar a terminar a II Grande Guerra, foi morrer para o Vietname e, mais recentemente, invadiu países fazendo guerra. Para alguns, a América é o perigo, o materialismo no que ele tem de pior, a ganância e a violência. Para outros, como para mim, a América é a possibilidade de sonhar, é a diferença, é a oportunidade de uma vida diferente. 
A vitória de Obama, uma vez mais, veio materializar a diferença americana. É jovem, é negro, não pertence a um clã dominador. Mas tem um sonho, tem vontade, tem convicções e não desiste da mudança. Este homem não faz milagres e, por isso, é também fortemente condenado. Mas é também por isso que o admiro. Gosto da alegria deste americano poderoso, da forma ágil como sobe as escadas dos aviões, do sorriso pronto, do andar elástico, do olhar profundo.
No estado em que se encontra o meu país, quando não há uma ideia com sentido, a tristeza domina, a depressão é colectiva, as vozes são dolorosamente monocórdicas e os governantes se apresentam envelhecidos, curvados e cinzentos, fico com alguma inveja dos americanos. Porque Obama não vai resolver todos os problemas, não vai fazer felizes todas as pessoas, mas vai, tenho a certeza, dar confiança à maioria, revitalizar o povo e devolver a muitos a esperança num futuro que tem de ser possível. 
Hoje, gostaria que um dos nossos cinzentíssimos dirigentes, um só (não peço muito) reparasse que fazer diferente é possível, que continuar a colocar números à frente de pessoas a nada leva, que Portugal merece recuperar o sorriso e a cor com que se deve, creio eu, pintar o quotidiano.
Se, de repente, um Ministro Português, um qualquer, viesse a público sorrir, propor medidas de fazer e não de destruir, sugerir crescimento em vez de empobrecimento, emprego em vez de miséria, quero crer que Portugal faria eco das palavras de Obama e gritaria:- Sim, nós podemos!

SEM RAZÃO

As Sem Razões do AmorAS SEM RAZÕES DO AMOREu te amo porque te amo. 
Não precisas ser amante, 
e nem sempre sabes sê-lo. 
Eu te amo porque te amo. 
Amor é estado de graça 
e com amor não se paga. 

Amor é dado de graça, 
é semeado no vento, 
na cachoeira, no eclipse. 
Amor foge a dicionários 
e a regulamentos vários. 

Eu te amo porque não amo 
bastante ou de mais a mim. 
Porque amor não se troca, 
não se conjuga nem se ama. 
Porque amor é amor a nada, 
feliz e forte em si mesmo. 

Amor é primo da morte, 
e da morte vencedor, 
por mais que o matem (e matam) 
a cada instante de amor. 

Carlos Drummond de Andrade, in 'O Corpo'

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Outono

A  Serra a que chamo minha, os muros da Casa onde cresci, a nogueira que vi plantar, os plátanos da minha cidade, vestiram-se com as cores do Outono. É a minha estação preferida! Gosto das cores, dos cheiros, do fresco, das primeiras chuvas e o amanhecer cinzento. Gosto das noites perfumadas de fumos, dos vermelhos das trepadeiras, dos dourados envelhecidos das hortenses. O outono é um embrulho colorido de passado e de futuro. Deve ser por isso que gosto tanto desta estação, por acreditar que, apesar de muitos fins, há sempre oportunidade de recomeço.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A Caça

Era sempre assim, dantes, nas manhãs escuras de inverno. A azáfama começava de véspera, com o preparar da merenda, o transportar das armas desde a cave até ao hall de entrada onde, oleadas e descarregadas, esperavam a madrugada. Trazíamos também as cartucheiras de cintura, os sacos dos cartuchos, os oleados, as botas verdes de borracha boa, as meias grossas e os casacos quentes. 
O meu Pai organizava, o que significava dar ordens que nós, refilando mais ou menos, cumpríamos. As raparigas não iam caçar, mas nem por isso se livravam de ajudar nos preparativos. 
Lembro, intenso, o cheiro do cabedal, sinto nas mãos o toque do oleado (arrepiava-me!) e recordo como gostava de ensebar as botas do meu Pai. Fazia-o com cuidado, hoje penso que com amor, e gostava de ver a forma como o couro ia ficando escuro e brilhante. Ajudava também a fazer a merenda, grandes tortilhas com cebola e batatas, pão bem fatiado com presunto gostoso, garrafas de vinho, boleimas cortadas e, sempre, peças de fruta para comer à mão. Na véspera das caçadas, a agitação era muita. O meu irmão,  sempre reservado, tornava-se eléctrico, vibrava com aquelas saídas, arreliava-nos por não podermos partilhar a magia dos caminhos silenciosos e húmidos onde espreitavam os bichos. Empolgava as narrativas no regresso, acho que para que nós, as raparigas, nos sentíssemos mais diferentes ainda...
Na madrugada da caça, caçadores e ajudantes, todos acordávamos. Noite escura, ficava na cama, muito quieta, ouvindo o despertar masculino. O meu Pai não prescindia do duche, de barbear-se, de comer as suas habituais torradas- muito fininhas e com manteiga dos dois lados. O meu irmão, pelo contrário, desconfio que nem lavava a cara, tal era a excitação... No sobrado do corredor ouvia-lhes os passos, de trás para a frente, a carregar o carro. Depois, partiam. A casa voltava ao silêncio e eu ficava desperta, imaginando aqueles dois homens a pisarem o lavrado molhado, envolvidos em névoa, esperando, no silêncio, o correr de alguma lebre, o voo de um perdigão descuidado. 
Mais velha, quando o meu Pai já não caçava de salto, passei a poder acompanhá-lo. Metiamo-nos os dois no jipe, já não de madrugada, e fazíamo-nos ao campo. Clandestinamente, o meu Pai, já com dificuldade em caminhar, atirava do jipe e eu, inevitavelmente, fechava os olhos e dizia foge bicho!, levando sempre um sermão pelo meu conselho inoportuno. Nesses passeios, aprendi a distinguir o voo das rolas do das perdizes, as orelhas dos coelhos das das lebres, o saltitar das codornizes do dos tordos. Aprendi, também, o amor que os caçadores têm ao campo, à caça, à natureza pura e real. Com o meu Pai, senti misturarem-se as lágrimas da saudade com o nevoeiro matinal.
Hoje, com a chuva intensa lá fora, numa madrugada feita de silêncios, tenho dolorosas saudades das manhãs de caça, quando " eu era feliz, e ninguém estava morto"!

domingo, 4 de novembro de 2012

Bolo Finto

 Cortou duas fatias fininhas, com cuidado para que não se desfizessem, e untou-as com manteiga. Depois, consciente do excesso, regou com mel. Encheu a caneca de café bem forte e sentou-se no chão olhando o fogo na lareira.
Chovia muito lá fora, ouvia os cães a uivarem aos trovões distantes, e foi-se deixando ficar, lambendo o mel que escorria pelos dedos.

   Deveria ser assim a vida, frágil como o bolo finto, doce como o mel, forte como o café. 

Adorava bolo finto e sempre, ou quase, se deliciava ao pensar que era o sabor da sua terra, exclusivo, com sementinhas, escuro, bom mesmo duro se bem torrado.  
E se houvesse sementinhas para temperar a vida?!

sábado, 3 de novembro de 2012

Gabriela

Não me lembro, com grande pormenor, da primeira versão da novela Gabriela. Recordo o seu Nacib, tivemos um cão com esse nome, tenho uma vaga ideia do Dr. Mundinho (era o José Wilker, à época muito charmoso), mas não me lembro dos pormenores. Talvez por isso, tenho seguido a nova Gabriela sem preconceitos. 
Já há muitos anos, talvez desde o Casarão, que não seguia uma novela, mas rendi-me à Gabriela. E não é o erotismo (quase pornografia), nem sequer a hipocrisia violenta dos coronéis, o que me prende ao ecrã. 
O que me faz ficar esperando as dez e meia na SIC, é a alegria e a ingenuidade da nova Gabriela. Esta mulher é jovem, sonhadora, ignorante, ingenua mas, acho eu, cheia de magia e verdade. Com um sorriso, deita por terra as rigorosas normas sociais, com uma gargalhada desarma as imposições de  uma sociedade limitada e obtusa.
 Com ternura, Gabriela ama o seu Nacib sem cobranças, com a facilidade com que a chuva cai do céu e as plantas germinam.
Sem ser vulgar, a Gabriela traz-me uma visão doce do Amor. Um amor de fazer, de tocar, de sentir e saborear, sem regras nem obediências. Agora, ouvindo a chuva forte, muito intensa mesmo, lá fora, lembro a ternura da Gabriela e penso que Jorge Amado soube decifrar as emoções de qualquer mulher. Há alguns homens assim, mas são raros...

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Mulheres

Tenho um livro gordo, escandalosamente gordo, que conta a história de 100 - CEM - mulheres famosas da História de Portugal. Da Ferreirinha à Maria Amália Vaz de Carvalho, passando pela Maria Lamas e pela Luísa Todi, vão desfiando histórias de mulheres que, no seu tempo, fizeram a diferença. 
À medida que as conheço, que desvendo dores e sonhos, desistências e batalhas, vou pensando que nascer mulher é um privilégio mesmo. Se elas conseguiram impor-se, ajudar a mudar o mundo, criar lugares onde conseguissem ser elas mesmas, porque não poderemos nós, mulheres também, fazer o mesmo? 
Como disse Maria Judite de Carvalho, "a realidade e a ficção nunca estão muito longe uma da outra". 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A terra vermelha, o céu plúmbeo, a humidade intensa receberam-na com violência. Pegou no saco pesado no hangar do aeroporto, colocou os óculos bem escuros e enrolou o casaco caqui. África! Ali estava, longe, numa procura de sentidos, de experiências, no cumprimento, talvez, do tal fado a que se não pode fugir. Ao longe, via o mar. 
Um mar escuro, estranho, bem diferente do azul do atlântico onde gostava de nadar, escandalosamente distante do mediterrâneo mole onde, há quanto tempo?, fora feliz em cruzeiro de sonho. Respirou fundo. A decisão estava tomada, seria um ano de alheamento, de trabalho num outro mundo. O saco pesava, começava a lamentar o vício de viajar arrastando livros, e não descobria a cartolina com o seu nome. Alguém deveria ter vindo esperá-la. Ouvia, na memória, as recomendações do chefe - calma, o Tempo, em África, tem outra velocidade, as urgências outros ritmos. Comprou água e sentou-se esperando.
África emocionava-a. Não pelas imagens que construíra,  decerto conduzida por África Minha, mas pelo excesso. Excesso de humidade, excesso de luz, excesso de cor, excesso de miséria também. 
Com a máquina a tiracolo, foi caminhando. Disparava sem grande cuidado, tentando apenas captar instantâneos, imortalizar aquela chegada, aquele início de aventura. Sentia na alma as saudades picarem, morderem em dentadinhas dolorosas, mas resistia. O que deixara? Destroços de uma existência dorida? Desilusões acumuladas? O conforto de uma rotina de doer? E continuava disparando, fotografando, caminhando como se fugisse, ou como se fosse possível fugir, de si mesma, das memórias, dos fantasmas de ontem que temia se eternizassem. 
Quase à noite, deixou o Hotel Fez e voltou à caminhada. Uma esplanada vermelha acolheu-a. Pediu um capuccino, (que saudades de Roma), pousou a máquina e ficou olhando. Pena que os romances não se escrevessem com o alfabeto real, pena que não fosse possível, simplesmente, mudar de pele como de lugar. 
Dia 1 de novembro. Em Portugal dia de romaria aos cemitérios, dia de pedir santinhos também. Ela não gostava das rotinas, trazia com ela, sempre, os mortos amados, e eram mesmo a sua melhor companhia. Hoje, não teria de fingir-se enquadrada. Hoje, ali estava ela, numa África desconhecida, cumprindo um desafio profissional e tentando, com desespero, encontrar-se. Ou perder-se de vez. A seu lado instalaram-se as ausências. Ali estavam os juízos alheios, as certezas dos outros, os conselhos que não queria. Olhou-os de frente. Não os mandaria embora, sabia que partiriam quando quisessem, mas desprezou-os ao abrigo da força daquela África intensa que a acolhera assim, só, sem perguntas nem sentenças. Começava a sentir-se bem.