Era sempre assim, dantes, nas manhãs escuras de inverno. A azáfama começava de véspera, com o preparar da merenda, o transportar das armas desde a cave até ao hall de entrada onde, oleadas e descarregadas, esperavam a madrugada. Trazíamos também as cartucheiras de cintura, os sacos dos cartuchos, os oleados, as botas verdes de borracha boa, as meias grossas e os casacos quentes.
O meu Pai organizava, o que significava dar ordens que nós, refilando mais ou menos, cumpríamos. As raparigas não iam caçar, mas nem por isso se livravam de ajudar nos preparativos.
Lembro, intenso, o cheiro do cabedal, sinto nas mãos o toque do oleado (arrepiava-me!) e recordo como gostava de ensebar as botas do meu Pai. Fazia-o com cuidado, hoje penso que com amor, e gostava de ver a forma como o couro ia ficando escuro e brilhante. Ajudava também a fazer a merenda, grandes tortilhas com cebola e batatas, pão bem fatiado com presunto gostoso, garrafas de vinho, boleimas cortadas e, sempre, peças de fruta para comer à mão. Na véspera das caçadas, a agitação era muita. O meu irmão, sempre reservado, tornava-se eléctrico, vibrava com aquelas saídas, arreliava-nos por não podermos partilhar a magia dos caminhos silenciosos e húmidos onde espreitavam os bichos. Empolgava as narrativas no regresso, acho que para que nós, as raparigas, nos sentíssemos mais diferentes ainda...
Na madrugada da caça, caçadores e ajudantes, todos acordávamos. Noite escura, ficava na cama, muito quieta, ouvindo o despertar masculino. O meu Pai não prescindia do duche, de barbear-se, de comer as suas habituais torradas- muito fininhas e com manteiga dos dois lados. O meu irmão, pelo contrário, desconfio que nem lavava a cara, tal era a excitação... No sobrado do corredor ouvia-lhes os passos, de trás para a frente, a carregar o carro. Depois, partiam. A casa voltava ao silêncio e eu ficava desperta, imaginando aqueles dois homens a pisarem o lavrado molhado, envolvidos em névoa, esperando, no silêncio, o correr de alguma lebre, o voo de um perdigão descuidado.
Mais velha, quando o meu Pai já não caçava de salto, passei a poder acompanhá-lo. Metiamo-nos os dois no jipe, já não de madrugada, e fazíamo-nos ao campo. Clandestinamente, o meu Pai, já com dificuldade em caminhar, atirava do jipe e eu, inevitavelmente, fechava os olhos e dizia foge bicho!, levando sempre um sermão pelo meu conselho inoportuno. Nesses passeios, aprendi a distinguir o voo das rolas do das perdizes, as orelhas dos coelhos das das lebres, o saltitar das codornizes do dos tordos. Aprendi, também, o amor que os caçadores têm ao campo, à caça, à natureza pura e real. Com o meu Pai, senti misturarem-se as lágrimas da saudade com o nevoeiro matinal.
Hoje, com a chuva intensa lá fora, numa madrugada feita de silêncios, tenho dolorosas saudades das manhãs de caça, quando " eu era feliz, e ninguém estava morto"!
ó tempo volta para trás..
ResponderEliminarmil beijos
O Avô deixou a todos muitas lembranças boas. Recordo as saídas para a cça, de te ver ajudar na preparação, de o Avô nunca nos deixar entrar na casa das espingardas.
ResponderEliminarBons tempos...
se Descobrires como fazer o tempo andar para trás, leva-me contigo! Apenas queria enganar esta saudade imensa...
Beijo
Uma linda homenagem , num belíssimo texto, a recordar um Pai muito amado.
ResponderEliminarTemos que aprender a viver em paz, com as saudades dos nossos que partiram...
Também aprecio o tempo de caça.
Abraço.
Boa! Os anormais dos Verdes deviam ler para verem que os caçadores não são assassinos. A caça, como a senhora deixa ler, é Poesia!
ResponderEliminarA minha senhora põe poesia em tudo o que escreve!
EliminarSai naturalmente..