quinta-feira, 11 de julho de 2013

VELHOS AMORES

No meio do campo, sem ribeira nem bica de água por perto, ele continuava trabalhando. Quem vive da terra, e na terra, não conhece feriados, não respeita horário, não pica ponto, não fecha a porta. Com ele, sempre assim fora  e, agora, com 90 anos marcados na pele a rugas fundas, não se queixava. Para quê? De que servia protestar contra as tropelias do destino? Olhou o céu inclemente, escarrou para as mãos de forma a impedir que o suor fizesse escapar o cabo da enxada, e voltou à horta. Gostava do cheiro da terra assim, revolta, vermelha e húmida. A mulher, sempre mais dada às leituras, costumava dizer que o cheiro da terra molhada lhe lembrava mulher fértil. Ele ria-se, abraçava-a, e concordava, explicando que a terra é mulher também, carece de afectos, gosta que lhe mexam, dá frutos e alimenta uma humanidade inteira. Ela ficava séria, vinha a nuvem que, tantas vezes, ele via toldar-lhe o olhar e chamava-lhe Poeta. Ele brincava, garantia que a poesia era ela e que ele, quanto muito, e em dias que Deus estava de bom humor e o diabo distraído, só dava som aos poemas que ela carregava em silêncio.

Tinha saudades dela. A filha levara-a, para a tratar, dissera, mas ele sentia que a levara para que a morte se apressasse. Os jovens acham sempre que sabem tudo...Voltou a olhar o céu vermelho, raiado de sangue, parecia-lhe. Quando se amava como eles se tinham amado, 70 anos de vida lado a lado, a partida de um era o bilhete de ida do outro. A mulher não era dali, ele encontrara-a longe, junto ao mar, numas férias de estudante, quando, terminando o seu curso de engenheiro agrónomo, tinha rumado até Tavira para descansar. Ela estava lá, à beira-mar, sentada na areia e lendo poesia. Quando ele se aproximara, mal se sentara junto dela, ela dissera "há uma eternidade que te aguardo". Ele olhara-a com espanto, e ela rira - ah! o riso dela!-  apontando o poema que lia. Sophia de Mello Breyner, dissera. Ele rira também, garantindo que nas gargalhadas dela havia Vivaldi sem pauta obrigatória. Depois, num instante, tinham 90 anos e estavam afastados. No meio, 70 anos de cumplicidade, de leituras a quatro olhos, de viagens de descobertas sempre, de amanheceres com a porta trancada para que os filhos os não interrompessem. Agora, viera o fim. Ele, ali, na casa dos dois, cuidando da terra, vigiando as rosas que ela tanto protegia. Ela, lá, na cidade, em consultas médicas, procurando o impossível: - a cura para a velhice, o segredo para travar o tempo...

4 comentários:

  1. Talvez seja da hora tardia, mas eu acho que há uma maneira de travar o Tempo... É viver sem dramas, com amor total. (Não vale perguntar-me se isso existe)
    António

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  2. é mesmo assim, velhos amores nunca morrem

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  3. Um grande amor não morre, fica sempre conosco, no nosso quotidiano, a cada hora, cada minuto, num canto do nosso coração

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  4. Que lindo...e tão extensivo, profundo, pleno, eloquente,perturbador!
    Como é que a Setôra sabe destas coisas, sendo ainda nova como é..., deve ser, de ser professora!
    Adorei este amor. Inveja...

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