sexta-feira, 2 de março de 2012

Pastel de Nata

Ajeitou um pouco o corpo dorido, dobrou o cartão grosso com que enganara o frio húmido da noite e ficou olhando. A fila era longa, o linguajar plural, o odor intenso. Ele era a presença estranha, incómoda, a nódoa a manchar uma paisagem perfeita. Reparou no cuidado com que várias objectivas o evitavam, a foto devia ser perfeita, levando os fotógrafos turistas a mudar de ângulo. Também ele já fora turista, já tirara fotografias quase perfeitas, já fizera fila para comprar o verdadeiro pastel de nata. Sim, ele já tivera vida, emprego, sonhos cumpridos. Agora, vítima da idade (que chatice não ser ainda velho para reforma, nem jovem para novo emprego), ali estava, na rua, com o passado penhorado e o futuro adiado. Sorriu.
Recusava-se ainda a estender a mão à caridade. Doía-lhe o orgulho, magoava-o a humilhação e, por isso, tentava arrumar carros, carregar sacos de supermercado, fazer pequenas tarefas que lhe permitissem não morrer de fome. Continuava procurando uma solução: - Partir? Como, se não tinha nem como pagar o bilhete de ida?! Quanto mais pensava, mais concluia que morrer seria a melhor opção... Perdera tudo, morrer era a oferta que o seu país lhe fazia.
Afastou os pensamentos e voltou ao seu cenário agora diário. Tantos pacotes cheiinhos de pastéis de nata! Lera, uma leitura roubada num jornal de quiosque, que um dos muitos ministros garantira poder o pastel de nata ser um motor de desenvolvimento. Lera, também, a proposta de fazer pastéis de nata sem açucar, light?, e rira-se na sua descrança. Um mundo excessivamente preocupado com calorias e aberrações e, achava, pouco atento à realidade de pessoas amargas. Excessivamente light o mundo, talvez...

2 comentários:

  1. Excessivamente preocupado, este mundo, com o supérfluo, com os excessos de gordura do estado, com os pasteis de nata polvilhados com "icing sugar" ou com canela, esquecendo a falta de gordura e de calorias na fome de tanta gente.

    Cumprimentos

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  2. Coitados dos sem abrigo, ninguém os tem em consideração, ninguém se dedica a eles. Podiam muito bem procurar resolver estas tristezas.
    Só coversas de chacha como a dos pastéis de nata...
    Só aparecem imbecis!

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