Cheguei cedo, antes de permitir que o cansaço se instalasse nas crianças que devia observar. Era uma sala soalheira, forrada de desenhos, instruções de bom comportamento, letras e algarismos. Sentados em U, atentos e curiosos, os miúdos viram-me entrar. Sentei-me ao lado dos olhos enormes do Miguel, e assisti às apresentações. Lá estavam a Inês, a Joana, o João, o Salvador, a Sofia, o Miguel, entre outros olhares, ganchinhos coloridos no cabelo e alguma vergonha bem disfarçada. Afinal, eu era uma visita, uma intrusa no espaço deles. Com mestria e eficiência, o meu colega foi gerindo o processo e, aos poucos, a turma foi respondendo, opinando, discordando, construindo saberes. Tinham opinião, exprimiam-se com propriedade, ouviam-se e confrontavam diferenças sem agressão. O Miguel, encostando-se um pouco a mim, tentava ler o que eu escrevia. No final, baixinho, pedindo-me que não levasse a mal, declarou que tenho uma letra horrível. Tem razão, o Miguel.
Na sala seguinte, o desafio era a leitura de um texto longo. À frente da turma, e apesar de estarem no 2º ano apenas, os miúdos pegaram no texto e deram-lhe vida. Avaliaram-se, criticaram-se.
Finalmente, a turma maior. Vinte e três crianças de 2º ano, todas com a vida a conquistar, a lerem poesia. Nem mais! Surpreendente o espírito crítico, a forma como detectavam erros nas diferentes leituras, o brilho no olhar quando diziam que gostavam de ler.
Esta experiência fez-me bem. Ajudou-me a encarar o dia, bem longo e difícil, e lembrou-me que vale a pena ainda trabalhar com quem gosta do que faz, olhar os alunos e ajudar a criar novas dinâmicas. Agora, quando a noite escura pesa demais, recordo a Maria que, com todo o á-vontade, me perguntou, à porta da sala, "tu pintas o cabelo?", e sorrio. Apesar das imensas e chocantes dificuldades das escolas, embora a crise esteja a afectar até as crianças, ainda se fazem coisas muito interessantes, e com muita qualidade, no nosso ensino. No frio desta noite, envolta numa insónia dolorosa, conforta-me o dia de ontem.
Os "putos" a aprenderem a ser homens.
ResponderEliminarCumprimentos.
Os miudos, os olhares atentos e meigos, os afetos e as ligações que com eles se criam, são o melhor destas nossa esquecida profissão. Eles não têm máscaras. São autênticos...Por enquanto...
ResponderEliminarÉ bom apurarem as sensibilidades das crianças desde cedo, tornam-se mais humanas pela vida fora.
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