Está em grande, na moldura, e mantém viva uma tarde de caça, talvez no Assumar, sem dúvida no Alentejo. Ele tem um boné verde, esse boné que tantas vezes me fez voltar atrás por ficar esquecido, e olha a objectiva. Olha-me, também. Como me olhou naquela tarde, em tantas tardes, vendo-me por dentro e lendo-me em silêncio. Era bom ir com ele à caça, de motorista ou mochileiro, ouvindo-o e partilhando silêncios. Ensinava-me a distinguir o voo da perdiz do do pombo, ria-se da minha ignorância quando apontava um coelho que era uma lebre, irritava-se sempre que o tiro certeiro me fazia fechar os olhos e ter pena do bicho. Gostava das tardes no campo, das madrugadas geladas, das caminhadas e das aventuras de enfiarmos o jipe por regos e lavrados. Era nestas alturas que mais conversávamos, às vezes sentados num tronco, outras vezes no conforto do jipe. Uma tarde, com a espingarda escondida porque era ainda o defeso, o jipe atascou-se. Bom, verdade mesmo, eu atasquei o jipe. Uma proeza, garantiram... Os telemóveis não tinham sinal e foi preciso esperar que viesse o homem do Monte recolher o gado para, com o tractor, nos desatascar. Havia vacas, muito grandes e castanhas, e eu estava cheia de medo! Lembro-me de lhe falar de um poema de Cesário "Já não receias tu essa vaquita preta,// que eu segurei, prendi por um chavelho", e de ele ter brincado comigo duvidando que eu conseguisse segurar alguma das vacas castanhas, que me ameaçavam, por até dois chavelhos!! Hoje, com as estrelas por companhia, olho a fotografia e sinto o cheiro do campo, o peso do saco dos cartuchos, a conversa sempre constante. A saudade dói, mas a presença ausente do retrato com boné faz-me, sempre, real companhia.
Há fotografas que nos falam, que nos guardam segredos, que nos avivam memórias, que nos despertam sentires, que nos libertam emoções, que nos enchem de saudades, que nos lembram alegrias, que nos fazem chorar...
ResponderEliminarTanta coisa nos pode mostrar, uma fotografia!
Cumprimentos.
Conseguiste fixar, admiravelmente, um instante e fizeste com que se "visse" o homem do boné. Sei que sofreste, ao mesmo tempo. Um beijo.
ResponderEliminarUma evocação muito bonita, cheia da tua sensibilidade.
ResponderEliminarCusta olhar para trás, ver outra vez, e depois continuar em frente.
Um beijo