Enterrou os pés descalços na areia molhada. Via, parado, a forma rápida como a sua pegada desaparecia, apagada pelas ondas, engolida pelo movimento da própria areia. Em miúdo, há quantos anos fora isso?, corria pela areia num desafio solitário gritando às ondas um não me apanham bem disposto. Iam, ele, os pais e os irmãos, para as praias de um Algarve ainda de L singular, desconhecido do mundo, com longo areal a explorar. Já então era o último a voltar a casa, às vezes de noite cerrada, esticando até ao limite o prazer da praia. Lembrava-se bem de escrever na areia o nome da primeira namorada A..., de entrelaçar as letras com conchinhas, de combinar com as ondas carícias especiais para quando a trouxesse ali. Porque sabia que havia de a levar ali! Depois, tinha atravessado os tempos da praia social, o Tempo dos chacais que Sophia definia como ninguém. Ela lia Sophia. Ela deitava-se na areia, fazia um anjo, fechava os olhos e falava de poesia. Ela chorava com os poetas, pelos poetas, enrolando os versos com a facilidade inconsciente como que enrolava a ponta do cabelo no dedo indicador. Ela levanta-se da areia, abraçava-o, e fazia-o jurar-lhe que aquele anjo na areia, ainda quente, seria sempre uma presença entre os dois. Ela, repetindo "já não tenho palavras, gastei-as a negar-TE", falava-lhe de Torga com uma seriedade que o fazia sorrir. Tinham combinado que iriam um dia a S. Martinho de Anta, ela prometera um girassol enorme ao seu Poeta, mas esse projecto ficara por cumprir. Como tantos outros. Como a caminhada até Santiago, a semana na neve, a visita ao Tango argentino, o cruzeiro romântico na costa Amalfi. Sempre os adiamentos justificados com a vida, as pequenas rotinas, o quotidiano. Tudo a engrossar a lista do amanhã, a lista que a fazia ficar séria, olhar húmido, quando referia, num abraço quente, que a vida estava a passar depressa demais. Subiu o fecho éclair do blusão e olhou o céu. A noite chegava, o vento vinha húmido e fresco. Sentou-se na rocha e abraçou os joelhos desejando ser uma ostra e poder fechar-se em si mesmo. Desejando, ainda, ter uma casca dura capaz de sobreviver. Sentia os pés gelados, doendo de frio, e aquecia-lhe o coração aquela dor física intensa. Se ela estivesse ali, falar-lhe-ia de sentires. Mas ela partira e, embora tivesse prometido que ficaria piscando na estrela polar, olhando o céu na continuidade do mar ele apenas via vazio. Enxugou os olhos à manga do blusão. Já não havia anjo na areia, já não havia poesia à noite, já não havia chocolate no frigorífico. Agora, sem ela, havia apenas o sal das lágrimas. Tão salgadas! Mais salgadas que aquele montão de mar onde continuava procurando por ela.
Será que a vai encontrar?
ResponderEliminarSerá que lhe vai dizer que é sempre tempo de recomeçar?
Será que ainda a poesia da noite voltará a ter o mesmo significado?
Será?
Cumprimentos.
Um belo texto.
ResponderEliminarE a vida passa mesmo depressa demais. É por isso que temos que agarrar os bons momentos e vivê-los intensamente.
Um abraço
Gostei muito, Luísa. Não digo mais.
ResponderEliminarUm beijo
Sempre que a morte se torna assunto, que leva quem nos está próximo, que leva apenas um conhecido ou até um completo desconhecido chego sempre à conclusão de que o Homem é estupido. Estupido porque insiste em fazer a vida de distânciais, de confrontos e angústias que podia evitar. Já basta a distância que a morte certa causará. E aí sim será tarde de mais...
ResponderEliminarNão gosto da ideia de calma, de que há tempo. Sabemos lá o dia de amanha, nem sequer sabemos o que acontcerá nos próximos minutos.
Será que faz sentido "voltar para viver os instantes que não vivi junto ao mar"? Porque não jogar pelo seguro e vivê-los agora?
Adoro-te
Filipa
Querida,
ResponderEliminarconcordo com a minha irmã. Temos de viver a vida a cada instante. Não podemos ficar a vê-la passar...
A vida é aqui e agora!!
Beijos grandes...