quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Vida de cão

Lambia  as feridas recentes pensando na vida. Sabia-lhe a boca ao líquido castanho que lhe tinham despejado sobre a pele, fazendo arder, e semicerrava os olhos. Estava cansado, moído da sova que levara - Ah! mas também se defendera! O Leão não tinha ficado a rir-se! - e tinha calor. Enroscou-se na cadeira, sim tinha a sua cadeira verde ali bem perto da porta, à sombra, num lugar de onde observava o voo dos melros, a chegada dos intrusos, as corridas loucas das lagartixas, e ficou vendo as imagens que lhe passavam à frente. Lembrava-se de ser muito pequeno, cachorrinho ainda, e ter feito uma longa viagem num colo macio, sempre mimado pela nova dona. Aprendera-lhe o cheiro e, embroa ouvisse dizer que era impossível, adivinhava-lhe a chegada muito antes de a poder ver. Então, os dois viviam numa casa pequena onde ele impusera algumas regras que, aos olhos da dona, pareciam desordens e disparates. É verdade que tinha roído o computador, desfeito a ficha, estilhaçado a carpete, rasgado algumas toalhas, entornado o saco da ração, estragado os sapatos novos, cavado no vaso das malvas, comido um dicionário de símbolos, mas, que diabo, um cão tem de ocupar-se e, convenhamos, um dia inteiro sozinho fechado em casa era duro... Depois, tinha mudado de casa. Chegara ao espaço que, hoje, conhecia de cor. Ali podia correr, ali explorava os ninhos dos melros, os ovos das galinhas, as covas das raposas, e, se não fosse a velha senhora que o ameaçava com uma vassoura gasta e gritava sempre "Vai para a tua casa!" (Ela não teria percebido que a SUA casa era aquela?) , era quase feliz. Quase... Porque faltava-lhe a dona. Faltava o colo macio, a janela que ela entreabria para que, de noite, ele pudesse entrar e dormir sobre a cama dela. Às vezes, chegavam a partilhar a almofada, e como era doce ouvi-la respirar, sentir-lhe o cheiro e lamber-lhe a mão que sempre ficava sobre o lençol.. Tinha saudades dela. Saudades das festas, dos mimos, dos cuidados que tinha com ele.
Bom, decididamente, estava a ficar velho e lamechas, pensou. Afinal, não lhe faltavam cuidados, uma boa cama, comida e água sempre, e até aquela cadeira verde para observar o mundo e lamber as feridas. Ouvia o seu amigo Tango a ladrar, ao longe. Fossem outros tempos e iria ter com ele, impôr respeito, era mais velho!, exigir sossego. Mas hoje, assim ferido, não tinha coragem. Talvez o fim estivesse  a chegar. Já não tinha a força de outros tempos... E já brigara muito! Quando se lembrava das vezes que fora cosido, ainda se arrepiava. Um dia, julgara que lhe iam mesmo sair as tripas, tivera de ficar longe de casa, apenas ouvindo vozes estranhas, rodeado de muita brancura e objectos ameaçadores, sentindo as lágrimas distantes da sua dona. Olhou a cicatriz grossa, fora o Leão que lhe enterrara os dentes até às costelas e nunca mais o pelo voltara a crescer ali, mas achava que aquelas marcas lhe davam um certo poder, como se provassem a sua forma de reagir às desconsiderações do destino. O Tango chegou-se a ele.
Esse agora nem dormia em casa, encantado com a cadela vizinha, uma rafeira sem graça, que se pavoneava convencida de ter pedigree. Fossem outros tempos e dava-lhe uma lição.Mais jovem, não havia fêmea que lhe escapasse. Agora, preferia ficar ali, esperando o afago certo sempre que a porta de casa se abria, farejando o ar na tentativa de sentir próximo o regresso da dona. A velha senhora dizia, sempre, que estes cães são parvos. Talvez tivesse razão. Só os parvos podiam sofrer tanto, ter tantas saudades, e continuarem respirando!!

6 comentários:

  1. São estes, os "parvos" que dão valor ao amor, à amizade, à entrega.
    São estes, os "parvos" que entendem o que é a dedicação, a pessoalidade, o sofrimento.
    São estes, os "parvos" que sonham, que desejam, que sentem.
    São estes, os "parvos" que, apesar de pequenos e insignificantes, são grandes nos actos, na generosidade, no pensar.
    Se não existissem "parvos" destes neste mundo, a quem os soberbos, os idiotas e os importantes iam lançar o seu desprezo arrogante?
    Cumprimentos.

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  2. Gostei muito do texto. E das fotos.
    Gosto dos cães, mas tenho um certo medo,e sou demasiado preguiçosa para ter um em casa.
    Já ia tendo um a que me afeiçoei, mas não pude ficar com ele. Tive pena, na altura não pôde ser doutra maneira.
    Um abraço

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  3. Um belo texto, carregado de simbolismo e verdade.

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  4. Passei para dizer um Olá.
    Descobri este blogue, através da minha Amiga MJ Falcão.
    Gostei e já sou sua seguidora.

    Abraços!!!

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  5. Muito bonito, está lá tanta coisa...
    E as fotografias mostram bem a ternura deles.
    A velha senhora também a vi...
    beijinho

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  6. Querida,
    o Buda sabe bem o valor da amizade e sabe, ainda melhor, que embora longe a dona o adora muito e morre de saudades dele. A promessa de o levar comigo assim que tenha uma casa boa para ele, é uma promessa que será cumprida!
    Enquanto não o levo para o meu colinho, sei que o deixo em boas mãos. E,embora sob muita refilice, sei que também tu os tratas bem e que não deixas a "velha senhora" fazer-lhes mal.
    Amizades verdadeiras, sentidas e desinteressadas como a que tenho com o meu adorado Buda, não são fáceis de encontrar.
    Tomara muita gente ser como ele!!
    Beijos

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