Não tinha nif, perdera deliberadamente o cartão de cidadão, enfiara no fundo da gaveta das cuecas os cartões de crédito e de débito, desligara o telemóvel e fora tratar da horta. Precisava limpar as alfaces, havia lagartas enormes, e queria apanhar os tomates para congelar para, ao longo do ano, poder fazer as tomatadas carregadas de oregãos de que tanto gostava. Com medo das cobras que sabia inofensivas, calçou as botas, as luvas, pôs o largo chapéu na cabeça e fez-se ao trabalho. Sabia-lhe bem mexer na terra, ouvir o silêncio, sentir o suor a escorregar-llhe por lugares indizíveis.Era só ela consigo mesma, e estava bem assim.
De repente, alguém chamou. Ergueu-se entre arreliada e surpresa. Quem seria? Ela tinha-se certificado que deixara o mundo à distância... Lentamente, dirigiu-se ao portão. Um homem estranho, careca com franjinha, insistia em vender-lhe uma fotografia que, dizia ele, fizera da sua horta desde uma avionete. Face à irritada questão de quem o autorizara, o homenzinho, franjinha colada de suor gorduroso, afirmou que não precisava de autorização, lembrou-lhe que no google earth a horta também estava localizada e garantiu que a foto, vista aérea (claro) só custava 150 euros. Ela não comprou. Voltou ao trabalho irritada e revoltada. Porque não tinha o direito de ser clandestina no seu espaço? Que mundo maluco era este que a espiava do céu, da terra e sabe-se lá mais de onde?! Ao arrancar umas ervas encontrou uma toupeira atrevida. Olhou-a com atenção. Traria ela um periscópio de registo? Seria uma espia disfarçada? Teria Facebook? Se tivesse, poria um like?...
Nunca se sabe o que o mundo nos reserva. Toupeiras espias? Ou águias fotógrafas?
ResponderEliminarEstamos nas mãos do Big Brother...
Os cartões de crédito e débito, guardados na gaveta das cuecas?! ...
ResponderEliminarAmei este texto!Adorei!
Gostava tanto de "ver" a toupeira no face, e a pôr um like...
Já não se pode estar descansado nem na própria horta!