domingo, 15 de março de 2020

CONTO PARA ENTRETER

Estar em casa, permite ter tempo para ler, sonhar, escrever. Tentando ocupar a cabeça, fugir um pouco ao receio colectivo e justificado, lembrei-me que o meu perfume, o mesmo há anos, vem de Itália!


É UMA HISTÓRIA DE AMOR DA TOSCÂNIA
(Ou publicidade ao meu perfume Tuscany)
Este homem e esta mulher nunca chegaram a ser apresentados ao mundo real. Apaixonaram-se no primeiro encontro, em Siena, na Piazza del Campo. Recordavam-se apenas de um excesso de luz. Um sopro. Dois perfumes feitos da mesma essência. Ela ouvia-o e não concebia que as palavras pudessem ter existido antes daquela voz. Riam-se, e ele descobria que o riso dela espalhava estrelas pela noite da Toscânia. Diziam coisas sem nexo. Nos braços dele, ela sentia-se resplandecente como o mármore. Juntos, não precisavam de imitar ninguém. O coração da terra batia ao ritmo fundo daqueles dois perfumes de uma só alma. A alma que os unia não cabia nos limites impostos pela humanidade e, por isso, os dois se fechavam num só. Nas praças, por onde vagueavam fantasmas do Amor, só os pombos citadinos sentiam o frémito que aquela paixão provocava. Nas esplanadas, entre o café e o chantilly repartido, os olhos dela prometiam o prazer supremo para a eternidade. Davam as mãos e partiam para aquele quarto onde se sentiam vivos, possuídos por Vénus, criadores e repletos de fragrâncias estonteantes.
Depois, um dia, como todos aqueles dias cheios de horas e minutos ansiosos, acordaram tarde pela primeira vez. Ele tinha de correr. Ela, segura na nudez apaixonada, enlaçava-o e prometia o resto. O que está para além de tudo e que só as almas gémeas podem desvendar. Ele adiou. Abandonou aquele corpo amado, afagou o sexo que se lhe oferecia num até breve já saudoso, e correu para o duche. Na cama, sentindo o cheiro da carne amada misturado com o sabonete que adivinhava escorrer e cobrir de espuma branca a sua paixão, ela lembrava aquela tarde, em Siena, onde um perfume único a despertara para uma aventura que lhe parecia integrar um romance esquecido do séc. XIX. Via a Piazza del Campo projectada pela sua recordação no cristal do frasco do perfume que nunca a abandonava. Agora sentia a sua presença, a intensidade do seu olhar a despir-lhe, lenta e ternamente, o vestido preto que usava naquela tarde. Era Setembro. Fim de férias e início de nova vida. Para ela, a vida tinha começado ali. Olá! Estou apaixonado por si! Assim. Fora sem delongas, sem retóricas desnecessárias ou discursos balofos e gastos, que ele tinha nascido para ela. As estrelas vão começar a pintar o céu, respondera. Sentia que não era dona das suas palavras porque, até o ouvir, tinham sido sons inócuos. Adoro o seu perfume! E ria. Ria agora, enquanto ele se barbeava, cuidadosamente, sem toalha à cintura e espreitando, com um enorme sorriso branco, o seu riso de recordação alegre. Lembras-te do nosso primeiro encontro? Claro! Como posso esquecer um vestido negro, um éclair tentador, as pérolas simples e o olhar único daquela que me levou ás nuvens e me deixou espreitar o paraíso? Sempre assim. Alegre, feliz, cheio de amor por ela. Tenho de ir. Tenho de trabalhar. Não… era um não consciente da impossibilidade do sim. Era um não náufrago perante a enorme vaga que se anunciava. A vaga de pessoas. Os outros a entrarem no seu mundo com uma sem-vergonhice que doía. Fica comigo. Vamos ver os pombos, vamos correr a Toscânia, ouvir os violinos, conhecer os segredos das fontes e conversar com o silêncio. Amanhã. Depois, sempre. Agora tenho de ir. A vida, o quotidiano, não se verga perante a força da paixão. Tenho de trabalhar… Deve ser por isso que o mundo caminha mal. Os homens esqueceram o mistério da paixão, desaprenderam os rituais do amor, sucumbiram perante as exigências do material, da sociedade. Agora, o perfume que a invadia não era agradável nem dourado. Agora, sentia entrar no quarto um odor acre e negro que trazia o adeus. Olhou-o de novo e descobriu um raio de tristeza que lhe atravessava o olhar. Venho logo. Volto para ti, espera-me! Viu-o então, O olhar denunciava a dor do afastamento. Saiu da cama e abraçou-o. Tremeu ao sentir os dedos amados que lhe percorriam o corpo. Devagar, do pescoço até ás nádegas, ele acariciava-a. Soltou-se lentamente, viu-o sair. Da janela assistiu à sua entrada no automóvel, ouviu o motor trabalhar e, aos poucos, viu-o transformar-se num ponto pequeno, pequenino, mais pequenino, tão pequenino que desapareceu. Arrepiou-se. De repente, sentiu passar por si um fantasma assustador, portador de uma qualquer desgraça. Escancarou a janela, deixando que o sol da Toscânia afastasse os pressentimentos que não queria aclarar.
Olhou e viu o vazio da cama, ainda há pouco repleta. Agora, tinha de reorganizar a existência. Alguém lhe tinha dito, talvez uma  amiga, quiçá a mãe, que não se pode viver de amor e uma cabana. Que pena!
 A ela apetecia-lhe ficar eternamente ali, com ele, envolta no perfume que a seduzia e segura por aqueles braços aos quais tinha dito até logo cheia de desejo de já.  Abriu as torneiras e deixou que a banheira se enchesse completamente. Depois, como quem prepara o último acto de uma ópera por criar, deitou os sais de banho, duas gotas do perfume dele e mergulhou. A água tépida fez reagir a pele. Era jovem. Depois… Porque há-de haver sempre um depois?
O sol já invadia a cidade quando saiu. Sentia na pele os raios da grande estrela, mas o calor interior sobrepunha-se. Estava apaixonada! Entrou para tomar um café num simpático Bristrot. Sorriu ao empregado que a tendeu e pareceu-lhe vislumbrar sinceridade no sorriso devolvido.
E agora? Tinha de decidir muita coisa. Tomar providências – como o Pai costumava dizer nos almoços de domingo em família. Por onde começar? Telefonar para casa e dizer não volto? Não, os pais nunca compreenderiam tal atitude. Dizer que ía viver em Itália com alguém que não sabia quem era? Com alguém que só podia viver em Siena para a fazer feliz? Diriam que enlouquecera. Passou perto da Catedral e entrou. Talvez Cristo a ajudasse, Afinal, lembrava-se bem!, sempre lhe tinham ensinado que Cristo ouve e ajuda quem Nele acredita. Acreditaria ela? No momento não podia duvidar da sua Fé. Acreditava que Alguém tinha de entender o Amor e, assim, falou para o Cristo-Homem que parecia sorrir-lhe da cruz. O que hei-de fazer? O único mandamento, o maior, é o Amor. Foi a resposta que levou no coração.
Cristo, ajuda-me! Foste Homem, amaste, vale-me agora. Ajuda os outros a compreenderem, a aceitarem, a força desta paixão. Teria rezado? Decerto não existia em nenhum dos catecismos que conhecia a sua oração. Mas era sentida, humana, livre e verdadeira como a religião que professava. Procurava apoio, compreensão, solidariedade. Voltaria a Portugal, a casa dos pais. Estava decidida. Não podia contar pelo telefone, esse objecto humano tão inoportuno, a força do sentimento que a invadia. Não! Contaria pessoalmente. Afinal, amar não é crime e ser feliz devia até ser obrigatório.
A sua solidão havia terminado. Não seria mais a inoportuna, a sozinha, o lugar que estragava a simetria cuidada nas mesas de refeição. Saboreou uma lágrima teimosa que não resistira à emoção. Voltou para casa, dele, logo deles.
Uma osga pachorrenta dormitava sobre a laje da entrada. Com licença, bicho. Entrou. Imediatamente a invadiu o aroma Tuscany que denunciava a presença dele. Um abraço uniu-os. Vamos jantar perto da água. Vem. A loucura apaixonada dele a dominá-la. A água, o brilho dos lagos, o som das fontes, o mistério das ondas e o correr dos rios seduziam-nos. Dizia lembrarem-lhe paixão. Vida.
Temos de conversar. Há tempo, talvez um minuto eterno?, que nos amamos. Temos de resolver o que fazer da vida, da nossa.
Porquê? Por que não podemos adiar a nossa apresentação à realidade? Por que não esquecemos que existe relógio, que há gente no mundo? Meu amor, não podemos! Alguém descobriu que o homem é um ser social e, então, não podemos contrariar as verdades científicas… De novo a alegria, o bom-humor, a colorirem a vida que parecia, para ela, até então tão cinzenta. Fazemos uma viagem, queres? Oito dias só para nós. Para nos pensarmos. Queres?
Só? – Não. Também para nos devorarmos. Telefona à tua família e vamos. Depois, quando viermos, logo mais, contamos o que nos aconteceu: - Fazemos parte de um mundo de paixão perfumada, envolta pela Toscânia, protegida pela Piazza del Campo. Agora vem.
Quero-te.
Logo, daqui a pouco, fazemos a nossa apresentação à realidade. Tem de ser? Tem!
O automóvel deslizava, solidário, em busca da água confidente. A mão livre, dele, explorava a coxa firme, dela.
Do automóvel, nada restou. Deles, tudo desapareceu. De tudo ficou, para eternizar a paixão, dois frascos de Tuscany cuidadosamente arrumados no necessaire de dois apaixonados.

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