domingo, 19 de abril de 2020

O Barco AZUL

Sempre que o tempo permite, neste longo período de confinamento, gosto de ir caminhar. Normalmente, encontro um ou dois agricultores, muitas vezes ninguém. No meio da Serra, entre campos floridos, tanques de água fresca e árvores bem podadas, está um barco, coberto por uma lona, com ervas que, de repente, parecem as raízes do mesmo. 
Olho sempre o barco com estranheza. Porque é que aqui, a alguns quilómetros de praias e
barragens, há um barco? Quem será que desistiu de navegar? Quem, e porquê, trouxe o barco azul para o meio das flores amarelas? Tudo perguntas que, por não terem resposta, me permitem inventar histórias e razões.
Às vezes, penso que aquele barco levou um casal apaixonado, que foi o resultado de um sonho a dois e que, porque o amor se desfez, o dono o trouxe e quis esquecê-lo. Tinha de ser um homem, porque uma mulher não abandona algo onde foi feliz.
Outras vezes, como ontem, imagino que o barco ficou ali porque houve uma falência e faltou o dinheiro para voltar ao mar. Trouxeram-no para não pagar o cais, poderão um dia transformá-lo em canteiro.
Dias há, ainda, que sinto a tristeza profunda do barco azul. Ele não pertence ao campo, está infeliz e sofre por não sentir o afago das ondas no casco. Então, olho-o com especial cumplicidade e, baixinho, confesso-lhe que há desajustes que não acontecem só aos barcos azuis. Digo-lhe, nesses momentos, que o sal das lágrimas também salga e que há muitas ondas e tempestades que não vêm dos oceanos. Depois, volto para casa devagarinho. Ele, o barco azul, fica lá. Sempre. Imóvel e triste, desajustado e infeliz.

2 comentários:

  1. Excelente, Luísa! Será que não dá para desvendar o segredo do barco azul? Eu andei semanas (há uns anos) para desvendar o segredo de uma casa velha com três orquídeas penduradas na porta... e era uma história triste!

    ResponderEliminar