terça-feira, 27 de setembro de 2011

Vindimas

Chegou à soleira da porta e olhou o horizonte cansado, as folhas amarelecidas, os grandes alguidares a aguardarem as uvas, os homens a falarem grosso, lá longe, ao fundo do seu olhar. Era a época das vindimas, era o tempo do Outono. Dantes, Setembro chegava sempre em festa, os homens faziam carreiros de laboriosas formigas e, em cinco dias, as vinhas perdiam os cachos gordos que ela adorava depenicar. Agora, tudo era mais rápido. Vinham as máquinas, tinham-se aberto caminhos largos, avenidas num espaço alheio, e meia dúzia de braços chegavam para limpar as videiras. Agora, já não ficavam até tarde, cantando, os homens que pisavam as uvas e faziam o vinho. Agora, tudo acontecia com eficiência e rapidez, e os fundos plásticos levavam para a Adega toda a produção. Talvez fosse melhor assim, era um trabalho menos duro, mas faltava o seu quê de magia e fascínio áquele ritual. Da porta, encostada e sonhadora, revia outros tempos e pensava futuros. Como seria em breve, quando ela desaparecesse, quando ninguém estivesse na Casa para marcar os tempos de colheitas e sementeiras? Sentiu um arrepio incómodo. Melhor era não pensar nisso, ela não estaria presente e, quanto a isso, nada podia fazer. Era a vida. Uma vida estranha, sentia, feita de nonsense, de práticas que, cada vez mais, sentia ocas de sentido. Fora uma solitária sempre. Em miúda, era a gaiata arisca que se escondia no sótão para ler. Jovem, escandalizara todos na luta independente pela sua felicidade, assumindo o fracasso do casamento, escrevendo sempre, tornando-se a avó escritora de netos longínquos cuja ausência fazia doer. Tanto. Às vezes, desejava ser como a vinha e criar avenidas largas que a afastassem das emoções.
O sol começava a pintar de vermelho o céu imenso e as cigarras soavam num concerto bem afinado. Gostava de as ouvir. Sempre tivera uma predileção pela cigarra, na história da cigarra e da formiga, e sempre achara que La Fontaine nunca deveria ter ouvido uma cigarra a adormecer cada dia.
Sentou-se na cadeira de lona e ficou vendo a noite a chegar, os homens a partirem, a paz silenciosa a ocupar o seu espaço de sentires. Um dia, seria total o silêncio, eterna a solidão. Um dia, não haveria mais lágrimas denunciando saudades, livros gastos de poesia sempre relida, canecas de chá denunciando insónias de Mulher. Um dia, aconteceria a sua própria vindima e, então, concluiria, talvez, a inutilidade de tantos sentires, de tantas saudades, de tantas eternas solidões.

3 comentários:

  1. A vindima não significa fim, antes um reviver, um transformar...
    Da vindima, das uvas maduras sai, depois, o néctar, o vinho novo, o reserva, o colheita especial, até o de colheita tardia, preciosidades que se querem guardar e beber nas melhores ocasiões.
    Por isso a vindima não quer significar fim, mas apreciação, reconhecimento, glorificação...
    Que seja essa a sua vindima!
    Cumprimentos.

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  2. ...que bom chegar à soleira da porta e ver logo a preparação das vindimas...mesmo que por métodos modernos e rápidos!!
    Quem bom ouvir a cigarra, não é para todos...
    Que bom, o neto lá longe e bem...
    Que bom a cadeira de lona para "os sentires"...e escrever estas letras de desabafos...
    O futuro a Deus pertence...e ao próprio.
    Mesmo a lagartixa faz parte desse cenário , elas não querem o calor do corpo humano, gostam do frio das paredes e chão.

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