domingo, 14 de maio de 2017

DOMINGO

Eu devia estar a trabalhar. Tenho um terrível trabalho de contabilidade (?!) para fazer... mas não me apetece! Então, revolvo a minha memória de afectos e recupero histórias:
CAMPONESA
Era uma escola antiga, daquelas a que, mais tarde, pomposamente se chamaria do Estado Novo, ainda que o estado delas fosse velho, e o Estado também… situava-se na única rua alcatroada, aquela rua /estrada que atravessava a aldeia. De um lado do edifício, gémeo, pintado das mesmas cores e com o pau da bandeira ao meio, nariz austero e ameaçador, estudavam as meninas; do outro lado, os rapazes. As professoras, de bata branca e sapatos rasos, entravam pela porta da frente, de madeira escura, forte, parecendo disposta a, diariamente, engolir a juventude das mestras. As crianças, que então se chamavam gaiatos sem a distinção por sexos que o edifício impunha, chegavam pelas nove, elas penteadas, eles de boné, carregando sacolas e, alguns mais endinheirados, pastas de cabedal que algum sapateiro jeitoso lhes fizera. Não havia toques. As senhoras professoras, que tinham um grande relógio teimoso na parede, chegavam à porta e baiam as palmas. A criançada alinhava e entrava nas salas, respeitando a ordem e procurando a carteira onde os mais pequenos, os do primeiro ano, nem chegavam com os pés ao chão.  Habitualmente, juntavam-se várias classes, até as quatro, se fosse preciso, e a professora lá ia distribuindo tarefas e orientando trabalhos. A minha sala, a sala dos rapazes embora eu fosse rapariga (hei-de explicar porquê) tinha uns enormes mapas rasgados pendurados num gancho. Era o mundo onde eu me perdia, tentando descobrir nomes de países que me pareciam tão impossíveis de alcançar como o País das Maravilhas que eu lia, à noite, num enorme livro ilustrado que uma tia me tinha oferecido.
Mas vou contar porque estava eu, menina, na sala dos rapazes. Vivia eu, então, numa cidade de província com apenas um colégio e, quando fiz seis anos, tendo aprendido a ler sem que ninguém percebesse como nem onde, foi preciso matricular-me. Então, nesse ano, o Colégio estava cheio e eu não tive vaga. Como não tinha ainda sete anos, poderia ter esperado um ano, mas eu já lia! Então, a minha mãe, que sempre foi profícua em ideias estranhas, lembrou-se de me enviar para a aldeia, todos os dias, no velho Anglia da professora Rita.
A Rita era uma professora vermelhinha, cheirando a naftalina e sabão azul, solteirona e que gostava muito de nós – de mim, e dos meus irmãos. Como, nesse ano, a Rita dava aulas no lado dos rapazes, eu lá fiquei, isolada do perigoso género masculino, estando no meio deles…, sentando-me, qual rata sábia, na secretária da professora. Lembro-me de me olharem com estranheza, de abanar os pés que não chegavam ao chão, e do cheiro de feijão com couve que a Rita levava numa marmita e aquecia num fogareiro para comigo partilhar o almoço.
Nesse ano, não tinha amigos de escola. Via-os de longe, a jogar à bola, a correr, mas a Rita nunca deixou que eu alinhasse nas brincadeiras masculinas e, assim, o meu primeiro ano, então primeira classe, foi um tempo triste, numa escola que eu nunca compreendi.
Como se não bastasse, o meu irmão chamava-me camponesa e eu, embora não percebendo o insulto, detestava a palavra que me cheirava a terra por lavrar!
Seria compreensível, creio eu, que tivesse ganhado uma profunda aversão à Escola. Mas, por razões que talvez o diabinho possa explicar, isso não aconteceu e, desde os meus tempos de camponesa, nunca mais abandonei as salas de aula…




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