quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Maldade

Já há muitos anos, acho que desde a Vila Faia, que eu tinha desistido de ver novelas portuguesas. Às brasileiras resisti um pouco mais, ainda me lembro do Casarão, do Sinhorzinho Malta, e de Laços de Ternura... As novelas portuguesas pareciam-me fracas de conteúdo, com um enredo sempre assente na gasta fórmula de pais trocados, e com interpretações duvidosas. Devia haver excepções, claro, mas eu, porque desisti de ver, não tive tempo de dar por elas.
Ora, há uns dias, por sugestão da minha filha Joana, resolvi ver um episódio de Laços de Sangue, uma novela da SIC. Garantia-me a minha filha que valia a pena ver para poder constatar como era má. Segui a indicação dada e, desde há por aí oito dias, tenho visto a novela. (Ao que uma pessoa chega...) 
Laços de Sangue não é uma má novela, é uma novela inclassificável!
Daquela patetice total, com exageros desesperantes, textos vazios e cenários deprimentes, salva-se a capacidade de inventarem maldades. Há uma personagem, mulher (claro!) que é a própria personificação da maldade e, pasme-se!, sai sempre impune.
São maldades absurdas, com crimes à mistura, e é certo que, no final, a malvada será castigada e terá uma morte terrível. Já era assim na Gata Borralheira, salvo a morte terrível, e nada, por isso, me surpreende este final adivinhado.
O que me surpreende, ou se calhar incomoda, é a ligeireza com que se encara a maldade nesta coisa da televisão. Há um balofo, presidente (?) de um clube de futebol, que grunhe enquanto fala, não tem vocabulário, mas tem muito dinheiro; uma senhora, com criadas (isto existe, hoje?) fardadas a rigor, que se apaixonou por um padre; uma rapariga que está grávida, mas a barriga não cresce e continua com uma figura de modelo (afinal, ela é a Diana Chaves!); há uma mulher, de 50 anos, que sofre com a menopausa a que o marido chama menuspausa; há uma senhora com um tumor cerebral a passear de caravana pela Europa; há um miúdo, jovem médico, que ofereceu a caravana à doente; e há, em suma, meia hora de muito má televisão nos serões da SIC, diariamente. A Maldade, afinal, é a dos senhores que mandam na estação. A Maldade é a dos portugueses que seguem, há quantos meses?, este enredo idiota!
Quem me lê, deve estar a pensar que, se eu acho tão mau, não faz sentido que veja. E eu concordo. Não vou ver mais, não me interessa se a má da fita morre de desastre de automóvel, se com um tiro. Mas faz-me confusão que, nos dias que correm, com o mundo a colapsar, possam existir coisas destas.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

A velha vinha

Nos baloiços da minha infância, a nogueira grande faz sombra. Há no chão muitas nozes (teremos de as apanhar), mas para lá do muro de tijolo amarelo há vida livre. Sento-me na tábua gasta, enquanto o sol não parte, e lembro-me do tempo em que dava balanço para tentar tocar nas nuvens com os pés. Então, tocar nas nuvens era o meu desafio mais impossível. Ainda não tinha aprendido que, às vezes, há nuvens na cabeça!
Agora, enquanto sinto um ventinho fresco, quando adivinho no ar o cheiro a terra molhada que anuncia chuva, olho menos para o céu e mais para a terra. Reparo na desordem da velha vinha, nas ervas que crescem, nos tufos de giestas que, acho eu, devem dar abrigo a muitos bichos incómodos. Há covas, decerto feitas pelos cães, e molas da roupa que sempre insistem em saltar do arame. Seria engraçado se, como as ervas, as molas germinassem. Imagino uma árvore de plástico, cheia de molas coloridas fazendo de folhas. Rio-me da minha própria loucura, e desconfio que o tempo de abandono que deixou agreste a velha vinha, fez, também, estragos em mim. Ainda assim, sabe-me bem o gosto da gargalhada, o afago do vento fresco e o perfume intenso da chuva anunciada.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O Hábito

Deixem-me encarar cada pôr-do-sol como único. Não me imponham as inevitabilidades da existência. Não me peçam que me habitue ao vazio. Não me exijam eternos segundos lugares. Não queiram que feche os olhos à miséria repetida. Não me esgotem o sonho. Não me proponham que recicle emoções. Não me mostrem lugares conhecidos. Não me amarrem à realidade óbvia. Não me falem da mediania. Não me castrem o horizonte. Não me obriguem ao hábito da indiferença!
Deixem-me estrear o olhar a cada dia, deixem-me indignar-me com a miséria constante, deixem-me exigir uma palavra nova, deixem que me surpreenda com a cor do girassol, deixem-me voltar a encontrar os grilos nos buraquinhos, deixem-me chorar com a velha Música no Coração, deixem-me não desistir antes do fim eterno, deixem-me querer o tudo ainda que só tenha o nada.  Deixem-me, por favor, recusar o hábito à normalidade!
Em tempo de direitos, quando todos apregoam os seus direitos (tantas vezes esquecendo os seus deveres) eu exijo o meu: - Quero ter o direito ao PASMO de cada amanhecer!

domingo, 28 de agosto de 2011

Nunca Digas Nunca

Muitas vezes, tantas que lhes perdi a conta, a vida me ensinou (tentou ensinar...) que não devo dizer nunca. É que os meus "nuncas" tornam-se, vezes demais, realidades incómodas. Desta vez, foi tudo por causa de um pinto! Que eu não gosto de galinhas, de nenhuma espécie, nem sequer das que se dizem socialmente relevantes, não é novidade. Quem me conhece, sabe que detesto penosas, e que até o mexer nas penas me faz impressão. Gosto de animais, de cães e de cavalos sobretudo, mas também de golfinhos, de leopardos e de joaninhas. Gosto de bichos, de uma forma geral, mas de pêlo ou mesmo de escamas! Asas e penas arrepiam-me, e sempre acho que têm cara de estúpidas. Por tudo isto, sempre disse que nunca pegaria em galinhas vivas e, que vergonha..., lembro-me de ir com o meu Pai à caça e fazer uma fita enorme, com luvas calçadas, para pegar numa perdiz. NUNCA pegaria em galinhas, não era? Pois, era... Hoje, entrei no galinheiro, apanhei um pinto-quase-frango, e andei com ele nas mãos. Mais grave ainda, brinquei com ele! Tudo, claro, por causa do meu neto que adora galinhas. Lá fomos os dois até ao galinheiro, num dos muitos passeios pelo quintal, quando aproveito para lhe falar da Serra, das histórias que sempre acho que ajudam a fazer dele Pessoa,e lá tive de lhe fazer a vontade e de apanhar a penosa. Como o fiz? Acho que por um neto se faz tudo. Até apanhar penosas... Mas foi difícil. Eu e o Manel Bernardo entrámos no galinheiro, eu de pau na mão não fossem as penosas armarem-se em parvas, os dois gritando para que elas não se acercassem de nós. Depois, deitei o boné das risquinhas para cima do bicho e apanhei-o. O pior foi que, uma vez cá fora, o Manel exigiu o boné de volta e não tive outro remédio que não fosse agarrar no bicho com as mãos. Pusemo-lo a andar de mota, metemo-lo no balde de praia, enfiámo-lo dentro de uma taça e, quando ele já tinha perdido o pio, devolvemo-lo à família.
Não sei se para o pinto-quase-frango foi uma experiência enriquecedora, se traumática. Para mim, foi mais uma grande lição: - Nunca digas NUNCA!!! 

sábado, 27 de agosto de 2011

Velhos Amigos

Chegaram cedo. A mesa, já marcada, ainda tinha muito sol e, por isso, aceitaram a proposta de um champanhe num canto mais recatado. Ela trocou o champanhe, ainda que francês, por um sumo de limão com hortelã, bem gelado, a enganar o calor que começava finalmente a partir. Lá em baixo, tão perto que conseguiam contar as rãs saltando de pedra em seixo, o regato corria. Como a conversa. Era tempo de desfiar memórias, há quantos anos?, de falar de derrotas, de vitórias também, do tempo que restava. Tinham sido amigos, sempre, daquela amizade firme, segura, jurada nos bancos do velho Liceu, nunca precisando de cobranças nem exigências. Ele partira cedo, (continuava detestando que lhe chamassem emigrante...)  em busca de novos mundos, e ela ficara, na terra de sempre, vendo crescer os filhos, despedindo-se dos adultos do seu tempo de menina.
Hoje, como todos os anos, juntavam-se para jantar. Costumavam ser muitos, as famílias, os filhos quando pequenos, às vezes outros amigos também. Este ano, eram só os dois. E ela cuidara-se um pouco, colocara o tradicional colar de pérolas e o eterno vestido preto. Tinha uns sapatos com um pouco de salto, fora ao cabeleireiro e sentia-se confortável na idade de meio século. Ele tinha ido buscá-la, sempre educado, apesar dos seus protestos de que tinha o carro à porta e conhecia de cor o Restaurante de sempre. Mas ele fora. Abrira-lhe a porta, lera-lhe a tristeza e tinha vindo contando das últimas viagens, da visita a São Petersburgo que, há quantos anos?, tinham sonhado fazer os dois. Acabara por ir sozinho, escrevendo no computador portátil as suas impressões. Ela concordara. Sim, as primeiras impressões nunca se repetem! E ria-se da sua mania de escrever um postal a si mesma quando visitava um lugar pela primeira vez. Ele não troçara. Ele NUNCA troçava das suas pequenas manias, dos hábitos que recusava abandonar, da certeza que ela tinha de que os muros da velha Casa lhe adivinhavam os passos.
À mesa, partilhando um peixe no sal, o pregado da preferência dela, as palavras correram soltas. Para trás tinham ficado muitas mágoas, muitas dores, algumas desilusões, estilhaços de muitos sonhos; mas sim, para a frente havia ainda um oceano de possíveis. O café acompanhou o bolo de frutos vermelhos e ela sorriu ao luxo de poder ignorar as calorias. Ah!, estavam bem assim, os dois, sem culpas nem preconceitos, com a tranquila serenidade que  só os velhos amigos conseguem.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Os ricos

Os muito ricos franceses querem pagar mais impostos, querem ajudar a combater a crise. Lindo! Como diria Astérix: - "Estes franceses são doidos!". Mas ainda bem que são doidos porque, de facto, faz mais sentido serem os multi-multi-milionários a pagar, em vez de serem os desgraçados (como eu) que vivem de ordenados muito magrinhos.
No entanto, apetece-me dizer, porque é verdade, que nada tenho contra os ricos, antes pelo contrário! Para mim, o razoável  e normal é uma pessoa desejar ser rica, viver bem, poder ter o conforto que uma boa conta bancária sempre dá. Claro, já sei, o dinheiro não dá felicidade...mas, deixemo-nos de balelas, não dá mas ajuda muito a adquirir! Mesmo a saúde, ou a falta dela, suporta-se melhor com tratamentos de um bom hospital do que nas listas de espera do moribundo SNS!! Sempre achei que aquela conversa de "para ser feliz, basta-me saúde e amor", soava a falso. Saúde, amor, e pedir esmola é ser feliz? Só na literatura de cordel...
Embirro com o materialismo sufocante dos  nossos dias, mas não chego ao ponto de achar que é muito bom ser pobre. Contudo, acho brilhante e louvável a ideia de serem os riquíssimos a ajudar a pagar a crise. Mas se for de verdade! É que, para quem tem milhões e biliões, dizer que pagarão cerca de 1250 euros por mês, soa-me a pura demagogia e, sei lá porquê, suspeito das boas intenções anunciadas.
Lembro-me de, há muitos anos, alguém ter escrito na parede do cemitério "A Terra a Quem a trabalha" e de alguém, com sentido de humor, ter completado "Levantem-se preguiçosos!". Será por acaso que a memória me traz esta imagem?

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A fotografia

Está em grande, na moldura, e mantém viva uma tarde de caça, talvez no Assumar, sem dúvida no Alentejo. Ele tem um boné verde, esse boné que tantas vezes me fez voltar atrás por ficar esquecido, e olha a objectiva. Olha-me, também. Como me olhou naquela tarde, em tantas tardes, vendo-me por dentro e lendo-me em silêncio. Era bom ir com ele à caça, de motorista ou mochileiro, ouvindo-o e partilhando silêncios. Ensinava-me a distinguir o voo da perdiz do do pombo, ria-se da minha ignorância quando apontava um coelho que era uma lebre, irritava-se sempre que o tiro certeiro me fazia fechar os olhos e ter pena do bicho. Gostava das tardes no campo, das madrugadas geladas, das caminhadas e das aventuras de enfiarmos o jipe por regos e lavrados. Era nestas alturas que mais conversávamos, às vezes sentados num tronco, outras vezes no conforto do jipe. Uma tarde, com a espingarda escondida porque era ainda o defeso, o jipe atascou-se. Bom, verdade mesmo, eu atasquei o jipe. Uma proeza, garantiram... Os telemóveis não tinham sinal e foi preciso esperar que viesse o homem do Monte recolher o gado para, com o tractor, nos desatascar. Havia vacas, muito grandes e castanhas, e eu estava cheia de medo! Lembro-me de lhe falar de um poema de Cesário "Já não receias tu essa vaquita preta,// que eu segurei, prendi por um chavelho", e de ele ter brincado comigo duvidando que eu conseguisse segurar alguma das vacas castanhas, que me ameaçavam, por até dois chavelhos!! Hoje, com as estrelas por companhia, olho a fotografia e sinto o cheiro do campo, o peso do saco dos cartuchos,  a conversa sempre constante. A saudade dói, mas a presença ausente do retrato com boné faz-me, sempre, real companhia.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Dia de Anos

Em pequena, chorava e gritava sempre "eu não quero fazer anos!", deixando os convidados surpreendidos e a família embaraçada. Teria a miúda, com 3 anos, a noção do Tempo?! Felizmente, para todos, aí pelos seis anos mudou de opinião e passou a adorar o dia de aniversário, preparando-o com antecedência, escolhendo o bolo, os presentes, a festa. Fazer anos em Agosto, quando todo o Portugal está a banhos, era sempre uma complicação e, talvez por isso, a festa acabava por ter muita gente (contrariamente ao esperado) porque ela começava a fazer convites em Junho... Hoje, a minha criança já faz 29 anos. Sopra as velas com o filho ao colo, faz brindes com a taça cheia de champanhe, anuncia que adora fazer anos e deixa-me os olhos húmidos quando nos olhamos por dentro.
Parabéns!!

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O peixinho Vermelho

Quando tinha crianças em casa, quando as minhas meninas eram bem pequenas, tinhamos sempre um aquário com peixinhos. Eu lera algures, num dos muitos manuais de pedagogia que hoje acho absurdos, que é muito importante para o desenvolvimento das crianças terem um animal e, como se não bastassem os cães e as galinhas em casa dos avós, connosco moravam  os peixinhos. Vivemos algumas aventuras com eles.
Uma vez, um peixinho morreu, (o que aliás acontecia com frequência, levando-me a substituir o defunto antes que as miúdas dessem pelo óbito) e, apanhada numa hora de familia, sem hipótese de o substituir, fiquei angustiada. Como iriam as minhas filhas reagir à morte? Salvou-me o eterno pragmatismo da Filipa, "olha, morreu o Tobias! Deixa mãe, manda-o pela retrete que ele vai para o mar, onde deve haver um cemitério para peixes". Assim fizemos, sem nenhum cerimonial que  não fosse a concha da sopa com o defunto e uma exigência da Joana para que fosse ela a carregar no autoclismo, e sem que eu me atrevesse a investigar as razões que levavam a Filipa a concluir que o que desaparecia da retrete ia parar ao mar. De outra vez, chegámos  a casa vindas da escola e um dos peixes estava morto na carpete. Eu constatei a morte dizendo às miúdas que o bicho se tinha suicidado, pois saltara do aquário, levando a Joana a sentenciar que ele devia estar farto de andar sempre à roda. Puseram-se as duas a rodar como faziam os peixes e, num instante, cairam redondas comprovando a sua teoria de suicídio em desespero circular (claro que as palavras não foram estas, mas a intenção era!). Ainda tivemos depois um aquário com tampa, rectângular, mas elas foram crescendo e os meus manuais de pedagogia foram-se revelando cada vez mais obsoletos. Tentámos ainda as tartarugas, num aquário com palmeirinhas de plástico, mas eu, vendo-as muito quietas e estando farta de mortes súbitas, deitei-as para o lixo. Ia sendo despromovida de mãe pelas  minhas filhas que, indignadas, perguntaram se eu não sabia o que era hibernar...
Bom, depois destas experiências que, teoricamente, muito contribuiram para o sentido de responsabilidade das minhas crianças, há para aí uns 15 anos que não havia peixinhos cá em casa. Mas agora veio o meu neto, como todos os netos o miúdos mais giro do mundo, e os peixinhos voltaram. De novo tenho um aquário redondo, dois peixinhos vermelhos a rodar e a tarefa de mudar a água sem que nenhum dele fuja pelo cano... Sento-me a trabalhar e olho os peixes, garantiram-me que é um casal..., vendo-os a rodar e fazer bolhinhas. Fico com pena dos bichinhos, assim presos, e já decidi que, quando o Manuel Bernardo voltar para Inglaterra, vou soltar os peixes no tanque. Detesto a ideia de falta de liberdade!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Cruzeiro

Da amurada olhava a cidade, a sua, num adeus silencioso. Partia! Quantas vezes, em sonhos acordados e insónias dolorosas, sonhara com aquele momento, com a partida de mala feita sem culpas nem medos? finalmente, chegara a hora. Sentia-se um pouco como a aia corajosa, narrada por Eça de Queirós, que, depois de matar o próprio filho,  elevando um punhal de rubis e diamantes dissera "salvei o meu princípe. Agora, vou dar de mamar ao meu filho!" espetando no peito a jóia mortal. Ela não matara ninguém, não tinha sequer a Fé da aia negra, mas sentia que cumprira a sua tarefa ao serviço dos outros, sempre os outros, e por isso podia conceder-se o privilégio de partir. Embarcava sozinha, a mala mais cheia de livros do que de roupa, alguns vestidos confortáveis e o desejo de se encontrar, de se olhar por dentro, de conversar com o rosto envelhecido que, diariamente, a desafiava do outro lado do espelho. O que levava uma mulher, mais de 50 anos, a partir assim? Adivinhava as críticas... A troça até, que ideia aquela de precisar de tempo para si quando tinha filhos, amigos, trabalho e vida a cumprir?? Mas era exactamente o cumprir que a fizera partir. Era o desejo de uma vida a viver, sem a obrigatoriedade de cumprimento de fórmulas sociais de ser feliz, que a fizera encher-se de coragem, fechar os ouvidos às condenações e partir. Sempre lhe diziam que ela era forte, que suportaria tudo, e essa força, tantas vezes assente na fragilidade escondida, tinha-a levado ao silêncio, ao aceitar imposições, à negação do seu próprio eu. Por isso, partia com a certeza  que, ainda que só os filhos aceitassem esta viagem, precisava de a realizar.
Estirada numa cadeira de lona, sentia os outros, que não conhecia, borboletarem por ali. Eram famílias, jovens casais, grupos de amigos. Só ela estava sozinha e, curiosamente, nunca se tinha sentido tão acompanhada. Era o seu tempo, a sua procura, o seu tempo sem ser forte, sem cumprir desejos aheios, sem se centrar em necessidades familiares.
O navio, moderno, navegava calmamente, deixando o Tejo, entrando no mar a caminho do Sul. Tantas vezes ouvira falar de ondas, de navegações, de partidas e, agora, era a sua vez. Esperava-a a costa Amalfi, a Grécia de Sophia (a da crise também), noites de um céu que apenas dos livros conhecia. Era a sua viagem, o seu cruzeiro finalmente realizado, a sua partida para uma geografia muito próxima a sua!

domingo, 21 de agosto de 2011

Amigos

Como toda a gente, ou quase, da minha geração, do tempo em que ainda se lia, a televisão acabava à meia-noite com o hino nacional e as férias duravam três meses, houve livros que para sempre ficaram ligados ao meu ser. Os Cinco, O Colégio das Quatro Torres foram alguns, mas, sobretudo, foram O Meu Pé de Laranja Lima e o Principezinho que me viram crescer. Ainda fico com os olhos húmidos quando recordo o Mangaratiba que levou o seu Manuel, o caco de vidro no pé do Zeze, os castigos injustos aplicados ao menino-poema. Ainda cito, muitas vezes, frases do Zezé, "posso até jurar", a par com as lições do Principezinho, "se queres ser meu amigo, tens de ser responsável por mim". Quando as minhas crianças eram pequeninas, ficávamos na cama as três e eu lia-lhes os meus velhos livros (que SAUDADES!). Elas choravam também e eu aligeirava a leitura, tentando ensinar-lhes, assim, o valor da ternura, a importância do carinho.

(Imagem do Google)

 Acho que foi com os livros que, entre tantas coisas, aprendi o que é a Amizade. Não os conhecidos, nem os companheiros de profissão, nem aqueles a quem dizemos bom dia por conhecimento rotineiro. Não. Os Amigos de verdade! Esses que nos fazem ser responsáveis por eles mas que, sempre, são também responsáveis por nós. Aqueles a quem podemos telefonar às 4 da manhã com a certeza que, entre um bocejo e um insulto, vamos ser escutados e apoiados. Os amigos, os meus, contam-se pelos dedos da mão mas são inestimáveis! Os meus amigos atendem-me o telemóvel a qualquer hora, dizem-me que não tenho razão muitas vezes, dão-me apoio sempre e sabem que "é bem mais difícil julgar-se a si mesmo que julgar os outros. Se consegues julgar-te bem, eis um verdadeiro sábio" Não tenho amigos sábios. Mas tenho amigos que, como eu, devem ter lido o Principezinho muitas vezes...
Imagino, num exercício felizmente de pura abstração, quem seria eu sem os meus amigos. Como enfrentaria eu o quotidiano sem aqueles que me fazem sempre acreditar que, embora haja muitos Mangaratibas cruéis na minha existência, eu vou continuar numa viagem segura, e concluo que não sobreviveria! Tal como o principezinho, tenho a certeza que "te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas" e eu gosto (e preciso) de ser responsável pelos meu amigos!


sábado, 20 de agosto de 2011

O Maranhão

O sol abrasador, cansado, mergulha devagar na água espelhada. Começa por molhar um raio laranja, depois um vermelho, depois os amarelos e, finalmente, o corpo de fogo mergulha lentamente. Da esplanada, envolta na conversa que a amizade verdadeira deixa solta, assisto ao final de mais um dia. Como se desistisse, como se o próprio Sol dissesse que chega, que quer paz, que precisa de desaparecer e lavar a alma também, as horas escorrem deixando vir a noite de luar. A água pára. Não há remos, não há ski, não há gritos de crianças. No Maranhão, no meu Alentejo, a paz acontece.
Desejava agora ser artista e poder, com pinceladas certeiras, guardar este momento. Não me apetecem as palavras cansadas, sequer as sábias que, num outro Maranhão, António Vieira gritava a ouvidos surdos. Hoje, agora, não há palavras mais para além da conversa das aves e dos peixes. O meu Alentejo está coberto de ouro, o céu carregado e intenso, e o contraste faz-me ainda mais insignificante. Lembro o mar,  a imensidão, o impossível. E vejo a terra que é minha, que piso, que me suporta os passos inseguros, pesados, cansados ou esperançosos. Este é o meu mundo! Esta é a terra que me enche o olhar, que me embrulha os sentires, que me acolhe as confissões.
Ah! Alentejo! Terra de sol e de sangue, de ontem e de amanhã, de promessas e mistérios. Ah! Eu sou de cá!

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Segredo

O SEGREDO
Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.
Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...
Miguel Torga
Faz parte da vida, o segredo. Quem o quer espalhar pede que o guardem: - Não contes a ninguém! - e, de boca em boca, o segredo calado ganha som e cor. Nem sempre, infelizmente, os segredos escondem o mistério do ninho, mas sempre, acho eu, guardam algo de especial. Algo especialmente bom, algo especialmente mau, algo especialmente íntimo ou mesmo algo especialmente inócuo. Eu tenho os meus segredos. Fecho-os a sete chaves, tranco-os no fundo dos meus sentires e quase (quase...) nunca os revelo. São eles que me permitem, às vezes, recuperar memórias e reviver momentos. Também tenho segredos de doer. Esses, tento que não venham à luz da existência vezes demais.
Mas, mais importantes do que os segredos de cada um de nós, são aqueles que desconfiamos que existem e não conseguimos desvendar: - Qual é o segredo para a mousse de chocolate não engordar? Como se convence o Amor de que ele existe? Como se faz para que a maionese não estalhace? Como se poupa dinheiro durante a crise? Como se recupera a confiança perdida? Como se dá sentido ao silêncio quando o ruído impede a comunicação? Ah! Se eu soubesse aquele segredo...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Vida de cão

Lambia  as feridas recentes pensando na vida. Sabia-lhe a boca ao líquido castanho que lhe tinham despejado sobre a pele, fazendo arder, e semicerrava os olhos. Estava cansado, moído da sova que levara - Ah! mas também se defendera! O Leão não tinha ficado a rir-se! - e tinha calor. Enroscou-se na cadeira, sim tinha a sua cadeira verde ali bem perto da porta, à sombra, num lugar de onde observava o voo dos melros, a chegada dos intrusos, as corridas loucas das lagartixas, e ficou vendo as imagens que lhe passavam à frente. Lembrava-se de ser muito pequeno, cachorrinho ainda, e ter feito uma longa viagem num colo macio, sempre mimado pela nova dona. Aprendera-lhe o cheiro e, embroa ouvisse dizer que era impossível, adivinhava-lhe a chegada muito antes de a poder ver. Então, os dois viviam numa casa pequena onde ele impusera algumas regras que, aos olhos da dona, pareciam desordens e disparates. É verdade que tinha roído o computador, desfeito a ficha, estilhaçado a carpete, rasgado algumas toalhas, entornado o saco da ração, estragado os sapatos novos, cavado no vaso das malvas, comido um dicionário de símbolos, mas, que diabo, um cão tem de ocupar-se e, convenhamos, um dia inteiro sozinho fechado em casa era duro... Depois, tinha mudado de casa. Chegara ao espaço que, hoje, conhecia de cor. Ali podia correr, ali explorava os ninhos dos melros, os ovos das galinhas, as covas das raposas, e, se não fosse a velha senhora que o ameaçava com uma vassoura gasta e gritava sempre "Vai para a tua casa!" (Ela não teria percebido que a SUA casa era aquela?) , era quase feliz. Quase... Porque faltava-lhe a dona. Faltava o colo macio, a janela que ela entreabria para que, de noite, ele pudesse entrar e dormir sobre a cama dela. Às vezes, chegavam a partilhar a almofada, e como era doce ouvi-la respirar, sentir-lhe o cheiro e lamber-lhe a mão que sempre ficava sobre o lençol.. Tinha saudades dela. Saudades das festas, dos mimos, dos cuidados que tinha com ele.
Bom, decididamente, estava a ficar velho e lamechas, pensou. Afinal, não lhe faltavam cuidados, uma boa cama, comida e água sempre, e até aquela cadeira verde para observar o mundo e lamber as feridas. Ouvia o seu amigo Tango a ladrar, ao longe. Fossem outros tempos e iria ter com ele, impôr respeito, era mais velho!, exigir sossego. Mas hoje, assim ferido, não tinha coragem. Talvez o fim estivesse  a chegar. Já não tinha a força de outros tempos... E já brigara muito! Quando se lembrava das vezes que fora cosido, ainda se arrepiava. Um dia, julgara que lhe iam mesmo sair as tripas, tivera de ficar longe de casa, apenas ouvindo vozes estranhas, rodeado de muita brancura e objectos ameaçadores, sentindo as lágrimas distantes da sua dona. Olhou a cicatriz grossa, fora o Leão que lhe enterrara os dentes até às costelas e nunca mais o pelo voltara a crescer ali, mas achava que aquelas marcas lhe davam um certo poder, como se provassem a sua forma de reagir às desconsiderações do destino. O Tango chegou-se a ele.
Esse agora nem dormia em casa, encantado com a cadela vizinha, uma rafeira sem graça, que se pavoneava convencida de ter pedigree. Fossem outros tempos e dava-lhe uma lição.Mais jovem, não havia fêmea que lhe escapasse. Agora, preferia ficar ali, esperando o afago certo sempre que a porta de casa se abria, farejando o ar na tentativa de sentir próximo o regresso da dona. A velha senhora dizia, sempre, que estes cães são parvos. Talvez tivesse razão. Só os parvos podiam sofrer tanto, ter tantas saudades, e continuarem respirando!!

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

SÚPLICA

Súplica


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.

Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.


Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.

Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
Miguel Torga

Os homens também choram. Sim!

Enterrou os pés descalços na areia molhada. Via, parado, a forma rápida como a sua pegada desaparecia, apagada pelas ondas, engolida pelo movimento da própria areia. Em miúdo, há quantos anos fora isso?, corria pela areia num desafio solitário gritando às ondas um não me apanham bem disposto. Iam, ele, os pais e os irmãos, para as praias de um Algarve ainda de L singular, desconhecido do mundo, com longo areal a explorar. Já então era o último a voltar a casa, às vezes de noite cerrada, esticando até ao limite o prazer da praia. Lembrava-se bem de escrever na areia o nome da primeira namorada A..., de entrelaçar as letras com conchinhas, de combinar com as ondas carícias especiais para quando a trouxesse ali. Porque sabia que havia de a levar ali! Depois, tinha atravessado os tempos da praia social, o Tempo dos chacais que Sophia definia como ninguém. Ela lia Sophia. Ela deitava-se na areia, fazia um anjo, fechava os olhos e falava de poesia. Ela chorava com os poetas, pelos poetas, enrolando os versos com a facilidade inconsciente como que enrolava a ponta do cabelo no dedo indicador. Ela levanta-se da areia, abraçava-o, e fazia-o jurar-lhe que aquele anjo na areia, ainda quente, seria sempre uma presença entre os dois. Ela, repetindo "já não tenho palavras, gastei-as a negar-TE", falava-lhe de Torga com uma seriedade que o fazia sorrir. Tinham combinado que iriam um dia a S. Martinho de Anta, ela prometera um girassol enorme ao seu Poeta, mas esse projecto ficara por cumprir. Como tantos outros. Como a caminhada até Santiago, a semana na neve, a visita ao Tango argentino, o cruzeiro romântico na costa Amalfi. Sempre os adiamentos justificados com a vida, as pequenas rotinas, o quotidiano. Tudo a engrossar a lista do amanhã, a lista que a fazia ficar séria, olhar húmido, quando referia, num abraço quente, que a vida estava a passar depressa demais. Subiu o fecho éclair do blusão e olhou o céu. A noite chegava, o vento vinha húmido e fresco. Sentou-se na rocha e abraçou os joelhos desejando ser uma ostra e poder fechar-se em si mesmo. Desejando, ainda, ter uma casca dura capaz de sobreviver. Sentia os pés gelados, doendo de frio, e aquecia-lhe o coração aquela dor física intensa. Se ela estivesse ali, falar-lhe-ia de sentires. Mas ela partira e, embora tivesse prometido que ficaria piscando na estrela polar, olhando o céu na continuidade do mar ele apenas via vazio. Enxugou os olhos à manga do blusão. Já não havia anjo na areia, já não havia poesia à noite, já não havia chocolate no frigorífico. Agora, sem ela, havia apenas o sal das lágrimas. Tão salgadas! Mais salgadas que aquele montão de mar onde continuava procurando por ela.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Perfeição

Sei bem, acho que sabemos todos, que a perfeição não existe. É um pouco como a felicidade que, tirando a senhora que vende fruta no Mercado Municipal, só acontece em instantâneos. A perfeição é aquilo que sonhamos, ou talvez nem isso. Ou talvez nem sempre isso, porque eu não sonho com a perfeição. Sonho com a capacidade de compreender, e de aceitar, os incompletos, os erros, a possibilidade de fazer melhor. Se a perfeição acontecesse, acho que iria morrer de tédio. Perderia o direito ao pasmo, a oportunidade de ganhar um novo dia, o privilégio do refazer.
Defino o ser humano como imperfeito e, talvez por isso, surpreende-me a mania que existe de querermos sempre condenar actos alheios, de os avaliar, de os catalogar, de os definir, de lhes sentenciar uma chegada certa ao inferno, como se esperassemos que fossem perfeitos. Como se nós fossemos perfeitos! 
Oiço a noite. Há luar, há estrelas, a temperatura desceu e posso abrir a janela. Os cães dormem serenos, olharam-me e voltaram a adormecer sem me condenarem a hora tardia a que abro a janela. Corre vento que provoca o ramalhar indignado da nogueira, lembrando-me que nem a noite é perfeita.
Eu não quero a perfeição, não quero ganhar um lugar num altar, não quero a veneração. Mas, no entanto, quero, ah como quero!, sentir em mim a paz da noite estrelada, o afago forte do vento, a protecção dos ramos cerrados da minha nogueira, o poder de esquecer dos pardais a quem destroem os ninhos.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Mulher

No Diário de Simone de Beauvoir lê-se "Não nascemos mulher, tornamo-nos mulheres". Talvez ela tenha razão. Não sou adepta do determinismo e, também por isso, concordo com a minha companheira de insónia. De facto, não nascemos com uma essência pré-definida e a nossa existência é todo um longo, e doloroso às vezes, processo de construção. Acreditando na certeza de Simone de Beauvoir, às mulheres exige-se (ainda) mais do que ao homem, no feminino a vida é mais dura. Não sei se será assim. Acho que, nos dias de hoje, e tendo como padrão (sei que não é modelo...) a sociedade ocidental, ser pessoa é a tarefa mais árdua, independentemente do sexo. É difícil sobreviver humano ao capitalismo desenfreado, à relativização dos valores, à destruição de pilares que sustentaram, durante séculos, uma sociedade. Não quero acreditar em fatalismos, em apocalipses anunciados, nem sequer defendo que o antigamente era melhor do que hoje. O que me assusta é a dificuldade, que eu sinto cada dia maior, na construção de uma identidade própria. No fundo, o que significa tornarmo-nos mulheres? É enfrentar mais adversidades? É ser mãe? É ser profissional? Não sei. Sou mulher e não sei definir-me. Conheço a dor da solidão, sei de cor o silêncio, trato por tu as dificuldades, tenho longas conversas com a lua, mas não sei se, sem românticas considerações, é isso me distingue de um homem. Nas Viagens na Minha Terra, Garrett cria uma discussão entre os campinos e os homens do mar, onde se discute quem é mais corajoso: - se aqueles que enfrentam os touros, se os que enfrentam o mar. Se houvesse um terceiro interveniente feminino, ganharia a discussão: - Mais corajosa é a mulher, que enfrenta o homem que encara o toiro e aquele que vence o mar!!
Ser mulher é ser diferente, sem dúvida. E ser homem, também. Quando calha, e o vento está de feição, duas diferenças fazem uma igualdade e, então, a vida, a de verdade, acontece.
Hum... pensando bem, talvez a diferença fundamental entre ser mulher ou ser homem seja a capacidade de resistência e a tenacidade. Uma mulher constrói-se, como diz Simone de Beauvoir; vencendo batalhas sem usar armaduras, digo eu.

sábado, 13 de agosto de 2011

A Tese - Talvez

Era uma tese, que afinal não era para ser tese. Vendo bem, era um relatório. Devia constituir a prova de um Mestrado com sucesso. Mas, vá lá saber-se porquê, só podia reproduzir opiniões alheias. Supunha-se ser para formar um novo professor, mas afinal o pensamento crítico e autónomo era cerceado. Tudo acontecia na Universidade Nova, teoricamente uma Escola de qualidade. Na prática, nem por isso. Subitamente, até se percebia que Pessoa (hélas comparação ousada!) tivesse abandonado a faculdade...
Talvez não fosse má ideia alguém propôr ao Ministro Nuno Crato que comece a avaliação de desempenho docente pelo Ensino Superior.
Talvez já seja tempo de acabar com o que faz que é mas não é, faz que ensina e não ensina...
Talvez.

Ninho lírico (ou épico?)

Passear em Cascais é sempre uma boa forma de fazer as pazes com a vida. Gosto da baía, das cores do céu e da pedra, do cheiro intenso a mar, das costas largas do D. Carlos observando o horizonte, do linguajar dos mil estrangeiros que enchem as ruas e, claro, dos gelados Santini. Gosto de chegar ao fim da tarde, de fugir à modernidade gritante da Marina, de me perder pelas ruelas em busca das pequenas esplanadas de onde, sempre!, se espreita o mar. Para Cascais ser perfeito, só teria mesmo que ser alentejano... Mas, claro, eu já aprendi que a perfeição não existe e que o óptimo é inimigo do bom.
Há dias, em Cascais, ganhei mais um argumento, como se fosse necessário tê-lo..., para admirar aquele espaço. Passeando por ali, encontrei um dos meus Poetas, o velho Camões das rimas certas e sentires exagerados. O poeta, embora maltratado pelo tempo, e pelas pessoas também, mantém a pose de pedra branca, olhando, sinto que com desprezo, as esplanadas que o cercam. Ora, uma pomba, ou um pombo?, não esteve com cerimónias e fez poiso na cabeça do  autor de Os Lusíadas. Instalou-se, fez seu aquele espaço e nem se incomoda com disparos de fotografia. Curiosamente, achei que o bicho incomoda menos o poeta do que o estrangeiro Bar que o enquadra. Imaginei Luís, afagando a pomba, porque tem de ser pomba-fêmea!, agradecendo-lhe ter-lhe encontrado, num mundo que o rejeitou, alguma utilidade...

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Ao sabor do vento...

Alinhados, imponentes, provocando o vento, ali estavam desafiando os olhares curiosos. Olhei-os invejando a liberdade que os caracteriza... deve ser bom poder ir assim, solto, sobre as águas, ao sabor do vento, salpicado de espuma salgada. Lembrei-me de Álvaro de Campos, "eu quero ir na vida como um automóvel último modelo", e senti a alma encolher-se-me. Ir na vida, ir nas ondas, com segura confiança só me parece possível quando a vida é a sonhada. E, no entanto, como eu queria ser capaz de me deixar ir, ao sabor do vento, esperando a rajada certa, a onda definitiva!!

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Medo

É, talvez, o pior dos sentimentos. O Medo sufoca, transforma as pessoas, limita a liberdade, pressiona e provoca infelicidade. No entanto, cada vez mais o Medo é uma presença da sociedade actual. Olho à minha volta, oiço as notícias e tremo. Onde iremos parar?! Quero ser racional, lembrar outros momentos conturbados da História, bem perto ainda a 2ª Grande Guerra, mas nada me tranquiliza. Se nem o horror do holocausto parece servir de exemplo, o que fazer?
Os focos de violência, gratuita e criminosa, em Inglaterra, poderão, rapidamente, alastrar a toda a Europa. O desemprego, a banalização dos Valores Humanos, a relativização cultural, o descalabro em que se tornou a educação, tudo contribui para fazer crescer a violência. Há miúdos de dez anos a roubar, a destruir. Há miúdos de 7 anos contratados pelo Real Madrid como grandes jogadores de Futebol, e há meninas de 10 anos, ousadamente maquilhadas e vestidas, a fazer capa da VOGUE!!! Já não basta dizer que o mundo enlouqueceu. É pouco... Creio que urge ir mais longe! E, sinceramente, tenho medo da forma que se encontrará, porque tem de se encontrar uma forma, para combater a violência.
Em Portugal, por enquanto, as coisas parecem mais calmas. Parecem... Porque, a continuarem as medidas contra a população, a continuar o ataque a quem trabalha, não estranharei se situações idênticas às de Inglaterra vierem a estalar por aí... Em Lisboa, há quem ataque à cabeçada em pleno Centro Comercial Colombo, sem se conhecer a consequência de tal acto.
Para mim, a Liberdade é o valor fundamental de qualquer socieade e, por oposição, o Medo o pior dos contra-valores. De uma sociedade onde impera o Medo, o que esperar?

A Lua

Fim da tarde, anúncio de uma noite quente, afinal é Verão!, e a lua a surgir, promissora, no céu português. Tão azul... O céu abraçando o mar, trazendo-me, no silêncio agora de madrugada, no momento da reconstrução da emoção vivida, a certeza, ou o desejo dela?, da possibilidade de luz mesmo no profundo do escuro.
Vi esta lua sobre a praia, no momento em que o dia se despede e apenas os mais resistentes permanecem na areia. O mar estava muito calmo, bem perto a irresistivel baía de Cascais e, dentro de mim, um desejo de confiança urgente, uma vontade incontrolável de acreditar em todos os impossíveis e de agarrar a existência pelas orelhas. O mar. Tantas vezes me acompanhou nas madrugadas de insónia, no Algarve, na varanda da Rocha; na Serra, no amarelo da minha casa; no quintal, no ramalhar doce da minha nogueira. Ontem, há poucas horas, a surgir manso e sedutor, espelhando a lua, roubando-me o sono e devolvendo-me Pessoa: "Deus, ao mar o perigo e o abismo deu//Mas nele é que espelhou o céu". Teria Pessoa razão? Será preciso sofrer para poder desfrutar da felicidade? diz o Poeta que foi preciso passar além do Bojador, para passar além da Dor...

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Silêncio

O sono fugiu, escondeu-se algures, e fico ouvindo a cidade grande. É uma noite de Verão, abri a janela e sinto o cheiro do Tejo que corre perto.
O silêncio da noite urbana é diferente do silêncio que, habitualmente, me acompanha quando o sono emigra. Aqui, as vozes das cigarras são sirenes, as ralas soam a buzinas apressadas e, em vez do ladrar conhecido dos meus cães, oiço as patas irrequietas da cadelinha do segundo andar. São os espaços, os ambientes, os odores, a atravessarem a minha essência baralhando a minha existência.
A cidade grande, os uivos doridos das ambulâncias, as travagens violentas dos amantes da noite, soam estranhamente na minha insónia. Vêm, intrusas incómodas, as memórias de outras noites de Verão. Noites de caipirinha a sabor a mar, de música a embalar-me o desejo, de luzinhas semeadas no oceano calmo do Algarve da minha juventude. Afasto as memórias, (lembro o velho "para trás mija a burra..."), e sonho os possíveis que tenho de ousar construir. De novo o silêncio. Agora, o que vem de dentro, feito medo e ausência de resposta. Silêncio só.
É a insónia na cidade grande.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

As lágrimas

"As lágrimas são a água que corre para tapar os buracos que se abrem na alma".
"As lágrimas são a saudade que escorre".
"As lágrimas são a liberdade do desgosto".
Encontrei três definições de lágrimas, nenhuma científica, todas feitas de sentires. Para mim, todas podem ser verdade, todas fizeram já, ou fazem agora, muito sentido.
Mas, no entanto, acho que as lágrimas são mais do que definições, mais do que poesia, mais do que letra de canção. As lágrimas são a liquidificação da dor, quando, de tão forte, ela se torna livre. As lágrimas sabem a sal, fazem fungar o nariz, deixam os olhos vermelhos, cavam olheiras fundas, mas, ainda assim, ajudam a libertar a mágoa. As lágrimas são a torneira dos sentires magoados. As lágrimas são boas companheiras, às vezes.

domingo, 7 de agosto de 2011

O Sabe-Tudo

Quando eu era miúda, há quantos séculos??, havia um jogo chamado o Sabe-Tudo. Era uma caixa da Majora, verde e branca, que continha um boneco, tipo Merlim, com um ponteiro na mão, e dois círculos: - Um tinha perguntas; o outro as respostas. Colocava-se o Sabe-Tudo no círculo da esquerda, apontava-se para a pergunta; depois, colocava-se o boneco sobre um espelho na base do círculo da direita e ele, invariavelmente, acertava na resposta. O Sabe-Tudo da minha infância sabia coisas tão surpreendentes como os quilómetros do eixo da terra, o número de estrelas que compõem a Ursa Maior e o nome do 14º Rei de Portugal. Tanta sabedoria, espantava-me. Lembro-me de passar tardes, sozinha no sotão, a brincar com o Sabe-Tudo e a congratular-me com a forma como ele sempre acertava. Confesso que nunca soube (nem sei) nada de mecanismos e surpreendia-me alguém ter sido capaz de inventar uma coisa assim. Hoje, lendo os jornais e andando na vida real, concluo que o Sabe-Tudo era, apenas, uma adaptação de algumas figuras, ou alguns figurões, do quotidiano. É que há por aí muita gente que sabe tudo, que opina sobre tudo, que julga toda a gente, que condena todos e que, se calhar, teve a sorte de ter nascido com uma base mágica como a do meu jogo de menina e, por isso, o seu ponteiro, que agora se torna dedo acusador, aponta sempre no alvo certo!

sábado, 6 de agosto de 2011

Os Homens Precisam de Mimo

O João Miguel Tavares, um "miúdo" de Portalegre, publicou o seu primeiro livro "Os Homens precisam de Mimo". Desde que o comprei, tem sido o meu mais constante companheiro! A escrita, despretensiosa, fluente, com os adjectivos correctos e a pontuação claramente expressiva, faz as minhas delícias! No livro, com uma apresentação diferente, original, com uma certa dose de intimismo que me seduz, o João Miguel fala, reflecte, comenta, as pequenas (ou grandes?) coisas da existência humana a que chamamos vida.
Já chorei, já me ri às gargalhadas, já voltei a ler a mesma crónica mais do que uma vez.
Gosto da escrita assim, sem surgir forçada, sem me parecer feita de construções violentas que, acho eu, às vezes fazem com que os sentidos se contorçam... Apetece-me falar bem deste autor da minha cidade, apetecia-me que o livro fosse divulgado e conhecido no mundo inteiro!
Peço perdão por algum exagero, mas estou encantada com a leitura e, nem de propósito, eu também acho que os homens precisam de mimo. Mas as mulheres, também...

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

À volta da Volta

Aviso desde já os meus eventuais seguidores de esquerda, que não avancem na leitura. Ou, se avançarem, preparem-se para recuperar o vosso mais violento vocabulário para me insultarem. Ainda assim, cá vai ...
Eu sempre votei à Direita, acredito que Deus existe, vou à missa nos domingos (quase sempre), discordo dos casamentos homossexuais e acredito, convictamente, na singularidade do ser humano. Não sou feminista, nunca fui, e sempre achei um disparate a ideia de se queimarem soutiens como sinal de libertação. É que eu até acho que o soutien é uma peça muito confortável e prática. Pessoalmente, defendo que o companheiro ideal, (se marido, perfeito!), é aquele que nos deixa passar primeiro na porta do Restaurante, que nos abre a porta do automóvel e que está sempre disponível para, ainda que dizendo por vezes "dá uma ajudinha", consegue remover os calhaus que encontramos no quotidiano da nossa vida! Ora, assente o ponto de que nenhum resquício de feminismo me assalta, vamos ao que motivou este texto.
Ontem, no telejornal, transmitiram o fim da 1ª etapa da Volta a Portugal em bicicleta. Um ciclista, todo suado, com aquela indumentária pirosa (as cores, o tecido, tudo é FEIO) colada ao corpo, subiu ao podium e foi recebido por duas moçoilas sexy. As ditas meninas, com umas roupinhas ousadas e coladinhas aos corpos magros e sensuais, pespegaram dois beijinhos nas bochechas do vencedor. Ele, parecendo um pouco enfiado, recebeu as beijocas com o pouco á-vontade com que vestiu, por cima de todo aquele suor, a camisola amarela. Fiquei enojada e revoltada! Acordem, mulheres!! Haverá imagem mais humilhante para uma mulher do que ser considerada o prémio para um indivíduo que, em pleno mês de Agosto, prova a sua masculinidade vestido de amarelo e suando pelas estradas de Portugal?! Não estaremos perante um acto de verdadeira exploração da mulher do século XXI?? De repente, veio-me à cabeça a história, julgo que verdadeira, passada em casa de Obama quando, depois da vitória eleitoral, depois dos parabéns efusivos, Michele lhe lembrou que, no dia seguinte, era o dia dele levar as filhas à escola. Isto sim, é igualdade!!
Eu não gosto de ciclismo, admito. Mas convenhamos que as meninas que surgem nas provas de Fórmula 1, ou mesmo nos Rallyes, não têm o ar de prémio vulgar que ostentavam as jovens que ontem vi na televisão... Com tantos soutiens queimados, não haverá ninguém que liberte as moçoilas desta exploração vulgar da sua condição de fêmeas prémio de macho alfa??

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Pecado Mortal

Dia quente, desejo de férias, esplanada junto ao Tejo,  mesmo na vizinhança do Museu do Ultramar. Por companhia, um bom livro e a eterna Torre de Belém. Pedi o café, a lusa bica, e aventurei-me no pastel de nata, ali melhor que nos pasteís de Belém. Com o pastel veio a lembrança dos pecados mortais (e dos dez mandamentos que já não sei por ordem). A gula é um pecado mortal. Olhei o inocente pastel de nata, tão tranquilamente amarelo, e hesitei. Justificará o fogo dos infernos uma coisinha tão inofensiva? Arrisquei na pena anunciada e, devo confessar, soube-me, por antítese, divinamente aquele pecado!! Acho que se Jesus Cristo tivesse vivido uns anos mais, o tempo suficiente para perceber que a vida é por vezes excessivamente azeda e que há transgressões que a adoçam, teria eliminado a gula de pecado mortal... Acho, também, que se Jesus Cristo tivesse casado, se tivesse convivido diariamente com uma mulher, teria percebido que a vida não se faz de pecados e santices mas, sim, de afectos e sentires!!
Eu até posso ir parar ao inferno, embora o calor excessivo me desagrade, mas irei com a consciência de ter cometido os meus pecados desfrutando do sabor dos mesmos!! E o pastel de nata estava delicioso!!!

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Cabeça de Granada

Foi já há uns dias, ainda em Julho, que aconteceu o massacre na Noruega. Desde então, não há dia em que não pense naquele horror. Não foi a primeira vez que um indivíduo cometeu uma loucura destas, infelizmente, mas nem por isso deixa de ser impressionante a violência e a frieza deste homem (se é que um ser assim pode ser considerado homem...). Não há palavras suficientemente negativas para classificar este acto, não há lágrimas suficientes para chorar uma tragédia assim.
Mas talvez haja, no absurdo de toda a violência, uma lição positiva a tirar. Talvez este acto tresloucado (?) possa levar a sociedade dita moderna a pensar os Valores que a regem, os meios que a servem, as práticas que a destroem. Talvez seja mais um pretexto, porque infelizmente são precisos pretextos, para pensarmos todos na falta que faz o tempo dos afectos, a amizade cimentada, a construção de cumplicidades, a teia de relações no meio em que nos inserimos. Como mãe, confesso que as notícias que sempre mais me aterrorizavam eram "Desapareceu ..." para falar de crianças e jovens raptadas. Hoje, como avó, apavora-me a violência camuflada de ideais. Aterroriza-me o desprezo pela vida e a agilidade com que se dispara sobre inocentes. Temo que estejam a crescer, no chão de folhas secas que alcatifa os sons reais de uma sociedade humanizada, ervas daninhas com cabeça de granada. Como as que encontrei, por acaso, no meio de flores lindas e acolhedores relvados... Impressionou-me a forma como estas ervas, do nada, surgiam sugerindo Morte, e pensei que, se calhar, o jardineiro distraíu-se e não as eliminou a tempo. Julgo que, pese embora a pobreza da metáfora, é urgente estarmos atentos às cabeças de granada que crescem, inocentemente ??, sob os nossos olhares mais desatentos.
O assassino da Noruega, como os suicidas do 11 do Setembro, como tantos outros criminosos, não tem um sinal na testa, não é um ET. Pelo contrário, cresce ao nosso lado, vive por aí... Só uma sociedade diferente, mais humana de facto, pode, julgo, combater estes crimes!! Cabe a nós todos, não só aos governantes, reinventar a sociedade. Fazê-la de PESSOAS!!!

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

COMPREENSÃO

"Os portugueses compreendem"- é o chavão dos nossos dirigentes. Eu sou portuguesa e não compreendo!! Estou farta de sacrifícios, de aumentos, de dificuldades. Não compreendo como pode um administrador da CGD ganhar mais do que a senhora Merkel, não compreendo porque penalizam sempre quem trabalha, não compreendo como pode o estado ficar com mais de 50% daquilo que eu produzo sem me dar nada em troca! Não compreendo porque é que cada vez vivo pior, porque é que as dificuldades não páram, porque razão o meu país continua a entristecer! Não compreendo porque é que cada governo que surge, culpa o anterior e segue na mesma senda!!
Compreensão?! Não me peçam impossíveis... "Deixem-me ir para o inferno sozinha//Ou vão para o inferno sem mim"