segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O Senhor Taborda

O sr. Taborda chega à praia pelas onze da manhã, carregando o jornal, a toalha ao ombro, e arrotando sentenças. Para quem quer, e não quer, ouvir, informa que tem dois clubes, Sporting e Benfica, um que gosta de ver ganhar, outro que adora ver perder. Sempre bem alto, continua afirmando, com convicção, que Costa e Coelho são iguais e, por isso, desta vez vai votar no Costa para chatear o Coelho. Um amigo, suponho, pergunta pela senhora Taborda e o sr. Taborda, qual actor atento à deixa, declara que a sua senhora ficou em casa, a preparar a caldeirada que ele, apregoa ufano, não dispensa um cozinhado apurado e a mulher já veio à praia dois dias, já lhe chega. Que isto de deixar as mulheres virem muito à praia, não pode dar bom resultado. Mulher dele, sabe bem o lugar que lhe compete. Indiferente ao silêncio incomodado dos que o acompanham, o sr. Taborda apregoa em seguida as qualidades do filho. Um grande engenheiro! Um homem que sabe o que faz, e sabe mandar, garante. Ah, a ele ninguém engana, não há-de ser um 44... Nesta altura, os que com ele ocupam o lugar debaixo do guarda-sol vão dar um mergulho.   Mas o sr. Taborda continua, falando para a praia inteira que tenta ignorá-lo, a vomitar enormidades.
É tão aborrecido a gente cruzar-se com o sr. Taborda! E há tantos Tabordas...

domingo, 30 de agosto de 2015

FERRAGUDO

Férias na Praia da Rocha obrigam, naquela lei da rotina que tanto contesto às vezes, a ir almoçar a Ferragudo, ao restaurante Sudoeste, para saborear o peixe grelhado fresco e gostoso que só lá consigo encontrar. Ir a Ferragudo tem, ainda, o fascínio da viagem... Chama-se o barquinho e, numa navegação silenciosa protegida por um toldo azul, atravessa-se o rio. Hoje, o barquinho transportou-me só a mim e, talvez por isso, a conversa foi correndo. Que o mês da Agosto não foi tão bom (leia-se rentável) como noutros anos, que a vida está difícil, que até os estrangeiros parecem ter cada vez menos dinheiro... Corria um ventinho fresco, deixei-me embalar pela conversa. Sim, sabia já que seria hoje a maior amplitude de marés de todo o ano, confirmei. E lá disse da minha surpresa por ter conseguido passar por um lugar que, para mim, sempre fora o fim da caminhada.
Gentilmente, o meu condutor estendeu-me a mão para apoiar o meu "desembarque" e prometeu levar-me de volta. Foi tempo, então, de linguado grelhado, sangria branca bem fresca e um doce algarvio a lembrar a gulodice religiosa de frades e freiras de outros tempos...
No regresso, a conversa variou para a gastronomia e o percurso fez-se célere. É tão bom estar em férias da vida!

sábado, 29 de agosto de 2015

Praia

 
Ao fim do dia, sem aviso prévio, o céu encheu-se de nuvens e o vento soprou forte. Habituada a muitas tropelias do destino, não me assuste com as conversas que anunciavam um tornado mas, como não gosto de vento, arrume o meu livro e vim para casa, que é como quem diz para o apartamento alugado. Agora, sentada na varanda sobre o mar, vejo a praia a esvaziar-se e assisto à.  chegada das gaivotas. A esta hora, quando o dia se prepara para morrer, as cores do mundo, o dourado brilhante, enchem-me de encantamento!

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

LEMBRANÇAS


Hoje o meu Pai faria 90 anos. O meu Pai amava a vida, os amigos, a alegria, o campo, o mar, a família e o trabalho. Quando estava bem disposto, o meu Pai contagiava o mundo com a sua alegria... Para mim, quando era miúda, ele era um super-herói. Depois, mais crescida, percebi que ele era muito mais do que um super-herói porque, ao contrário deles, ele era real, combatia por causas efetivas e enfrentava monstros humanos. Nos momentos mais marcantes da minha existência, desde a operação ao apêndice, ao meu casamento e divórcio, passando pelo nascimento das minhas filhas, o meu Pai esteve ao meu lado.
Casei no dia dos anos dele, e lembro sempre as palavras segredo que me disse então. Ainda me guiam...
O meu Pai gostava de encher a casa de amigos, gostava de grandes almoços e de muita conversa. Para o meu Pai, toda a gente devia ter direito ao melhor e, por isso, lutou contra grandes poderes para conseguir uma Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente em Portalegre. Com o meu Pai, aprendi a amar Portalegre, a escolher um bom vinho, a preservar os amigos e a semear compreensão...
Hoje, o meu Pai já não está ao alcance da minha voz, já não pede que conduza pela Serra que tanto amava, já não me faz esperar no carro enquanto ia, num instante, ver um doente a casa, já não me ensina a distinguir o voo da perdiz, do da rola no céu. Hoje, o meu Pai já não me diz que o sol volta sempre a nascer, que é proibido dizer não sou capaz, que é obrigatório agarrar a vida pelas orelhas. 
Hoje, o meu Pai faz-me uma falta de doer!! Hoje, sinto um enorme desejo de ir ter com ele.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Aniversário

Há trinta e três anos passei um dia horrível. Fui para o hospital de manhã e, pelas nove  da noite, numa cesariana de urgência, nasceu a minha filha mais velha. Não recordo esse dia como agradável mas, sem dúvida, foi a partir de então que a minha vida mudou definitivamente. O meu foco de amor, de preocupação e de alegria, tornou-se aquela miniatura de gente que saira de mim e me olhava como se me conhecesse desde sempre. Hoje, com netos, vejo ainda o mesmo olhar na mulher que é a minha filha e acho que, pelo menos na educação que lhe dei, acertei em cheio!  Tenho uma filha amiga que me escuta e compreende, vejo uma mulher corajosa e alegre, e rezo ao meu Deus para que a proteja sempre. Podia eu morrer agora, em paz, porque sei que o meu maior objectivo foi alcançado: As minhas filhas têm asas para voar!

sábado, 22 de agosto de 2015

INDIGNAÇÃO

Há já muitos dias que não assistia a um noticiário. A casa cheia, os netos, o calor, o desejo de fuga, tudo me tem afastado daquilo que, ainda que incómodo, a todos diz respeito. Hoje, no meu silêncio habitual, assisti às noticias e arrepiou-me. Não é a campanha eleitoral, mais do mesmo, desfile de vazios, que me incomoda. O que me deixa angustiada é o problema insolúvel dos migrantes. Famílias desfeitas, crianças mortas, homens humilhados, mulheres desesperadas e a policia a usar gás! Que mundo é este, meu Deus?! Sei que a indignação nada resolve, mas a minha revolta é também comigo mesma. Como posso desesperadamente sofrer só porque a vida não se faz a meu gosto?!
 

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

La Palissadas

Estar em férias é muito bom, claro. Mas, às vezes, é também incómodo porque não temos desculpa para fugir ao encontro com nós mesmos, com aquele eu que mora em cada um de nós, que para o Pinóquio podia ser o grilo falante, mas para mim é mesmo a voz da Razão. Nestes dias de ausência de trabalho, sem ter de pensar em estratégias de sucesso, nem em aulas divertidas e interessantes (ainda acho que se aprende mais e melhor com prazer!), tenho tido muitas horas para gastar comigo. E, apesar de alguns desentendimentos dolorosos, nem sempre eu e o meu eu estamos de acordo, concluí algumas verdades: - Não adianta, por exemplo, querer manter alguém na nossa vida. Se esse alguém quiser ficar, vai saber como; não adianta, também, acreditar que se alguém fez parte do passado tem de fazer parte do futuro, porque só o presente existe de facto... Sobretudo, não adianta querer acertar sempre, porque desistir e errar, às vezes, é só sinal de inteligência!

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Duvida

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 A vida não tem livro de instruções. Por um lado, é bom, torna a existência mais suportável. Por outro lado, é terrível porque a gente sofre que se farta...
Agora, olhando o meu mundo a deixar de o ser, desfiando erros e falhanços, desejava ter tido um livro de instruções porque, pelo menos hoje, não sei como encaixar as peças da minha existência...


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O BAPTIZADO

O dia declinava já quando o Alentejo amarelecido nos viu passar. Esperava-nos, no silêncio belo daquele Lugar, a capela do Senhor Jesus dos Aflitos. Cá fora, as crianças brincavam, corriam, faziam perguntas e, quero crer, aprendiam afectos que há muito marcam pais e avós. Os amigos chegaram, poucos mas certos, e Sebastião da Gama deu início à cerimónia. Desta vez, não ficou tudo como estava, porque a pequena Constança, vendo a avó junto ao altar a ler, decidiu correr para ela..., aflita, pedindo para fazer xixi! É assim, afinal, a vida: - as urgências da existência sobrepõem-se à Fé...Depois, perante o sorriso amigo de todos, o pequeno António, feliz na segurança inconsciente dos seus cinco meses, recebeu a água sem choro e prestou atenção às palavras de oração.
A festa acabou em torno da mesa, na verdadeira fraternidade que só os amigos conseguem, e eu acredito, mas acredito mesmo, que o meu neto António ficou mais rico porque, na sua inocência e fragilidade, sentiu que terá sempre amigos para o ajudarem a sorrir à vida. Obrigada a todos, digo eu por ele!

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O PRESENTE

Entrou em casa com as mãos atrás das costas e encontrou-a na cozinha. Tinha colocado o grande avental vermelho e, no nariz bronzeado, havia farinha. Reparou nas rugas em torno dos olhos, nalguns cabelos brancos que fugiam do elástico com que prendera o rabo de cavalo e sorriu-lhe. Para ele, cada ruga fazia sentido e ela era, ainda, a miúda por quem há muitos anos se apaixonara.
 Trago-te um presente. Ela levantou para ele os olhos escuros e sorridentes. Vou adivinhar... Trazes-me chocolates, after eight!! Ele não se mexeu. Frio, muito frio... chocolate não é presente, é gulodice. Ela, esquecendo as mãos sujas, levou-as à testa. Era agora um olhar enfarinhado que insistia: Então, trazes-me flores! Já sei, trazes a rosa amarela do quintal! Frio, muito frio... A rosa continua lá, no lugar dela. Sabemos os dois que há coisas que são sempre mais belas no lugar de origem. Ela ofereceu-lhe um sorriso total e rendeu-se. Desisto! O que me trazes? Ele abraçou-a, sentiu a camisa de linho encher-se de farinha e apertou-a junto ao coração. Trago-te a mim, inteiro e total, para um abraço eterno. Sentiu as lágrimas mornas molharem-lhe a camisa, mas nem pensou que a farinha daria agora uma papa...

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

CUMPLICIDADE

Ele trouxera a guitarra, ela o vestido longo. Sentaram-se no velho muro, aquele mesmo onde, em crianças, procuravam musgo, e ficaram olhando o campo. Ela lembrou Cesário, o leite baptizado antes de vendido; ele dedilhou Graça Moura. As cigarras, sempre seguras da sua musicalidade, responderam em coro e, sem que Deus desse por isso, as lágrimas aqueceram o rosto dela. 
Ele, então, fez soar Pessoa, e ela sorriu.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

FILMES

Deixou o telemóvel fechado na gaveta da velha cómoda, vestiu os calções informais, escolheu a Lacoste que ela preferia e fechou a porta. No automóvel, protegido do Verão excessivo pelo ar condicionado, reviu a vida: - Adiamentos, prioridades, frequentes impossíveis, afazeres, urgências, julgamentos precipitados, culto de aparências.
E o amor aguardando uma oportunidade, o momento certo, as condições que os outros impunham. Tinha acordado agora, e acelerava devorando quilómetros. Seria, talvez, tarde demais? No coração levava a esperança envolta em medo. E se ela tivesse partido? E se o The End tivesse encerrado o seu filme antes do termo da história?

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

MÚSICA


O dia quente, aos poucos, despedia-se, dava lugar a uma noite calma, musical, trazida por vento oportuno e refrescante. Marvão, seguro na força da história já vencida, esperava-me. Como Anteu, na paradoxal insignificância do meu ser, preciso pisar os lugares que me fazem, que são meus também, para seguir existindo... E Marvão abraça-me, sempre, oferecendo-se para, sob a protecção das águias, me ajudar a reacreditar no mundo. 
À entrada do castelo esculturas recortadas contra o vale imenso, a ideia de que, de facto, somos apenas sombras! Lá dentro, no pequeno pátio do velho castelo, protegida pelas muralhas limpas, a orquestra desafiava sentires e sentidos. Sentei-me, fechei os olhos e deixei-me levar pelas cordas dos violinos, pela energia do violoncelo, pelo entusiasmo do maestro alemão que, a custo, dizia em português "Obrrigaaada Márvão!!"
Depois, a noite. O escuro do manto que o silêncio faz, tantas vezes, assustador. A cama, o sonho que insiste em ganhar forma de pesadelo e a oração, silenciosa, pedindo um amanhecer diferente. Como música, então, apenas o coro de cigarras vadias.