quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Poesia

É o que fica depois de tudo, a Poesia. Não sei onde li esta frase, mas ecoa muitas vezes em mim. Porque a Poesia me faz falta, me conforta, me surge como boa companhia. Há poetas que são os da minha eleição e, sem dúvida, Fernando Tavares Rodrigues é um deles. Hoje, tenho pensado muito nele:

"Para te dizer tão-só que te queria
Como se o tempo fosse um sentimento
bastava o teu sorriso de um outro dia
nesse instante em que fomos um momento."
in, Carta de Amor

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os lindos braços da Júlia da Farmácia

O título era sugestivo. Imaginou um romance actual, feito de tentações e provocações, tecido de modernidades e ousadias. A capa, vermelha, ajudava a imaginação a voar. Levou-o na viagem e começou a leitura. Escrita escorreita, correcta, solta, marcadamente viril, e a realidade de muitas vivências a ganhar cor e sentido.
Pequenas narrativas, contos que a deixavam suspensa até ao fim e, no ponto final defintivo, lhe permitiam ficar sonhando. Curiosamente, nenhuma personagem se chamava Júlia e não havia nenhuma farmácia em qualquer dos enredos. Faltava apenas um conto e guardou-o para um momento especial, para um tempo de qualidade, enroscada junto à lareira talvez. Reunidas  as condições, noite já, com uma caneca de chá bem forte ao lado, foi buscar o livro. Onde estava? Onde o tinha abandonado? Deu voltas e voltas, voltou até a abrir a mala da última viagem, mas do livro nem rasto. Provavelmente, teria deixado os lindos braços da Júlia da farmácia na casa de banho do aeroporto... Agora, nunca saberia porque eram lindos os braços daquela Júlia!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Afogamento

Compreendo hoje, muito clara e eficazmente, o sentido da expressão "afogada em trabalho". É assim que estou. Entre dossiers, trabalhos para analisar, aulas para preparar, textos para escrever, telefones para atender e batidas de coração para acalmar, não consigo respirar e sinto que posso mesmo sucumbir a qualquer minuto. No meio deste mar de tarefas, salta mais uma grelha excel no meu email. Mais uma para preencher, e sinto que é o último gole que consigo engolir antes do fim!
Para quê tantos inquéritos, tantos estudos, tantas fichas e grelhas, com quadradinhos e risquinhos, percentagens e médias?! Sinto que de nada servem! Afirmando procurar promover o sucesso (?), criam-se equipas que, por sua vez, criam grelhas e, no fim, quem sai literalmente grelhado é o mundo, as pessoas, seres que, outrora pensantes, se estão a transformar em executantes acéfalos!
Agora, neste preciso momento, olhando para mais esta grelha, irritantemente quadriculada e colorida de verde vómito, tenho vontade de ser um carapau de escabeche! Assim, ao menos, em vez de me comerem por parva, comer-me-iam pelo sabor e eu teria morrido por uma causa inteligente!

Botas Hunter

Calça as botas hunter, abotoa o casaco e está pronto para a aventura de descobrir o Zoo. O ar é sério, afinal, não é todos os dias que se vêem leões, tigres e macacos, e o pequeno gentleman não tem muita paciência para disparos de máquinas babadas... Dá-me a mão e mostra-me o tigre enorme, o leão gordo, a leoa que se aproxima. Depois, leva-me aos mochos e lembra-se da música que tantas vezes ouve - twinkle twinkle litle star. Seguem-se os macacos, as galinhas, os papa-formigas e, finalmente, as cobras. Pede colo. Olha com desprezo os répteis imóveis e sai aliviado. Eu também, confesso...
É bom ver o Manel Bernardo descobrir a natureza, aprender a vida animal, crescer desfrutando das coisas importantes do mundo que integra. É bom, faz-me bem, vê-lo calçar as botas de borracha, tão inglesas, e fazer-se aos caminhos cobertos de folhas com desenvoltura. O Manel Bernardo está a criar raízes numa terra diferente, a aprender a ternura numa língua distante, está a aprender a ser homem com o privilégio de poder contar com tempos de qualidade! Vejo-o, sinto a falta da sua presença, dói-me o abraço vazio, mas sinto o coração tranquilo por o saber a encarar, diariamente, novas experiências de crescer! Para o Manel Bernardo queria que o mundo se endireitasse. Que para sempre pudesse ter a proteção de botas hunter nas caminhadas da vida...

domingo, 27 de novembro de 2011

Pontuação


Muitas vezes, quero crer que algumas com êxito, ensino aos meus alunos a importância dos sinais de pontuação. Ajudo-os a descobrir como são secretas as reticências, como nos ajudam a parar para pensar os pontos finais, como respiramos melhor com as vírgulas certas, como o espanto cresce com a exclamação, e como a nossa dúvida ganha novo sentido com a interrogação. Hoje, sentada no avião três longas horas, a rebentar de saudades já, reparei que também os parêntesis, ou sobretudo os parêntesis, fazem sentido na vida das gentes. Sinto, eu, que abri um parêntesis na minha rotina e, nesse espaço, pude saborear ternura, envolver-me em afecto, praticar a tal cumplicidade de que tanta falta sinto! Neste parêntesis, fui pessoa inteira, redescobri a gargalhada descontraída e voltei a sentir a força do cheiro do café gostoso. Neste espaço da narrativa que é a minha existência, existiu como que uma ponte, bela e firme, deixando correr as angústias e unindo, como segurança, as duas margens do mim, o ser e o existir.
Agora, infelizmente, tive de colocar um ponto final. Vale-me a certeza (ou a esperança?) de não ter sido um parágrafo!

sábado, 26 de novembro de 2011

Cambridge Ainda!

Por pontes, caminhos seculares, arvoredos vermelhos e castanhos, caminha em Cambridge. À novidade das primeiras vezes sucedem-se, agora, novos olhares e muitas memórias. Sente o frio gelado, abotoa bem o casaco e ri-se do nariz vermelho do bebé que gargalha abraçando-a com força. É o tempo com sentido. É a vida que deseja, feita de presenças, de cumplicidades, de ternuras. Aqui, agora, a sua vida decorre sem imposições para além da ternura. É o espaço da sua essência. Que pena existir a palavra fim. Que pena o avião ter lugar marcado para o regresso.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

PARABÉNS

Faz dois anos o Manuel Bernardo. É um miúdo de caracóis loiros, sorridente, bem disposto, falando uma mistura curiosa de português e inglês. O Manel Bernardo escolhe as palavras de acordo com o grau de dificuldade e, assim, fala na sua língua intensamente carregada de expressividade. O Manel Bernardo sabe que o Peter Pan voa com a Fada Sininho, conhece os animais da Disney e canta as músicas dos youtubes infantis, intercalando com as músicas portuguesas de outras infâncias. O Manel Bernardo faz hoje 2 anos. Quando nasceu, minúsculo, olhava-nos com vontade de agarrar o mundo e, passados dois anos, já agarrou a vida. Olha-me com alegria, recebe-me com ternura e presta muita atenção às histórias que invento para ele. No meu colo, bem aninhado e atento, ouve-me falar-lhe de coisas do país distante que já não é o dele. Resumo tudo à Serra... falo-lhe de histórias de afectos que quero crer herdará, falo-lhe da magia das noites de Verão, da sonoridade das noites de Inverno, das cores cheirosas dos Outonos de sempre. Se eu pudesse, no segundo aniversário do meu neto, oferecer-lhe-ia a chave para a ternura e o acesso directo ao Amor. Vejo-o tão indefeso e temo por ele. Queria, ah como queria..., um mundo bem diferente para todos os Manel Bernardo  do mundo... E falo-lhe, por isso, da necessidade de amar, de crer, de olhar as estrelas, de reparar na cor das árvores, de aprender o cheiro das flores.
Hoje, o meu Manel Bernardo fez dois anos. É um projecto de homem e eu queria ser capaz de o ajudar a construir alicerces seguros para a sua construção humana!
Parabéns Manuel Bernardo!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

De longe

De cima, a uma altitude considerável, comecei a reencontrar a Inglaterra que adoro. Um país atapetado de verdes e castanhos, regular, nesta época pincelado de vermelhos e dourados brilhantes. A receber-me, o frio gelado, puro, real. Marquei a chegada com o café no Costa e cheguei a Cambridge tranquila, em paz com a existência. Aqui, consigo ignorar as angústias, as desilusões, os temores intensos. Pego no meu neto, dou pão aos patos, passeio no Mercadinho e deixo-me envolver pela magia das luzes de Natal que já enchem a cidade. Aqui, a ternura verdadeira do Manuel Bernardo, as gargalhadas infantis, os abraços quentes, fazem-me acreditar que viver não é, não pode ser!, cumprir rotinas e imposições. Aqui, tenho tempo para conversar comigo, para desfiar momentos de mim-comigo, de reinventar sentidos que, por vezes, me parecem inexistentes.
É bom estar em Inglaterra!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

De partida

Mala pronta e um desejo intenso de partir. Partir ao encontro da ternura, da paz, da vida onde os sorrisos acontecem sem cargas negativas, sem culpas nem acusações. Cansada de existir, esgotada da busca de sentidos de ser, parte. Destino? O infinito. A distância, o espaço diferente, sem ordens impostas, sem representações socialmente aguardadas. Parte sem saudade, com os sentires amarfanhados no fundo da mala esmurrada, esfolada, prova de tantas partidas da vida. De tantos regressos, infelizmente, também...
Partir. E lembra os portugueses de outrora, as lágrimas salgadas que deram sabor ao mar. Também conhece o sabor desse sal. Mas agora come um chocolate - come chocolates, pequena! - e delicia-se com o sabor das emoções.
Vai partir!

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A Vigarice

Parece generalizada a ideia de que viagrizar o próximo, burlar, mentir para tirar benefícios próprios, é prática corrente. Pior, para mim, é que há quem  ache que mais grave do que roubar é, imagine-se..., deixar-se apanhar!! Um dos meus alunos, já adulto e com direito a voto, ao comentarmos o caso Duarte Lima, afirmou: "Pior que ter burlado, é ser burro! Então um homem com aquela massa toda fica em Portugal à espera de ser preso?! Se fosse eu, era já um marajá num oásis distante!" - Obviamente, são afirmações impensadas, para fazer conversa apenas. Mas as palavras deste jovem ficaram a ecoar dentro de mim: - "Se fosse eu..."
Como é possível que haja tanta mentira e vigarice na alta esfera, eu até compreendo. Basta olhar a forma como sempre (ou quase) governantes e dirigentes enriquecem. O que eu não compreendo, ou o que me incomoda, é o facto destes comportamentos estarem a ser aceites com um simples encolher de ombros pela sociedade.
Não sei se Duarte Lima matou, ou não. Mas gostava de perceber como foi possível enriquecer tão rapida e eficazmente aos olhos de todos... Infelizmente, não foi o único. Tenho medo de ver surgir uma caça às bruxas, de ver perseguir todos os dirigentes, mas, simultaneamente, não percebo porque continua a ser possível saltar de governos para empresas, usufruir de chorudos ordenados trabalhando pouco ou, o que é para mim ainda mais surpeendente, como é possível haver pessoas que sabem de tudo, e que tão depressa são ministros como administradores de empresas...
Neste momento, com a crise instalada e para ficar, com a Troika a sufocar tudo e todos, com os tecnocratas aos comandos, apavora-me o facto de existir. Tenho medo de muita coisa. Sinto-me ameaçada e, sem dúvida, tenho medo que a vigarice vença sempre...

domingo, 20 de novembro de 2011

Democracia Assim?

Em Itália, afastaram-se os pólíticos e nomearam-se os tecnocratas. Parece, dizem, que vai dar certo, que vão ser tomadas medidas eficazes e resolverem-se os problemas graves que o país enfrenta.
Eu não percebo nada de política, mas confesso que me faz muita confusão esta decisão. Parece-me ser um atropelamento escandaloso da democracia, um pôr em causa direitos que, julgava eu, eram basilares do sistema democrático! Como se pode, simplesmente, afastar políticos, não fazer eleições, nomear tecnocratas e seguir em frente?! Tenho lido, com um misto de curiosidade e incredulidade, o que dizem os sabedores (sábios já não há) sobre isto, mas, talvez por burrice minha, continuo muito baralhada. Sei que há maus políticos, que nem todos (embora possa parecer) estão em Portugal, mas, ainda assim, penso que é perigoso enveredar por uma guerra cega contra todos, eliminando-os, condenando-os, fazendo com que pareçam dispensáveis.
Não compreendo um sistema democrático sem Partidos políticos, sem representantes desses Partidos, sem pluralidade de ideias e vontades. Olho com muita angústia o que está a acontecer em Itália. Penso, o eterno vício luso, no meu pobre país, e concluo que, ainda que ache que a maioria dos políticos portugeses deixa muito a desejar, prefiro estes a nenhuns!

sábado, 19 de novembro de 2011

Fim

O céu escuro, almofada negra, faz-lhe companhia. A estrada, por sua conta, brilha lavada e, hesitantes, esvoaçam pardais. Nas bermas há automóveis parados, é tempo de caça, e ela circula na companhia da sua música. Tem tempo, dormir é algo que faz pouco, saíu cedo, pode conceder-se o luxo de aproveitar os quilómetros para esticar o tempo. É a última jornada de trabalho para aquele lugar distante, mais de 140 kms, e leva consigo, consciente mas involuntariamente, a nostalgia do fim.
Há dois meses que iniciou o trabalho, sessões de três horas, muita discussão, muitos desafios, projectos de mudança ousada. Agora, sente que lançou sementes, que algumas ideias germinarão, mas já tem saudades das aprendizagens partilhadas, das gargalhadas, de algumas angústias também. É o fim da sua tarefa, ali. E há sempre um fim. Um fim que a atormenta, ainda que não surpreenda, que a emociona sem remédio. Na calma da viagem, decide-se contar os fins que viveu já. Tantos! Os dedos não chegam. Houve fins de alívio, fins de desespero, fins de imposição, ... Ainda assim, sempre os fins de desilusão doem mais.
Hoje, Obrigada Deus!, o fim não era de doer.
Amanhã?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Absurdo

Frio, chuvinha de chegar aos ossos, e solidão. Saíu de casa cedo, abotoou o casaco forte e foi andar. Tinha tempo. Tinha, escandalosa e desnecessariamente, todo o tempo do mundo. Findas as urgências, todas tão relativas, tinha agora os minutos a tecerem horas lentas e compridas. Felizmente, estava frio! Ignorou o trânsito e rumou a Cascais. Tinha um desejo absurdo de frio. De algo forte, capaz de a envolver, de a fazer crer que há um sentido. Algures.
Parou o carro e caminhou apressada, a urgência de não chegar a lugar nenhum, pisando com força o chão branco e preto de que tanto gostava. Das pastelarias, vazias, das lojas com promoções, vazias também, vinha um calor falso, produzido e não humano. Abandonou a rua principal, escolheu os becos e encontrou-se nos bancos de pedra, grafitados com palavras agudas e frustrações sexuais, virados para o mar. Sentou-se, sentindo o frio húmido, tremendo, e com vontade de se imortalizar ali. À sua frente, os espinhos de enormes cactos ocultando o rebentar das ondas. Os espinhos a permitirem vislumbrar o Belo, a impedirem o desfrutar completo. O Absurdo. Real, concreto, salgado como a água que sentia nos lábios. O Absurdo dizia presente. Desafiou-o. Aqueles cactos, ainda que enormes e cinzentos, ameaçadores nos milhentos picos, não lhe roubariam o gozo do mar da baía de Cascais. Abandonou o banco, sentou-se no muro, ficou vendo velejadores ousados, ondas enérgicas, gaivotas planando. Tinha tempo. Sim, por absurdo que isso fosse, tinha tempo que não precisava encher de coisa nenhuma. Agora, tinha já todo o tempo do mundo.

Pintura

Olhei Monet. Ouvi os meus alunos dissecarem Guernica, recordei passeios em Praga e Madrid, relembrei o impacto da Ronda Noturna, em Amesterdão, e reparei nas cores deste Alentejo agora fresco. As cores, as representações, o todo e a parte, o mundo significativo da Arte - a transfiguração do real - ficaram ecoando dentro de mim. Quem me dera ter uma palete de cores vidas. Como eu gostava de poder pintar de cores com sentido a existência. Toda. Egoisticamente, a minha em primeiro lugar! Eliminaria os cinzentos, não me venham com a importância dos contrastes!, daria espaço ao verde esperança, ao vermelho paixão, ao azul infinito, ao amarelo Portalegre. Bem largas, deixaria barras laranjas, perfumadas, sugerindo passagens e mudanças.
Ah! se eu tivesse uma caixa de aguarelas mágicas...

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Estórias

"Pela estrada fora, eu vou bem sozinha, levar estes doces à minha avozinha"... era assim a cantiga da Menina do Capuchinho Vermelho da minha infância. Era uma estória educativa (mais ou menos) mas, para mim, era fascinante o facto da menina ser capaz de, sozinha, sabendo que o lobo mau rondava ali bem perto, enfrentar a travessia da floresta. Na época, acho que não me incomodava muito a solidão da avozinha, talvez por ainda a velhice me parecer tão distante quanto a lua. Hoje, já não conto esta história. E não conto outras, como a Gata Borralheira ou os Três Porquinhos, ou mesmo a Bela Adormecida. Hoje, acho que muitas dessas velhas narrativas carregam terrores e ameaças sinistras. Acho incrível terem mandado a miúda sozinha pela floresta, como acho indecente que a menina não tivesse outro nome que a cor do casaco que vestia!
Das estórias infantis, para o meu neto, só guardo o Peter Pan e a Sininho, a Pancada Nela ou as outras que eu mesma invento. Nas minhas estórias de contar, há sempre vida, ternura, gargalhadas, carinho e muitos pozinhos de perlimpimpim. Às vezes, apetece-me muito ser uma das personagens das histórias da minha infância.

Diálogo

- Dás-me?
- O quê?
- O que preciso.
- Não entendo.
- Pois. Faz um esforço. Preciso do que não tenho.
- Hummm.... Paciência? Sono? Mimo? Carinho? Dinheiro? Saúde?
- Não. Nada disso. Preciso de mais. De diferente. Preciso de um cravo que cheire a rosa, de um livro com letras móveis, de um olhar sem destino, de um sim porque é claro, de um não porque não me apetece, de uma gargalhada sem rede nem teia. Preciso de palavras puras, a estrear, ainda livres de conotações abusivas. Preciso de homens pessoas, de mulheres com rugas, de crianças com joelhos esfolados, de velhos que não são idosos, de bebidas fortes, de cansaço não patológico, de carne vermelha, de peixe não congelado. Preciso, até, de cebolas com saias que provocam lágrimas. Preciso de noites com estrelas, de água da torneira, de uma manta de lã que substitua o meu edredon sintético.
- Ah! Afinal, tu pedes-me a vida autêntica!
- Isso.
- Impossível. Não existe mais. Posso dar-te uma vista virtual da Casa Branca, oferecer-te a simulação de um mergulho nas cataratas do Niagara, levar-te no google earth a visitar Moscovo, oferecer-te uma viagem à lua, mostrar-te as cuecas do Brad Pitt, dizer-te quanto custam as camisas de Cristiano Ronaldo, mas a vida, a autêntica, extinguiu-se.
- E tu, então, quem és?
- O sonho desiludido que te surge apenas quando a tua insónia negra  o protege da luz. Só.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Palavras

Fazem parte do meu quotidiano, as palavras. Trabalho com elas, vivo por elas, sinto com elas. Às vezes, magoam-me fundo, outras vezes são algodão que aconchega os meus sentires. Preciso da palavra dita, pensada, escrita também. Se, hoje, me pedissem uma definição de mim mesma, diria apenas que sou uma sequência de palavras desordenadas. Pensando nisso, recuperei um poeta, um Poeta que, não sendo dos meus preferidos, me toca fundo muitas vezes. Aqui fica. Sem segundos sentidos, sem sugestões de leitura, a poesia apenas.
As Palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Poupar

Brincando, a eterna capacidade lusa de rir da própria desgraça, contava ontem um amigo que o ministro Vitor Gaspar só já assina Vitor Par para poupar no gás... Achei piada, mas fiquei a pensar que estamos, de verdade, a ter de poupar em coisas demasiadamente essenciais. Tão essencias que perturbam a nossa essência, dificultam a existência e esvaziam a nossa identidade. Poupa-se no supemercado, na gasolina, nas idas ao restaurante, nas férias, na electricidade, no pão, no café, no cabeleireiro, na roupa, na farmácia, etc. Poupa-se tanto que se começa, talvez sem dar por isso, a poupar nos afectos, na ternura, nas conversas longas, nas cumplicidades, nas humanidades.
Vivemos tristes, preocupados, ansiosos, dependentes da fuga exageradamente rápida dos euros das nossas contas bancárias. Será viver? Será que estamos a assistir ao terminar de uma era de ser-se pessoa,  para entrarmos na era da contabilização? Eu tinha esperança de que o actual governo mudasse alguma coisa. Tinha... Neste momento, alio a uma profunda desilusão um medo, medo até físico, de destruição e incapacidade de sobrevivência. Apetece-me perguntar: - Onde moram as pessoas que deveriam habitar nos governantes desta louca Europa?!

sábado, 12 de novembro de 2011

Utopia

Tenho uma amiga, uma Amiga mesmo, que inicia o seu blog com "Pela Utopia Sempre!". Como vou visitá-la, na blogosfera, todos os dias, às vezes mais do que uma vez, esbarro com este grito frequentemente. Oiço-o sempre, intenso, fundo, parecendo-me, às vezes, ter sido lá colocado para mim... Veleidades minhas, claro, sei bem que não foi assim, mas, ao abrigo do meu silêncio, faço-me de especial e tomo-o para mim. Às vezes, ao lê-lo, fico com os olhos húmidos, com a alma a doer, com o coração encolhido; outras vezes, dá-me força, levanto a cabeça, respiro fundo e vou, uma vez mais, com garra à vida. Então, volto a agarrar as minhas bandeiras, sacudo do pó da desilusão alguns sonhos e, repetindo baixinho o tónico pela utopia sempre! retomo a luta. Volto a achar que faz sentido acreditar, que tenho de ser capaz de conquistar o meu lugar neste mundo louco, que tenho de conseguir voltar a pintar de cores vivas o preto  das minhas insónias. A utopia é, talvez, o alimento da minha essência. Luto por sonhos, combato por impossíveis, choro quando esbarro com a desilusão mas... Pela Utopia Sempre!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

11-11-11

Não se fala noutra coisa: - Hoje é o dia onze, do mês onze, do ano dois mil e onze. Uma coincidência de algarismos que permite mil brincadeiras, outras tantas divagações e iguais absurdos. Logo de manhã, a RFM (a minha mais fiel companhia) anunciava o dia, alertava para a possibilidade do Apocalipse (que alívio) e dizia para prestarmos atenção ao final da manhã, porque, quando faltarem 49 minutos para o meio dia, o relógio marcará 11H11 do 11/11/11, um raro número que, para os adeptos das ciências ocultas, pode indicar a ocorrência de eventos incomuns. Não acredito na numerologia, nem esoterismos absurdos, mas admito que hoje sinto um formigueiro estranho na alma. Tenho uma espécie de temor, uma sensação estranha de que alguma coisa vai acontecer. Provavelmente, nada acontecerá, mas eu penso no dia, nos números, e sonho na possibilidade de se conjugarem forças para surgir uma nova consciência cívica e social, uma efectiva verdade nos afectos e nas relações, uma humanidade menos técnica e mais feita de sentires e compreensões. A partir de hoje, o mundo podia começar a rodar de forma mais harmoniosa, o Tempo poderia ganhar novas qualidades e as pessoas  poderiam, finalmente, criar brechas para que entrassem os afectos!
No entanto, se, por acaso, o Apocalipse vier mesmo, acho que vou ficar aliviada! É que ando muito cansada, exausta mesmo, desta existência oca de Valor.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Redes Sociais

Há dias que me confundem! Sinto-me um fóssil, um homem - neste caso mulher - do tempo da pedra lascada. Sinto-me fora do tempo, nativa de outra dimensão! E isto acontece com cada vez mais frequência o que, convenhamos, é grave. Muito grave quando ocorre, como hoje, no meu espaço  profissional... Entrei na sala de professores, um lugar de conversa e trabalho, e reparei que muitos colegas, muitos!, estavam envolvidos em si mesmos. Olhei melhor e constatei que estavam dobrados sobre os computadores portáteis, Magalhães e afins, nos Facebooks. Num esforço de integração, estou cansada de ser marginal, aproximei-me. Uma colega estava a vender ovelhas e a negociar a compra de um estábulo. Outro procurava feno, outro dava milho às galinhas. Perguntei se tinham comprado uma herdade e fiquei a saber que era só virtual. Era o FarmVille, explicaram-me. Não percebi, nem perguntei mais nada. Fiquei a pensar no sentido que terá vivermos num mundo de faz de conta, de ficções e confusões. Fiquei a pensar que, se calhar, estamos a brincar com o fogo ao destruirmos a relação entre as pessoas, ao eliminarmos as trocas de olhares, o toque, o cheiro. Fiquei a pensar que eu não quero uma quinta a fingir, não quero dar milho  a galinhas que não cacarejam, não quero vender nem comprar feno para cavalos que não escoceiam, nem para vacas sem estrume. Fiquei com a certeza, certeza absoluta, que se esta realidade é o mundo de hoje, eu quero ser parte do mundo de ontem! Não quero pôr fotografias das minhas férias no Facebook, não quero likes de que não gosto nem dislikes que não entendo! Fiquei com a certeza que preciso de sentir que ainda é diferente falar do que teclar. Hoje, fiquei angustiada com a força das redes sociais!

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Gostei

Confesso que não sou admiradora do nosso presidente da república. Aliás, verdade-verdadinha não o tenho em grande conta e acho, muito sinceramente, que ele é um dos principais responsáveis pela miséria (a todos os níveis) a que chegou Portugal. Normalmente, quando ele fala na televisão eu mudo de canal; quando encontro notícias sobre ele num jornal, viro a página. Não gosto da dicção, nem a forma, nem das expressões, nem do conteúdo, nem das ideias que o definem!
No entanto, há pouco gostei que ele falasse português na ONU. Gostei que tivesse usado a nossa língua, tão maltratada e vilipendiada, que fizesse ouvir-se o português naquela reunião de gente poderosa. Talvez seja tarde demais. Com certeza de nada serviu, efectivamente, ter falado em português, mas, ainda assim, senti um certo calorzinho na alma quando o ouvi falar a nossa língua. Muitas vezes acho que nós, portugueses, somos excessivamente servis, demasiadamente humildes, sempre prontos a apoucar-nos face aos que, teoricamente, são grandes e ricos. Gosto de ouvir a nossa língua em lugares de destaque e gostei, estupidamente gostei mesmo!, de ouvir o presidente da república usar a língua de Camões na ONU!

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Foi por ti

Foi por ti que abri a janela para olhar a lua. Foi por ti que tirei da estante os livros empoeirados para recuperar a Ursa Maior. Foi por ti que experimentei juntar o queijo que detesto, ao doce de abóbora que adoro. Foi por ti que pintei de azul as malvas da minha porta. Foi por ti que olhei os castanheiros carregados de ouriços. Foi por ti que misturei Snappy no vinho tinto intenso. Foi por ti que disfarcei a solidão com letras tecladas. Foi por ti que resisti aos mon chéri deliciosos. Foi por ti que me levantei, de noite ainda, para partilhar a torrada com manteiga. Foi por ti que contei as estrelas do meu adormecer. Foi por ti que senti a ausência pintar-se de negro. Foi por ti que o meu corpo gritou calado na noite fria.
Foi por ti que desafiei a existência.
Só por ti!

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Raio de Sol

Está frio lá fora. Frio nas janelas, parecem pintadas com gelo picado, frio nos narizes dos miúdos que gozam o intervalo buscando um raio de sol. Vejo estes jovens da minha janela de trabalho, enquanto teclo textos, elaboro projectos, respondo a emails, preparo formações, aqueço as mãos num café forte. Vejo-os procurando o sol, tocando-se timidamente (ou não), de certa forma provocando a vida, despertando essências. São jovens com a vida a haver, com desejo de ser gente e pessoa. Gosto de os ver. Gosto de os observar, de ouvir as gargalhadas, de poder vê-los sem ser vista. Às vezes, como hoje, comove-me a força com que riem, as cores garridas que vestem, a força com que mordem a boleima que acabaram de comprar. Mordem o pão como mordem o quotidiano, quero eu acreditar, procurando saciar a fome de existir que ainda não sabem SER. O raio de sol brinca nos cabelos das miúdas, aquece os ombros desprotegidos dos rapazes, envolve-os nos recantos onde trocam beijos apaixonados e desejosos. Sinto que o sol é cúmplice. Que do céu vem com força protectora e ternura mágica. Em silêncio, peço-lhe  que não fuja.
Ao menos que o sol aqueça a ternura dos meus miúdos a aprenderem a ser gente!

domingo, 6 de novembro de 2011

A Crise

Chegou sem fantasias, sem cavalo branco, sem anúncio prévio, sem sequer um moderno sms que a preparasse. Chegou numa surpresa indesejada, trazendo anúncios terríveis, futuros assustadores e medos garantidos. Vinha ainda a falar nos gregos, ofendendo um povo filósofo, e carregava pinceis negros e cinzentos para pintar a realidade. Tentei fechar-lhe a porta, descer os estores, trancar as janelas de madeira envelhecida, mas de nada serviu. Chegou servida por mãos letais, carregada da força que marca a mediocridade actual, impôs-se e roubou a minha tranquilidade. Não contente, como se o assalto fosse pouco, destruiu o meu sono e fez da noite um desfiar de escuridões intensas. Agora, dominando os meus pensares, assustando terrivelmente os meus sentires, faz-me tremer cada amanhecer. Cada entardecer também. Não sei quem é, ou são, os responsáveis por estes abusos, mas gostava de poder chamar um polícia eficaz que prendesse a horrível Crise que me tira a paz

sábado, 5 de novembro de 2011

Sábado

Trabalha-se nos sábados. Sob um sol gelado, com os termómetros gritando uns obscenos 7 graus, a sala enche-se de professores procurando respostas, discutindo ideias, analisando textos, confrontando práticas. Não há tempo para se ser apenas singularmente humano, para olhar o Outono ou se aquecerem afectos e cumplicidades. Nunca há tempo. O tempo escasseia na vida das gentes, e a vida tece-se de obrigatoriedades às vezes muito vazias.
Olho quem me acompanha e penso, ou sinto?, que a vida tem de ganhar novos sentidos, que urgem pausas, que se impõem silêncios. Os sábados fazem falta na vida das gentes. Na minha, pelo menos. Apetecia-me caminhar na minha Serra, tomar café no Mercado, sorrir bons dias aos lagóias que, como eu, reconhecem o empedrado da Rua Direita. Queria esgotar a tarde frente à lareira, uma caneca cheia de chocolate fumegante (às urtigas as gorduras!), e partilhar um abraço intenso. Não gosto de trabalhar nos sábados!

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Outono(s)

Decididamente, adoro o inverno. Gosto da chuva, dos dias cinzentos, da humidade que escorre nas vidraças, do vento que uiva nas noites longas. Nesta época, a minha terra ganha novas cores e o meu coração aquece na antominia que me caracteriza. Hoje, bem cedo, encontrei a Serra vestida de vermelho e dourado. O ar cheira a fresco puro, a resina, a dióspiro também.
Um poste de electricidade está embrulhado em vinha virgem vermelho vivo. É um grito de paixão em direcção ao céu que me comove. Queria também chegar ao céu, seja lá isso o que for...
As cores de fora mexem com os meus sentires. A minha tristeza, a minha incompreensão do real vivido, é também intensa e vermelha. É o vermelho da paixão que me faz levantar a cada amanhecer e, apesar de todos os pesares, olhar o mundo e agir. É a paixão intensa que me faz acreditar que sim, que é possível ser feliz, que sim, que vale a pena seguir lutando, que sim, que no Outono da minha existência há essências a realizar.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Sapos

É verdade que a nossa língua tem sofrido muitas alterações. Umas parecem-me lógicas, outras abruptas e idiotas, outras decorrentes da modernidade mas, sempre que esbarro com elas, surpreendo-me com as mudanças. Hoje, tive uma experiência nova... Hoje, senti que não havia forma de expressar o que senti. Eu, eu que tanto gosto das palavras e dos livros, eu que acho que até domino um vocabulário alargado, fui confrontada com um facto que não soube definir. Não fui capaz, sequer, de verbalizar o que senti e, por causa disso, fiquei com uma impressão estranha, com uma espécie de sapo que não consigo engolir entalado nos sentires, preso nos pensares. Afinal, ainda há palavras por inventar e, creio eu, enquanto existirem homens surgirão situações indizíveis (neologismo também). Infelizmente, não há situações que não possam não acontecer por não terem como ser classificadas.
Hoje estou assim. De vocabulário insuficiente.

A Mesma canção

Diz o Rui Veloso, com o inconfundível sotaque nortenho que o caracteriza, que não se ama alguém que não ouve a mesma canção. Gosto de o ouvir e, muitas vezes, é ele quem me acompanha nas minhas peregrinações pelo meu Alentejo. De noite, a coberto do escuro, chego a atrever-me a cantar com ele... Hoje, estou de acordo com ele, profunda e completamente de acordo, e sinto que, de verdade e sem romantismos, não se pode amar alguém que não ouve a mesma canção. Que não tem os mesmos objectivos, a mesma forma de ver a vida, as mesmas preferências. Não se pode amar quem não se comove com o mesmo pôr de sol. Ou seja, um amor assim não pode ter sucesso! Porque, se calhar, o ser humano é um animal de hábitos e não muda; ou porque vivemos na era do umbiguismo e ninguém faz cedências; ou apenas porque para um amor se acertar é preciso que os dois dancem ao mesmo ritmo. Hoje, com muita chuva lá fora, embrulhada no silêncio escuro  que o vento interrompe, concluo que de nada vale empenhar anéis de rubis, saldar corações de ouro ou estilhaçar sentires dourados se a canção que se ouve só a um agrada.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Bruxas e Poções

As bruxas andaram ontem à solta, mas eu oiço-as hoje. Oiço-as rindo-se de mim, troçando da minha noite sozinha, gargalhando face aos meus sentires sempre exagerados. Sinto as bruxas maléficas apropriando-se das rédeas da minha vida e desejo o absurdo. Queria ter baba de caracol, pelos de pulga, patas de escaravelho, cuspo de mosca, visco de sapo, bigodes de gato preto, latidos de cães mansos e, num grande caldeirão, ser capaz de fabricar uma poção que me tornasse invulnerável à desilusão, impermeável à saudade, insensível à dor.

A Gaivota e o Poema

De um lado para o outro, ignorando a espuma das ondas desfeitas, pensava na existência. Estava sozinha, como quase sempre, mas aliviada por, finalmente, poder ter a praia só para si, sem intromissões humanas que sempre a irritavam. Gostava de caminhar assim, marcando a areia, saltitando quando encontrava uma concha no trajecto. Gostava, também, daquelas manhãs frias, silenciosas, quando abandonava o ninho escondido na rocha antes de todas as outras aves.
Caminhava até ao fundo da praia e voltava, na mesma direcção, tentando encontrar para a vida o alinhamento preciso daqueles passeios matinais. Era difícil...
Sentia-se diferente. Estupida e singularmente diferente no bando que integrava. Talvez, porque não?, fosse mesmo herdeira de Fernão Capelo Gaivota; ou talvez tivesse nascido de um ovo tresmalhado. A razão da diferença, desconhecia-a, mas a certeza dessa mesma diferença sentia-a viva. Sentia-a agora, quando desafiava a orla branca da espuma contente com o frio que libertava a sua praia. Sentia-a quando todas voavam no bando grosso e ela ficava observando, no ninho, os voos regulares. Gritavam-lhe a diferença as outras, avisando que nunca seria como elas, que nunca iria longe. Nem sabiam que não queria ir longe, que não queria ser igual às iguais.
Era uma gaivota apenas. E ainda assim conhecia o prazer de ser levada pelo vento, o mistério das noites estreladas, a força daquele mar cheiroso que lhe entontecia os sentidos. Um dia, sabia-o bem, iria desaparecer, aí como todas, na igualdade imposta. Até lá, tinha esse sonho, havia de escrever um Poema Real naquela areia da sua realização. E caminhava, sempre, na berma daquela ondulação.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Dia de Todos os Santos

Apesar da chuva (como gosto dela!), as crianças sairam à rua para cumprir a tradição. Não pedem, aqui, pão por Deus, mas dizem dê-me os santinhos e levam no saco rebuçados, nozes e algumas (poucas) moedas. Lembro outros dias de santinhos. Então a casa enchia-se de cheiro a broas, com mel e noz, bem feiosas mas muito saborosas, e os sacos para pedir eram de pano. Normalmente, eram sacos surripiados à minha mãe e eu era arrastada pela minha irmã Nô que adorava todas estas coisas. Lembro-me de detestar andar a pedir. Tinha vergonha, nunca era capaz de bater às portas, detestava que me dessem coisas que para nada me serviam. A minha irmã gostava de tudo o que fosse fazer coisas, como ela dizia, e rebocava-me contra a minha vontade. Mais tarde, eram as minhas filhas que queriam ir pedir os santinhos e, como moravamos longe da cidade, as vítimas eram sempre as mesmas: - o Dr. Falcão e a Srª. Dona Zélia. A Filipa adorava vir de lá com um postal pintado, com um conto bem contado, ou com um poema recitado pelo velho amigo. A Joana preferia as bolachas e os chocolates que nunca comia...Um dia, trouxeram um Pinóquio articulado, uma das muitas maravilhas que a casa daqueles vizinhos especiais tinha para elas, e o Pinóquio manteve-se, bem preservado, no quarto delas durante anos.
Agora, hoje, vejo outras crianças nas ruas e lamento que não venham bater-me à porta. Queria, também poder dar-lhes um poema, poder contar-lhes da ternura que faz (ou não?) a vida das gentes.

Cordão umbilical

Quando nascem, indefesos e frágeis, tiram-nos o sono com gemidos fora de horas. São as cólicas, as noites que se perdem embalando-os, afastando os medos e os temores. Depressa demais, crescem. Ganham autonomia, fazem escolhas e nós ficamos vigilantes, agora nós os indefesos, incapazes de fazer a transferência da nossa experiência, sem poder para travar e impedir os trambolhões da existência. No entanto, seja em que idade for, o cordão umbilical continua ligado, de pouco serve a tesourada que lhe dão à nascença, o cordão permanece ali, unindo-nos para sempre aos nossos filhos. As dores deles doem na nossa pele, doem fisicamente até, dilaceram por dentro. Não se deixa nunca de ser Mãe, e Pai, e parece que quanto mais crescidos são os filhos mais intensas as nossas dores. Às vezes, acho que me apetecia ter o dom de fazer as minhas filhas voltarem a ser bebés, poder pegar-lhes ao colo e fechá-las no meu casulo protector. O cordão umbilical invisível é forte, eterno, e continua deixando passar todos os alimentos. Só que, agora, são os alimentos da alma que passam e vêm dos filhos para os pais e vice-versa.