sábado, 31 de dezembro de 2011

Cristo

Olha-me da parede. Tem o pé direito sobre o esquerdo, cai-lhe o rosto para a direita também e não tem braços. Gosto dele assim. Gosto deste Cristo de olhar expressivo e gosto, imagine-se, de O ver sem braços. Imagino que esgotou os braços no abraço eterno, na entrega à humanidade, no apoio que, em qualquer Tempo, nos traz. Na parede, olhando-me, conversa silenciosamente comigo e garante-me que vale a pena acreditar, Amar sempre, crer num hoje prenúncio de um amanhã melhor.
Não sei por onde terá andado este Cristo. Terá acompanhado outros dormires? Sei-O agora, num egoismo assumido, exclusivamente atento a mim e isso conforta-me.
Enquanto o mundo alucinado corre a preparar a Noite de Réveillon, o Cristo apaziguador olha-me com, quero crer, muita ternura. Que no Novo Ano Ele acompanhe sempre este mundo louco!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano Velho

Esgotado, oco, cheio de destroços e desilusões, o 2011 chegou ao fim. Está até baralhado, enlouquecido, cheio de um frio seco que gela os ossos e engelha a pele. Esgotou 365 dias de factos negros, de crise e desgostos, de guerra e de hipocrisias. Levou pessoas Grandes, e destaco a Maria José Nogueira Pinto, marcou a negro o tempo e, por isso, parte sem deixar pena. Vejo-o ir sem angústia, sem saudades, com alívio até. Desejo que não volte nunca mais e, num último esforço, tento encontrar instantâneos que justifiquem a sua passagem. É difícil. Apenas a Amizade verdadeira, a ternura do meu neto, as conversas com as minhas filhas e algumas horas com os meus alunos me fazem lembrar este 2011. Que vá de vez. E que não deixe sementes para que os tempos se repitam...

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Desafios

O escorrega alto é uma tentação. Dou a mão, seguro-o bem e, depois, vejo-o deslizar gargalhando. Outra vez! E aí vem a subida, os degraus íngremes, a descida veloz. Outra vez! E eu cedo todas as vezes, desejando que o relógio páre, que o mundo estanque, que a vida nos dê folga. São os pequenos momentos que dão sentido à existência. "O Melhor do mundo são as crianças!" pela ingenuidade, pela pureza, pela ternura, pelo dom de acreditar e, também, pelo olhar doce com que nos amolecem o coração, com que destroem muralhas e movem montanhas de ansiedades aflitas. Ouvindo o riso do Manuel Bernardo, não escuto os anúncios terríveis dos Media, não entendo (nem quero entender) a fúria do mundo das finanças que sufoca o mundo dos homens. Gosto destes dias frios, das caminhadas ao ritmo do passo curto do meu neto que me dá a mão e, com atenção, escuta a verdade da magia que habita no mundo de faz de conta. Que sorte tem o Manuel Bernardo por poder ainda confiar na magia, na mão que o segura, no abraço que o aquece. Como eu já tenho saudades dele...

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Fitas e Papel de Embrulho

Logo cedo os baldes de lixo abarrotam. Há papel colorido, restos de pais natais rasgados por mãos apressadas, fitas de mil cores, laços desfeitos. Foi Natal!
Em casa, a mesa ainda tem o prato com as azevias que sobraram, o peru está coberto de papel de estanho e o pirex com o bacalhau ainda não foi lavado. Os brinquedos das crianças desarrumam a sala, o triciclo de cores fortes está estacionado mesmo no meio do corredor, e a vontade de fazer durar o Tempo Bom faz-se sentir. Foi Natal! Foi...Mas, acho eu, deseja-se ainda prolongar estes dias de paz, de família, de ilusão de não crise, de fuga ao real.
Em breve, porque Chronos é cruel, vai ser preciso encarar de novo as dificuldades do quotidiano, tentar escapar à crise, enfrentar os injustos e violentos aumentos. Então, as fitas serão outras: - Menos coloridas, sem laços, sem vestígios de festa ou de alegria...

sábado, 24 de dezembro de 2011

Feliz Natal!

Tentam esquecer-se as desavenças, ignorar as dificuldades, iludir a crise e, com olhar brilhante, desejam-se Boas Festas! Boas Festas e Feliz Natal!
Boas Festas literalmente. Festa porque Cristo está aí, para os que acreditam e para os outros também, Festa porque se reunem familias, Festa porque há doces na mesa, Festa porque as crianças estão eléctricas, Festa porque, apesar de tudo, estamos vivos!
Boas Festas, mesmo!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O Meu Conto de Natal

Da porta via a linha do horizonte. Em criança acreditava que ali era o fim da terra e que, se continuasse em frente, entraria de mergulho num mar azul, brilhante de reflexo de estrelas, cheio de sereias de cabelos longos e barcos de velas brancas. Acreditava, também, que no fim do arco-íris havia um pote de ouro, que a fada dos dentes entrava de noite para lhe deixar um presente no lugar do dente caído, que as formigas e as cigarras eram inimigas mortais e que o seu cão compreendia os desgostos que lhe confidenciava. No Natal, há muitos anos, via no céu os riscos que deixava o carro do Pai Natal quando, nos preparativos, voava ligeiro fiscalizando o comportamento dos meninos pequenos. Para ela, o velhinho de barbas brancas era um criado do Menino Jesus. Então os criados ainda não tinham sido promovidos a empregados e, numa relação de boa vontade, uniam-se para acabar os presentes a tempo e horas.  Agora via a linha do horizonte com a certeza de que, para lá do fim, só havia mais mundo, mais terra e mar, mais dor e desalento. Dali, da soleira da porta onde gelavam as malvas vermelhas, olhava a chegada de mais um Natal. De mansinho, afagando a cabeça enorme do cão, via chegarem ternuras e afectos que perdera. Ou não. Porque acreditava que não se perdem afectos, que não se esquecem ternuras, que tudo fica guardado no coração, na pele, na enorme caixa branca (porque a negra vive em maquinismos) onde se conservam as memórias.
Lá longe, marcando a neve do caminho com patorras de elefante, vinha mais um Natal. Diferente. Porque cada dia é diferente, novo, a estrear, oferecendo, como cantava Caeiro, o direito ao espanto! Sim, espantava-se ainda. Com a força limpa do frio, com a brancura a neve, com o crescimento perfumado dos bolos no forno, com as velas vermelhas a diminuirem a cada anoitecer, com o presépio de figuras toscas a encher-lhe a sala. Sim, espantava-se com a eterna dificuldade em cortar o perú assado em fatias transparentes, com as nódoas terríveis de azeite que sempre caíam no avental quando fritava azevias. Mas já não se espantava com a tristeza crescente, com a solidão rotineira, com a desesperança colectiva.
Era Natal! O frio lembrava-lhe a idade que fazia ranger os joelhos e, em silêncio, desejou um milagre. Porque, sobretudo no Natal, os impossíveis acontecem. Entrou em casa, faltava encher com o recheio de miúdos o papo do perú que há duas noites dormia no alguidar de barro em água e limão, e deixou o cão entrar também, colando-se-lhe às pernas, molhando-a com o focinho húmido. Abriu a janela da cozinha,  a linha do horizonte lá estava, recta, imóvel. Ah, e se acontecesse um milagre?
Com a casa quente, a lareira forte, os cheiros de fritos enchendo o ambiente, sentou-se lendo um livro. Sophia. A mulher e o mar, a solidão e a desesperança, a força também.
Uma buzina estridente acordou-a. Sim, no Natal os milagres acontecem!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Tenho culpa!

O primeiro ministro sugeriu aos funcionários públicos, em especial aos professores, a emigração. Como muita gente, eu nem queria acreditar no que ouvi, como a maioria dos portugueses eu quis crer que fora apenas uma frase infeliz... Mas, infelizmente, ele veio reiterar o que tinha dito.
Pior do que dizer aos portugueses que emigrem, é pensar que é melhor para nós abandonarmos o nosso país! Há já milhares de jovens licenciados a sair de Portugal, há técnicos diferenciados a estabelecerem-se noutros lugares, há empresas a levarem os investimentos para longe. Será que o primeiro ministro português pensa que um país pode crescer sem os seus quadros, sem os seus jovens, sem a massa encefálica que proporciona progresso?! Será que o primeiro ministro quer que, em Portugal, fiquem só os imigrantes de leste, as pessoas sem formação, os idosos e os dependentes do rendimento mínimo?!
A minha desilusão face ao desempenho deste governo não tem tamanho. Sinto-me mais traída do que nunca porque, desta vez, eu tenho culpa. Eu votei neste governo!  Estava habituada ao comodismo (que me dava alguma tranquilidade) de poder dizer "eu já sabia. Não votei neles!". Agora, nem esse consolo tenho! Eu votei no CDS e, o que ainda mais me aflige, se o tempo voltasse atrás eu votaria de novo porque, para maior desgraça, não vejo alternativa. Não acredito em socialismos sem ideias nem ideais, nunca confiarei em políticas de uma esquerda que aniquila a individualidade.
Sinto-me burra, enganada, defraudada e roubada pelo meu governo. Agora, sinceramente, o que me apetecia era seguir o conselho de Passos Coelho e emigrar de verdade. Emigrar para um país onde houvesse vida para além da crise, onde fosse possível acreditar no amanhã, onde sonhar ainda não fosse loucura, onde o Natal ainda não tivesse entristecido.
Eu tenho culpa e, como em quase todas as situações, de nada serve pedir desculpa!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Dia de Casados

Fariam hoje 59 anos de casados, os meus pais. Casaram em Fátima, aproveitando as pequenas férias de Natal da minha mãe, sempre os professores enfrentaram dificuldades..., e viveram 53 anos unidos (mais 7 de namoro, diziam sempre). Cresci a ver a união entre os meus pais, a vê-los numa efectiva cumplicidade eivada de muito carinho, embrulhada num imenso amor. Lembro-me de ir a Fátima nos vários 21 de Dezembro, ora em idas e vindas rápidas, ora em viagens com bons almoços e dormida. Nesses dias, sempre ouvia a mesma história do casamento, do nevoeiro que obrigara o meu avô a abrir a porta para indicar ao motorista onde estava a berma, dos atrasos, do vestido feito em casa com rendas compradas em Badajoz e trazidas de contrabando com o conhecimento protector do capitão que chefiava a fronteira do Caia.
Aos poucos, estas histórias tornaram-se parte de mim e, hoje, quando a realidade é outra, a saudade muita e o vazio imenso, lembro-as com muita ternura.
Não sei se o amor mudou, se o mundo descarrilou, se apenas as pessoas se transformaram em menos pessoas. Não sei. Sei que tenho muita admiração por um amor como o dos meus pais que não encontro com frequência na minha geração! Quase 60 anos a dois, enfrentando grandes batalhas e tendo sempre a certeza da compreensão e da atenção cúmplice do outro, impressiona-me.
Hoje, agora, com a noite estrelada e fria lá fora, no silêncio sozinho da minha saleta, lembro este amor e, ao abrigo dos meus sentires cheios de saudades, beijo com muita ternura os meus pais.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Incrível

Incrível o poder que o mundo tem, ou serão as pessoas?, para encherem de grandes insignificâncias os tempos de grandiosidades. É Natal! É tempo de paz, de sossego, de afectos  e ternura. É tempo de estar em casa, de olhar o fogo, de contar estórias às crianças e cozinhar partilhando opiniões e sugestões.
Contudo, ignorando os pressupostos, impõem-se a corrida às (poucas) compras, as idas aos supermercados de longas filas, a necessidade de trabalhar até ao cair da noite.
Incrível como conseguimos encher de vazio os tempos que deviam ser de sentidos de humanidade...

domingo, 18 de dezembro de 2011

Memórias

Ainda ontem o Dr. Castro dizia que não queria que o seu livro fosse chamado de memórias, ainda ontem ele lamentava a abundância de fragmentoss de vida, a impossibilidade de os calar, e já hoje eu concordo incondicionalmente com ele. É talvez a proximidade do Natal, o frio intenso, os dias limpos de céu azul, a excitação das crianças nas ruas, a compridura infindável das minhas noites solitárias que fazem saltar as memórias. E são tantas! Vejo a minha filha mais velha agarrada a mim com medo do Menino Jesus, a mais nova a espreitar os presentes, a Casa dos meus pais, sempre A CASA, cheia de cheiros, de lareiras acesas, de perús a chegar de laço vermelho de oferta. Sempre me fazia impressão a oferta dos bichos, muito luzidios e anafados, esperando a morte. Hoje, até desse então terror sinto falta! Oiço o meu Pai a orientar todos, a exigir de nós muitas coisas que nos faziam reclamar. Oiço-o a pedir a minha presença na cozinha, sinto a sua presença e a falta dele torna-se insuportavelmente dolorosa! O meu Pai enchia a Casa, unia-nos, fazia-nos acreditar que há sempre um novo possível.
Hoje, quando a noite cai na cidade branca, oiço-o a rir, abrindo o vinho tinto, pedindo uma tapa para entreter a espera do jantar. Hoje, agora, queria tê-lo comigo. Queria, egoisticamente, sentar-me a seu lado e encostar a tristeza, ancorar o sofrimento.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Um livro mais

Tarde fria, o gelo  da época, e o auditório do Museu das Tapeçarias cheio de calor humano para ouvir o Dr. Carlos Garcia de Castro. O pretexto, mais um livro. O primeiro - ele garante que o único - em prosa. Um livro para lagóias, começou por dizer o autor, com o humor que o caracteriza, com a simplicidade de sempre. Entre estórias de cá, desta cidade tão nossa, e algumas anedotas, foi desfiando memórias e fazendo literatura. O livro, "loja, contra-loja e armazém", é uma obra fotográfica, feita de flashes que a memória conserva, num estilo corrente, correcto, livre de falsos pretensiosismos, isenta de popularismos vulgares. O narrador trata-nos com respeito, com amizade mesmo, e não resistimos à gargalhada "Todos os dias, passar da noite ao dia não é monotonia, custoso é acordar com fantasias!", nem à ternura nem ao fascínio.
Em tempos de sentires exacerbados (porventura sempre assim sou...) gostei destas duas horas de olhares amigos e palavras com sentido. Vou devorar o meu novo livro!
"Na terra verde e branca de oliveiras
plátanos, cerejeiras, castanheiros,
quintais e poços de roldanas presas,
cruzam-se as casas de brasões antigos."

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O Zé Manel

Quando o conheci, era jogador de futebol e namorava a minha amiga. Casaram, vieram os filhos, guardo-os ainda crianças nas fotografias dos aniversários das minhas filhas, ensinei-lhes português, francês (existia há quinze anos) e tremi quando o Zé Manel filho entrou na Praça com a jaqueta de forcado. A Mena foi sempre minha colega, disponível, amiga, de gargalhada fácil, directa, capaz de lutar com garra por aquilo que queria. Há um ano veio a neta, a Maria, e as nossas conversas eram, agora, sempre feitas de meninos pequenos, de ternura e de saudade. Era assim.
Agora, a esta hora tardia, quando o silêncio envolve o meu mundo e a solidão me faz companhia, o Zé Manel agoniza numa cama da CUF Descobertas, em coma já, e a Mena está ao lado vendo-o partir. Falei com ela e disse-me apenas que a dor é tanta, que as lágrimas secaram.
O Zé Manel tem 58 anos. Podia ainda viver muito tempo, ver outros netos surgirem, mas foi atraiçoado por um cancro rápido e cruel. Penso na Mena, nos filhos, e sinto que a vida é, de verdade, curta demais... De que servem tantas discussões, tantos problemas, tantas angústias com o futuro se, de repente, o fim chega inexorável e cruel? De que serve adiar a ternura, afastar o afecto, se, num minuto, a vida nos diz que o tempo se esgotou?
Tenho a casa desarrumada com laços e papel de embrulho, tenho um pinheiro a tocar o tecto e um presépio com luzinhas intermitentes. Paradoxalmente, tenho o coração pesado de tristeza, de infelicidade e dor. Não me digam que é a vida. Não é a vida que me desespera, é o que fazemos dela!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Presentes

Sufoco, trabalho, stress, reuniões, ansiedades e compras de Natal por fazer! É o tempo das urgências. Devia ser tempo de estar em paz, de ornamentar a casa e ter todo o tempo para preparar a felicidade que esta época anuncia, mas não é assim. Este é o tempo louco! O tempo que se escoa por entre os dedos, que nos deixa estafados e a correr de loja em loja procurando aquele presente. Sei que o tempo é de crise, de crises várias, mas o Natal impõe presentes, as crianças esperam-nos e, felizmente, alguns adultos merecem-nos. Gosto de presentes! Chamem-me consumista, chamem-me materialista, quero lá saber. Sei é que o presente, mesmo que insignificante, mostra que alguém pensou no outro nem que fosse por uns minutos, nem que fosse apenas no entra e sai  da loja cheia. Além disso, o presente arranca sempre um sorriso, provoca um brilho no olhar e eu preciso do calor desses olhares ternos!
Ainda não comprei nenhum presente de Natal. Mas tenho pensado muito, e com especial carinho, no que vou conseguir comprar dentro das IMENSAS limitações que a crise me impõe...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Praia de Inverno

Chegar à ilha de Faro num dia de inverno, com a praia livre para os olhares e caminhadas, para tempos de reflexão e sonhos, é um sonho real. Agora, com o céu carregado de nuvens, a praia ganha sentido e verdade. Cheguei cedo, nos bancos de madeira só dois velhos de olhar perdido, e fiquei no quente do carro olhando as ondas. Havia carneirinhos, coroas brancas sobre o verde brilhante, e os cafés solitários cheiravam a sal e a bica queimada. Ganhei coragem e enfrentei o fresco enrolando-me bem no casaco. Procurei a mesa do canto, gosto da protecção da parede atrás das costas, e aventurei-me numa caipirinha gostosa. Soube-me tão bem! Aqueci a alma, apesar do gelo picado, e caminhei depois cá fora, na areia, sentindo os salpicos do sal na cara e no rosto. Gosto do mar assim, agreste, forte, viril até. Gosto cada vez mais do inverno!!

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cor de rosa

Eu sei que o tempo é de vermelhos, verdes e dourados, sei que é Natal. No entanto, numa rotineira ida ao cabeleireiro, as horas que uma pessoa perde (sem sucesso) a tentar enganar o tempo..., esbarrei com a cor de rosa. Literalmente, cor fora de moda! Folheei duas ou três revistas onde, genericamente, as notícias se repetiam no essencial: - Quem se divorciou de quem, quem casou com quem, quem teve filhos de quem, quem disse o quê de quem, quem pensou o quê de quem, quem emagreceu ou engordou, quem repetiu vestidos ou os estreou. Li tudo e agora, meia hora passada, não sou capaz de reproduzir uma única linha do que li. Das duas uma: - Ou os assuntos das revistas cor de rosa não têm nenhum interesse, ou eu estou a ficar com os neurónios perigosamente rosados...

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Paz


É uma palavra pequena, ainda que enorme, que faz cada vez mais falta. E não falo, apenas, na paz sem guerra, na paz que acontece quando as nações parecem entender-se e não há obuses nem explosões. Não. Penso na paz individual, no bem estar do eu-consigo, no bom que é pousar a cabeça na almofada e dormir sem temores, sem angústias, sem suspeitas. Ultimamente, nem quero tentar perceber desde quando, sinto que a intranquilidade, a ansiedade, o temor constante, marcam a vida das gentes e, na pele mesmo, sinto crescer o desejo de paz. Queria poder acreditar no hoje, para não temer o amanhã.
Agora, com o Natal à porta, este desejo exacerba-se. A solidão fica mais gelada, o coração amolece, o céu faz novos apelos e até as cores de Outono me provocam com mais intensidade.
Ah, como eu sinto necessidade de PAZ total!

domingo, 11 de dezembro de 2011

Carta ao Pai Natal

Querido Pai Natal,
Não me conheces, nunca te escrevi. Fui criança já há muitos anos mas, então, conhecia o Menino nas palhinhas e escrevia para Ele.Pedi-Lhe muitos brinquedos, lembro um chorão muito especial, corpo de espuma, careca, que me abraçava nas noites em que, na Serra, o vento uivava mais forte. Pedi-Lhe, também, muitos livros, colecções inteiras, e Ele ia satisfazendo os meus pedidos. Aos poucos, culpa da vida?, fui deixando de Lhe escrever. Na minha cidade os Correios nunca funcionaram bem, era até difícil comprar selos - imagina! -, e fui deixando de escrever. Conversava com Ele muitas vezes, sabes que o tenho na mesinha de cabeceira?, e reparei que ele não era mais o Menino que, um dia "fugiu do céu" a correr. Agora, sempre que preparo o Seu nascimento, vejo-me aflita para dar conta das recordações vermelhas dos tempos em que Lhe escrevia... Mas deixemos de lado as memórias. Que importam elas na blogosfera? Que interessa ao mundo a escrita do meu coração? Se o preâmbulo é longo, Pai Natal, é apenas para te pedir desculpa por só agora te escrever. Em primeiro lugar, há a vantagem de teres, com certeza, computador. No céu, duvido que exista. Mas tu és uma criação comercial, cheia de renas e modernidades, capaz de dançar com a Popota (diz-me que contrariado!) e, por isso, deves poder ler as cartas na blogosfera, evitando-me a árdua tarefa de, na minha cidadezinha, ter de ir aos correios procurar um selo. Pois é, escrevo-te apoiada na facilidade da internet para te dizer o que, entre os tais outros sentires que não interessam a ninguém, muito me incomoda. Detesto ver-te pendurado por uma corda das janelas! Imagino-te um assaltante e dou comigo, que horror!, a desejar que caias e partas a espinha. Depois, cheia de complexos de culpa, reformulo o meu desejo esperando, apenas, que sejas capturado e fiques em prisão preventiva,como é moda em Portugal. Bom, mas tirando estes pensamentos fora de época, tenho alguma ternura pela tua barriga redonda, pelas barbas imaculadas e, confesso, sinto muita inveja da tua viagem mágica, no céu estrelado, nesse trem puxado por renas velozes. É assente na ternura que ouso fazer-te pedidos. Talvez a minha idade já não me permita essas leviandades, mas ainda assim, atrevo-me. Quero pedir-te que, na noite de 24, quando voares sobre a minha Serra, deixes cair pozinhos de compreensão, pacotes de ternura e muitos chocolates vermelhos. Peço pouco, como vês. Tenho mais necessidades, muitas mais, mas, se não levares a mal, guardo-as para Ele. Pedir-Lhe-ei a Ele, em surdina, escrevendo apenas com letras sentidas no coração amolecido.
Obrigada Pai Natal e boa viagem!

sábado, 10 de dezembro de 2011

Solidariedade

As palavras têm sabor. Para mim, têm gosto e eu sinto-as a desfazerem-se, a aquecerem-me ou a gelarem, enquanto as enrolo na língua. A palavra solidariedade é doce, forrada de chocolate, coberta de vermelhos intensos e gostosa até ao fim. É uma doçura tão forte, tão intrinsecamente suave, que não instala celulite em lugar nenhum e faz exercitar, saudavelmente, o coração mais preguiçoso.
Nos tempos que vivemos, quando a solidão é cada vez mais constante, a hipocrisia reinante e a miséria crescente, a solidariedade faz ainda mais sentido. Não sei se é por ser Natal, ou se é apenas por ser tempo de ser bom, eu sinto uma ternura especial, agora, por esta palavra carregada de humanidade.
Esta palavra comprida faz-me, também, sentir insignificante. Minúscula mesmo. Que importam os meus pensares, os meus sentires, perante o sabor intenso da palavra comprida que amolece o meu coração?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Arte

Está num canto de uma das enormes salas do Museu Berardo. O cacto espinhudo podia viver num quintal qualquer, podia ter nascido no meio de uma horta mal cuidada, podia, até, estar esquecido na berma de uma auto-estrada, ou mesmo de uma Scut polémica. Espinhudo, espetado, incapaz de cativar muitas atenções seria, apenas, um cacto!
No entanto, este espinhudo vive num espaço nobre, foi reproduzido numa tela (não é um espelho) e consegue que muitas pessoas, ou algumas pessoas, parem por longos minutos a contemplá-lo. É Arte! E, por isso, e porque tem um autor e o nome impresso, o cacto ganha estatuto, gera opiniões, impõe fotos. É Arte! Continua espinhudo, mas inofensivo porque ninguém pode tocar-lhe. É Arte! Arte moderna, diferente, estranha para mim.
Muitas vezes lembro a Mafalda de Quino "Esta Arte moderna tem mais de moderna do que de Arte!", mas desta vez discordo. Este cacto de espinhos mansos é Arte mesmo:- é a representação do efeito social. Mostra, de forma curiosa e simples, como um estatuto, uma morada de luxo, uma posição de relevo, podem alterar a essência das coisas. Das pessoas também...

Popota e outros

Uma hipopotama com pretensões a sexy, marca o Natal comercial. As crianças seguem-na, ela saracoteia no hipermercado, e o Natal faz-se.
Lá longe, numa europa que dizem ser de 27, há dois países a reinar. Agitam-se pavores, adivinham-se misérias, temem-se conflitos mais graves ainda. Olho a televisão e não sei dizer qual a figura mais deprimente, se a hipopotama rosa, se o casal franco-alemão. Anuncia-se  greve na TAP, garantem-se  mais prejuízos, pagam-se Scuts obrigatórias, e há tiroteio nos Estados Unidos. Pelo meio, aparecem reportagens rápidas sobre as compras de Natal...
 É este mundo a alucinar, é a realidade gelada a tirar o sono e a pintar de negro um presente que devia, agora, ser vermelho e dourado.
Tenho medo, medo mesmo físico, que a Popota se torne a aberração menor neste tempo que, acho eu, devia ser de ternura, paz e muita compreensão...

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Café - bica

É tipicamente português o hábito da bica. E deve ser das poucas coisas boas que se mantêm neste país mal frequentado. É bom tomar uma bica forte, intensamente perfumada, capaz de aquecer as mãos e a alma. Tomar a bica faz-nos, ou faz-me a mim, recuperar (quase) a fé na humanidade!

Logo de manhã, melhor ainda quando o nevoeiro frio embacia a cidade, gosto de entar no café habitual, de pedir a minha bica e de a beber entre bons-dias conhecidos. Às vezes, a bica acontece longe. O cenário muda, o horizonte liquidifica-se, os olhares são estranhos. Sabe diferente, mas, ainda assim, é a bica imprescindível!
Se eu fosse poeta, se soubesse poetar, faria, com certeza, uma Ode à bica!

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Entrelinhas

Sou uma leitora compulsiva, assumo. Leio tudo, desde as bulas dos medicamentos aos romances repetidos, e, ainda assim, encontro prazer nas leituras, nos lugares revisitados, nas frases ritmadas (ou não), nas capas e cores que gosto de olhar. Quando as noites são demasiadamente longas, lá vou eu procurar um velho livro. Às vezes, escolho romances onde passeiam personagens já íntimas, outras vezes busco pensamentos que me ajudem a compreender (ou a aceitar) um pouco melhor o mundo que integro. Sempre me surpreendem os textos humanistas de facto, a escrita de Margeurite Yourcenar, os elogios à liberdade, como gosto de quimeras!, e o respeito pela individualidade. Nos dias de hoje, com o Natal à porta e a crise por todo o lado, sinto que faz ainda mais sentido pensar para além das frases feitas, das afirmações ocas, das parangonas sem rumo. Olho o mundo entre as linhas dos meus livros e aprendo que tem de ser possível construir-se uma sociedade mais razoável, mais verdadeira, mais solidária, mais justa também.  Sinto, hoje, excessivamente vivo o Calisto Elói de Camilo, tenho saudades intensas do Marcos de o Último Cais, encontro diariamente o Dâmaso Salcede de Os Maias, troco impressões com a Gulia da Sveva e, na minha escola, tento que, por favor, Não Matem a Cotovia...
Irritada mesmo, fico quando me dizem que esqueça os livros e as literaturas, que descomplique e assuma, simplesmente, o egoísmo em vez da ternura. É nestes momentos que agradeço ter as estantes atafulhadas de palavras com sentido eterno!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Natal?

Quando eu era miúda, bem sei que o tempo da infância tem outra dimensão, começava-se a preparar o Natal no dia 8 de Dezembro. Era dia de Nossa Senhora e sempre ouvi dizer que era "o Natal pequenino". Nesse dia, feriado, enchia-se a casa de cheiros novos, de pinheiro e musgo, fritavam-se as primeiras azevias e filhoses, e só se parava de falar no Natal e no ano novo depois do dia de Reis, a 8 de Janeiro.
Agora, já em Novembro surgiram as iluminações, os enfeites, as promessas de festa e as exigências de comprar. No entanto, sinto - talvez seja só impressão minha -, que o Natal está cada vez mais longe da vida das pessoas. Começa-se mais cedo o espectáculo das lojas, acendem-se velas e luzinhas, ornamentam-se as árvores e as casas, mas, parece-me, esquece-se a amizade, a presença, a ternura, a partilha, a compreensão. Estou um bocadinho, um bocadinho muito grande, farta desta mania de aparências e evidências sem profundidade nem essências.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Depósitos (des)humanos

A Confederação de Pais quer que as crianças fiquem ainda mais horas na escola. Falam da Escola a tempo inteiro com uma ligeireza que me apavora e revolta. Para crescerem de forma saudável, as crianças precisam de tempo com os pais, com as famílias, de horas em casa, num ambiente onde se revejam. A escola tem, obviamente, de tentar suprir a falta da família, de tentar minimizar os efeitos de ambientes familiares traumatizantes. No entanto, estas devem ser, creio, situações de excepção e não a norma. Propor que os professores fiquem na escola, até às sete da tarde ou mais(?!) a passar filmes para entreter os meninos, é assumir uma sociedade desumanizada, sem tempos de afectos nem espaços de ternura.
Penso que os pais deviam exigir e lutar por condições laborais que lhes permitam ser PAIS  e não, de forma alguma, procurar soluções que contribuam para a perda de oportunidades de ver crescer as crianças. Não há professor, por melhor que seja, que substitua a leitura de um conto ao adormecer, a conversa sobre a escola sentados à mesa, o ver cair os dentes, o limpar as lágrimas do primeiro desgosto de amor, etc...
Se a escola se tornar um depósito de crianças e jovens, em breve a sociedade será um espaço de silêncio e solidão! Sei bem que, hoje, a escola não pode limitar-se ao papel de transmissora de conhecimentos. No entanto, tenho a certeza que não pode substituir a família. Esta escola que a Confederação de Pais apregoa, não é escola. É, ou será, apenas um espaço para onde os pais poderão sacudir responsabilidades sem se aperceberem (?) do que estão a perder a cada minuto que não passam com os seus filhos.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Meia manta

Na febre de poupança e contenção desumanizadas que atacou o nosso governo, surge a notícia de encerramento de mais de 80 lares de terceira idade. São os mais indefesos, agora, as próximas vítimas. Num país envelhecido e carente como o nosso, num mundo onde parece não haver lugar para a ternura nem para a amizade verdadeira, quando sabemos que milhares de idosos morrem na solidão silenciosa, o governo anuncia o encerramento de lares. Talvez estes governantes pertençam já à geração que não leu, que não foi educada para pensar mas, apenas, para carregar delete... Talvez, por isso, se devesse sugerir aos nossos governantes que lessem a velha história do velho que, ao ser abandonado na montanha, sozinho, para aguardar a morte, rasgou a manta que o filho lhe dera ao meio e, dando-lhe metade, lhe sugeriu que a guardasse para quando chegasse a sua vez de ser levado para a montanha!

sábado, 3 de dezembro de 2011

E se de repente?...

Há uns anos havia um slogan publicitário que dizia assim: "E se de repente alguém lhe oferecer flores, isso é Impulse". Já nem sei dizer o que era Impulse, se um desdorizante, um perfume ou outra coisa qualquer, mas hoje o slogan ganhou vida na minha cabeça. E se, de repente, a História fosse mentira? E se, de repente, Shakespear não tivesse escrito nada e fosse mesmo analfabeto? E se, de repente, se provasse que D. Afonso Henriques não existiu, que Vasco da Gama era só um corsário, que o Infante D. Henrique tinha medo do mar, que D. Filipa de Lencastre era estéril, que Nuno Álvares Pereira era um mercenário?! E se, de repente, as verdades que sustentam as mentiras actuais, as verdades em que sempre acreditamos e que nos ajudam a ganhar forças no presente, fossem todas falsidades?! Ainda bem que não sou professora de História... é que, depois de ver o filme Anónimo, fiquei angustiada mesmo.
Eu defendo, sempre, que o importante é o presente, que o passado já não é e o futuro nunca será, mas, ainda assim, acho que vacilarei se me disserem que Luís de Camões não escreveu a mais bela poesia lírica de sempre!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Pior?! Mais?!

O primeiro ministro de Portugal anunciou novas medidas de austeridade para 2012. Anunciou-as com convicção, assumindo um fatalismo que me parece doentio e grave. Mais impostos, mais subidas de preços, menos serviço de saúde, menos educação, menos (abaixo de zero conta?) cultura, menos qualidade de vida. Porque, diz ele, só assim conseguiremos pagar a dívida e conter o defice. Oiço-o com angústia, medo e revolta.
Eu votei neste governo! Eu acreditei que esta gente jovem, com sonhos diferentes, com conhecimento real, seria capaz de colocar o meu país num novo rumo. Hoje, estou duplamente desiludida! Não só porque afinal não têm conhecimentos nem sonhos, mas também porque não ousam políticas diferentes! Afinal, estes são iguais aos outros, que eram como os anteriores, que copiavam os antecessores, que imitavam os últimos! Estes governantes de hoje fazem política de merceeiro: - livro de assentos, aumentar preços, sufocar a freguesia! Destes governantes ainda não me chegou NADA de tranquilizante, nada de bom... O ministro da educação, em quem depositei tanta esperanças, parece ter-se sumido entre legislações obsoletas e coisa nenhuma; o ministro dos negócios estrangeiros, deve estar em férias algures no estrangeiro; a super-ministra das pescas, da agricultura e de mais não sei o quê, deve estar a acertar a temperatura exacta do ar condicionado do seu ministério e, parece, o governo (des)funciona apenas com Passos Coelho, Vitor Gaspar e Miguel Relvas! Posto isto, e perante as ameaças dos últimos dias, apetece-me propor que fechem também a Assembleia da República, que vão todos trabalhar e assumam que apenas a Troika manda neste pobre Portugal!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Cavaleiros e cavalgaduras

Feriado. Um feriado que assinala, celebra?, um feito histórico que, hoje, me parece completamente desajustado. Em 1640 libertávamo-nos do jugo dos espanhóis, D. João IV subia ao trono e a Casa de Bragança escrevia história. Então, foram necessárias muitas conversas diplomáticas, muita coragem e muito orgulho em se ser Português. Hoje, nada me parece fazer sentido! Pertencemos, ainda que num estatuto desigual, a uma Europa em ruptura. Somos governados por gente estrangeira (e estranha), temos uma moeda que não é nossa, afirmamos uma cidadania europeia que nos fica excessivamente curta. Hoje, é a frustração que impera e, à boca pequena, vai-se dizendo que talvez tivesse sido melhor continuarmos sob o jugo dos vizinhos ibéricos...
O problema, creio, é que nunca conseguimos libertar-nos do jugo! Sempre baixamos o pescoço, deixamos colocar os arreios e não fomos capazes de, continuando com a imagem equestre, escoicear os diferentes cavaleiros que nos esporearam. Hoje, num feriado triste, quando a miséria cresce e o orgulho luso rasteja, confundem.se as cavalgaduras com os cavaleiros e nada há para celebrar.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Poesia

É o que fica depois de tudo, a Poesia. Não sei onde li esta frase, mas ecoa muitas vezes em mim. Porque a Poesia me faz falta, me conforta, me surge como boa companhia. Há poetas que são os da minha eleição e, sem dúvida, Fernando Tavares Rodrigues é um deles. Hoje, tenho pensado muito nele:

"Para te dizer tão-só que te queria
Como se o tempo fosse um sentimento
bastava o teu sorriso de um outro dia
nesse instante em que fomos um momento."
in, Carta de Amor

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os lindos braços da Júlia da Farmácia

O título era sugestivo. Imaginou um romance actual, feito de tentações e provocações, tecido de modernidades e ousadias. A capa, vermelha, ajudava a imaginação a voar. Levou-o na viagem e começou a leitura. Escrita escorreita, correcta, solta, marcadamente viril, e a realidade de muitas vivências a ganhar cor e sentido.
Pequenas narrativas, contos que a deixavam suspensa até ao fim e, no ponto final defintivo, lhe permitiam ficar sonhando. Curiosamente, nenhuma personagem se chamava Júlia e não havia nenhuma farmácia em qualquer dos enredos. Faltava apenas um conto e guardou-o para um momento especial, para um tempo de qualidade, enroscada junto à lareira talvez. Reunidas  as condições, noite já, com uma caneca de chá bem forte ao lado, foi buscar o livro. Onde estava? Onde o tinha abandonado? Deu voltas e voltas, voltou até a abrir a mala da última viagem, mas do livro nem rasto. Provavelmente, teria deixado os lindos braços da Júlia da farmácia na casa de banho do aeroporto... Agora, nunca saberia porque eram lindos os braços daquela Júlia!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Afogamento

Compreendo hoje, muito clara e eficazmente, o sentido da expressão "afogada em trabalho". É assim que estou. Entre dossiers, trabalhos para analisar, aulas para preparar, textos para escrever, telefones para atender e batidas de coração para acalmar, não consigo respirar e sinto que posso mesmo sucumbir a qualquer minuto. No meio deste mar de tarefas, salta mais uma grelha excel no meu email. Mais uma para preencher, e sinto que é o último gole que consigo engolir antes do fim!
Para quê tantos inquéritos, tantos estudos, tantas fichas e grelhas, com quadradinhos e risquinhos, percentagens e médias?! Sinto que de nada servem! Afirmando procurar promover o sucesso (?), criam-se equipas que, por sua vez, criam grelhas e, no fim, quem sai literalmente grelhado é o mundo, as pessoas, seres que, outrora pensantes, se estão a transformar em executantes acéfalos!
Agora, neste preciso momento, olhando para mais esta grelha, irritantemente quadriculada e colorida de verde vómito, tenho vontade de ser um carapau de escabeche! Assim, ao menos, em vez de me comerem por parva, comer-me-iam pelo sabor e eu teria morrido por uma causa inteligente!

Botas Hunter

Calça as botas hunter, abotoa o casaco e está pronto para a aventura de descobrir o Zoo. O ar é sério, afinal, não é todos os dias que se vêem leões, tigres e macacos, e o pequeno gentleman não tem muita paciência para disparos de máquinas babadas... Dá-me a mão e mostra-me o tigre enorme, o leão gordo, a leoa que se aproxima. Depois, leva-me aos mochos e lembra-se da música que tantas vezes ouve - twinkle twinkle litle star. Seguem-se os macacos, as galinhas, os papa-formigas e, finalmente, as cobras. Pede colo. Olha com desprezo os répteis imóveis e sai aliviado. Eu também, confesso...
É bom ver o Manel Bernardo descobrir a natureza, aprender a vida animal, crescer desfrutando das coisas importantes do mundo que integra. É bom, faz-me bem, vê-lo calçar as botas de borracha, tão inglesas, e fazer-se aos caminhos cobertos de folhas com desenvoltura. O Manel Bernardo está a criar raízes numa terra diferente, a aprender a ternura numa língua distante, está a aprender a ser homem com o privilégio de poder contar com tempos de qualidade! Vejo-o, sinto a falta da sua presença, dói-me o abraço vazio, mas sinto o coração tranquilo por o saber a encarar, diariamente, novas experiências de crescer! Para o Manel Bernardo queria que o mundo se endireitasse. Que para sempre pudesse ter a proteção de botas hunter nas caminhadas da vida...

domingo, 27 de novembro de 2011

Pontuação


Muitas vezes, quero crer que algumas com êxito, ensino aos meus alunos a importância dos sinais de pontuação. Ajudo-os a descobrir como são secretas as reticências, como nos ajudam a parar para pensar os pontos finais, como respiramos melhor com as vírgulas certas, como o espanto cresce com a exclamação, e como a nossa dúvida ganha novo sentido com a interrogação. Hoje, sentada no avião três longas horas, a rebentar de saudades já, reparei que também os parêntesis, ou sobretudo os parêntesis, fazem sentido na vida das gentes. Sinto, eu, que abri um parêntesis na minha rotina e, nesse espaço, pude saborear ternura, envolver-me em afecto, praticar a tal cumplicidade de que tanta falta sinto! Neste parêntesis, fui pessoa inteira, redescobri a gargalhada descontraída e voltei a sentir a força do cheiro do café gostoso. Neste espaço da narrativa que é a minha existência, existiu como que uma ponte, bela e firme, deixando correr as angústias e unindo, como segurança, as duas margens do mim, o ser e o existir.
Agora, infelizmente, tive de colocar um ponto final. Vale-me a certeza (ou a esperança?) de não ter sido um parágrafo!

sábado, 26 de novembro de 2011

Cambridge Ainda!

Por pontes, caminhos seculares, arvoredos vermelhos e castanhos, caminha em Cambridge. À novidade das primeiras vezes sucedem-se, agora, novos olhares e muitas memórias. Sente o frio gelado, abotoa bem o casaco e ri-se do nariz vermelho do bebé que gargalha abraçando-a com força. É o tempo com sentido. É a vida que deseja, feita de presenças, de cumplicidades, de ternuras. Aqui, agora, a sua vida decorre sem imposições para além da ternura. É o espaço da sua essência. Que pena existir a palavra fim. Que pena o avião ter lugar marcado para o regresso.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

PARABÉNS

Faz dois anos o Manuel Bernardo. É um miúdo de caracóis loiros, sorridente, bem disposto, falando uma mistura curiosa de português e inglês. O Manel Bernardo escolhe as palavras de acordo com o grau de dificuldade e, assim, fala na sua língua intensamente carregada de expressividade. O Manel Bernardo sabe que o Peter Pan voa com a Fada Sininho, conhece os animais da Disney e canta as músicas dos youtubes infantis, intercalando com as músicas portuguesas de outras infâncias. O Manel Bernardo faz hoje 2 anos. Quando nasceu, minúsculo, olhava-nos com vontade de agarrar o mundo e, passados dois anos, já agarrou a vida. Olha-me com alegria, recebe-me com ternura e presta muita atenção às histórias que invento para ele. No meu colo, bem aninhado e atento, ouve-me falar-lhe de coisas do país distante que já não é o dele. Resumo tudo à Serra... falo-lhe de histórias de afectos que quero crer herdará, falo-lhe da magia das noites de Verão, da sonoridade das noites de Inverno, das cores cheirosas dos Outonos de sempre. Se eu pudesse, no segundo aniversário do meu neto, oferecer-lhe-ia a chave para a ternura e o acesso directo ao Amor. Vejo-o tão indefeso e temo por ele. Queria, ah como queria..., um mundo bem diferente para todos os Manel Bernardo  do mundo... E falo-lhe, por isso, da necessidade de amar, de crer, de olhar as estrelas, de reparar na cor das árvores, de aprender o cheiro das flores.
Hoje, o meu Manel Bernardo fez dois anos. É um projecto de homem e eu queria ser capaz de o ajudar a construir alicerces seguros para a sua construção humana!
Parabéns Manuel Bernardo!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

De longe

De cima, a uma altitude considerável, comecei a reencontrar a Inglaterra que adoro. Um país atapetado de verdes e castanhos, regular, nesta época pincelado de vermelhos e dourados brilhantes. A receber-me, o frio gelado, puro, real. Marquei a chegada com o café no Costa e cheguei a Cambridge tranquila, em paz com a existência. Aqui, consigo ignorar as angústias, as desilusões, os temores intensos. Pego no meu neto, dou pão aos patos, passeio no Mercadinho e deixo-me envolver pela magia das luzes de Natal que já enchem a cidade. Aqui, a ternura verdadeira do Manuel Bernardo, as gargalhadas infantis, os abraços quentes, fazem-me acreditar que viver não é, não pode ser!, cumprir rotinas e imposições. Aqui, tenho tempo para conversar comigo, para desfiar momentos de mim-comigo, de reinventar sentidos que, por vezes, me parecem inexistentes.
É bom estar em Inglaterra!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

De partida

Mala pronta e um desejo intenso de partir. Partir ao encontro da ternura, da paz, da vida onde os sorrisos acontecem sem cargas negativas, sem culpas nem acusações. Cansada de existir, esgotada da busca de sentidos de ser, parte. Destino? O infinito. A distância, o espaço diferente, sem ordens impostas, sem representações socialmente aguardadas. Parte sem saudade, com os sentires amarfanhados no fundo da mala esmurrada, esfolada, prova de tantas partidas da vida. De tantos regressos, infelizmente, também...
Partir. E lembra os portugueses de outrora, as lágrimas salgadas que deram sabor ao mar. Também conhece o sabor desse sal. Mas agora come um chocolate - come chocolates, pequena! - e delicia-se com o sabor das emoções.
Vai partir!

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A Vigarice

Parece generalizada a ideia de que viagrizar o próximo, burlar, mentir para tirar benefícios próprios, é prática corrente. Pior, para mim, é que há quem  ache que mais grave do que roubar é, imagine-se..., deixar-se apanhar!! Um dos meus alunos, já adulto e com direito a voto, ao comentarmos o caso Duarte Lima, afirmou: "Pior que ter burlado, é ser burro! Então um homem com aquela massa toda fica em Portugal à espera de ser preso?! Se fosse eu, era já um marajá num oásis distante!" - Obviamente, são afirmações impensadas, para fazer conversa apenas. Mas as palavras deste jovem ficaram a ecoar dentro de mim: - "Se fosse eu..."
Como é possível que haja tanta mentira e vigarice na alta esfera, eu até compreendo. Basta olhar a forma como sempre (ou quase) governantes e dirigentes enriquecem. O que eu não compreendo, ou o que me incomoda, é o facto destes comportamentos estarem a ser aceites com um simples encolher de ombros pela sociedade.
Não sei se Duarte Lima matou, ou não. Mas gostava de perceber como foi possível enriquecer tão rapida e eficazmente aos olhos de todos... Infelizmente, não foi o único. Tenho medo de ver surgir uma caça às bruxas, de ver perseguir todos os dirigentes, mas, simultaneamente, não percebo porque continua a ser possível saltar de governos para empresas, usufruir de chorudos ordenados trabalhando pouco ou, o que é para mim ainda mais surpeendente, como é possível haver pessoas que sabem de tudo, e que tão depressa são ministros como administradores de empresas...
Neste momento, com a crise instalada e para ficar, com a Troika a sufocar tudo e todos, com os tecnocratas aos comandos, apavora-me o facto de existir. Tenho medo de muita coisa. Sinto-me ameaçada e, sem dúvida, tenho medo que a vigarice vença sempre...

domingo, 20 de novembro de 2011

Democracia Assim?

Em Itália, afastaram-se os pólíticos e nomearam-se os tecnocratas. Parece, dizem, que vai dar certo, que vão ser tomadas medidas eficazes e resolverem-se os problemas graves que o país enfrenta.
Eu não percebo nada de política, mas confesso que me faz muita confusão esta decisão. Parece-me ser um atropelamento escandaloso da democracia, um pôr em causa direitos que, julgava eu, eram basilares do sistema democrático! Como se pode, simplesmente, afastar políticos, não fazer eleições, nomear tecnocratas e seguir em frente?! Tenho lido, com um misto de curiosidade e incredulidade, o que dizem os sabedores (sábios já não há) sobre isto, mas, talvez por burrice minha, continuo muito baralhada. Sei que há maus políticos, que nem todos (embora possa parecer) estão em Portugal, mas, ainda assim, penso que é perigoso enveredar por uma guerra cega contra todos, eliminando-os, condenando-os, fazendo com que pareçam dispensáveis.
Não compreendo um sistema democrático sem Partidos políticos, sem representantes desses Partidos, sem pluralidade de ideias e vontades. Olho com muita angústia o que está a acontecer em Itália. Penso, o eterno vício luso, no meu pobre país, e concluo que, ainda que ache que a maioria dos políticos portugeses deixa muito a desejar, prefiro estes a nenhuns!

sábado, 19 de novembro de 2011

Fim

O céu escuro, almofada negra, faz-lhe companhia. A estrada, por sua conta, brilha lavada e, hesitantes, esvoaçam pardais. Nas bermas há automóveis parados, é tempo de caça, e ela circula na companhia da sua música. Tem tempo, dormir é algo que faz pouco, saíu cedo, pode conceder-se o luxo de aproveitar os quilómetros para esticar o tempo. É a última jornada de trabalho para aquele lugar distante, mais de 140 kms, e leva consigo, consciente mas involuntariamente, a nostalgia do fim.
Há dois meses que iniciou o trabalho, sessões de três horas, muita discussão, muitos desafios, projectos de mudança ousada. Agora, sente que lançou sementes, que algumas ideias germinarão, mas já tem saudades das aprendizagens partilhadas, das gargalhadas, de algumas angústias também. É o fim da sua tarefa, ali. E há sempre um fim. Um fim que a atormenta, ainda que não surpreenda, que a emociona sem remédio. Na calma da viagem, decide-se contar os fins que viveu já. Tantos! Os dedos não chegam. Houve fins de alívio, fins de desespero, fins de imposição, ... Ainda assim, sempre os fins de desilusão doem mais.
Hoje, Obrigada Deus!, o fim não era de doer.
Amanhã?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Absurdo

Frio, chuvinha de chegar aos ossos, e solidão. Saíu de casa cedo, abotoou o casaco forte e foi andar. Tinha tempo. Tinha, escandalosa e desnecessariamente, todo o tempo do mundo. Findas as urgências, todas tão relativas, tinha agora os minutos a tecerem horas lentas e compridas. Felizmente, estava frio! Ignorou o trânsito e rumou a Cascais. Tinha um desejo absurdo de frio. De algo forte, capaz de a envolver, de a fazer crer que há um sentido. Algures.
Parou o carro e caminhou apressada, a urgência de não chegar a lugar nenhum, pisando com força o chão branco e preto de que tanto gostava. Das pastelarias, vazias, das lojas com promoções, vazias também, vinha um calor falso, produzido e não humano. Abandonou a rua principal, escolheu os becos e encontrou-se nos bancos de pedra, grafitados com palavras agudas e frustrações sexuais, virados para o mar. Sentou-se, sentindo o frio húmido, tremendo, e com vontade de se imortalizar ali. À sua frente, os espinhos de enormes cactos ocultando o rebentar das ondas. Os espinhos a permitirem vislumbrar o Belo, a impedirem o desfrutar completo. O Absurdo. Real, concreto, salgado como a água que sentia nos lábios. O Absurdo dizia presente. Desafiou-o. Aqueles cactos, ainda que enormes e cinzentos, ameaçadores nos milhentos picos, não lhe roubariam o gozo do mar da baía de Cascais. Abandonou o banco, sentou-se no muro, ficou vendo velejadores ousados, ondas enérgicas, gaivotas planando. Tinha tempo. Sim, por absurdo que isso fosse, tinha tempo que não precisava encher de coisa nenhuma. Agora, tinha já todo o tempo do mundo.

Pintura

Olhei Monet. Ouvi os meus alunos dissecarem Guernica, recordei passeios em Praga e Madrid, relembrei o impacto da Ronda Noturna, em Amesterdão, e reparei nas cores deste Alentejo agora fresco. As cores, as representações, o todo e a parte, o mundo significativo da Arte - a transfiguração do real - ficaram ecoando dentro de mim. Quem me dera ter uma palete de cores vidas. Como eu gostava de poder pintar de cores com sentido a existência. Toda. Egoisticamente, a minha em primeiro lugar! Eliminaria os cinzentos, não me venham com a importância dos contrastes!, daria espaço ao verde esperança, ao vermelho paixão, ao azul infinito, ao amarelo Portalegre. Bem largas, deixaria barras laranjas, perfumadas, sugerindo passagens e mudanças.
Ah! se eu tivesse uma caixa de aguarelas mágicas...

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Estórias

"Pela estrada fora, eu vou bem sozinha, levar estes doces à minha avozinha"... era assim a cantiga da Menina do Capuchinho Vermelho da minha infância. Era uma estória educativa (mais ou menos) mas, para mim, era fascinante o facto da menina ser capaz de, sozinha, sabendo que o lobo mau rondava ali bem perto, enfrentar a travessia da floresta. Na época, acho que não me incomodava muito a solidão da avozinha, talvez por ainda a velhice me parecer tão distante quanto a lua. Hoje, já não conto esta história. E não conto outras, como a Gata Borralheira ou os Três Porquinhos, ou mesmo a Bela Adormecida. Hoje, acho que muitas dessas velhas narrativas carregam terrores e ameaças sinistras. Acho incrível terem mandado a miúda sozinha pela floresta, como acho indecente que a menina não tivesse outro nome que a cor do casaco que vestia!
Das estórias infantis, para o meu neto, só guardo o Peter Pan e a Sininho, a Pancada Nela ou as outras que eu mesma invento. Nas minhas estórias de contar, há sempre vida, ternura, gargalhadas, carinho e muitos pozinhos de perlimpimpim. Às vezes, apetece-me muito ser uma das personagens das histórias da minha infância.

Diálogo

- Dás-me?
- O quê?
- O que preciso.
- Não entendo.
- Pois. Faz um esforço. Preciso do que não tenho.
- Hummm.... Paciência? Sono? Mimo? Carinho? Dinheiro? Saúde?
- Não. Nada disso. Preciso de mais. De diferente. Preciso de um cravo que cheire a rosa, de um livro com letras móveis, de um olhar sem destino, de um sim porque é claro, de um não porque não me apetece, de uma gargalhada sem rede nem teia. Preciso de palavras puras, a estrear, ainda livres de conotações abusivas. Preciso de homens pessoas, de mulheres com rugas, de crianças com joelhos esfolados, de velhos que não são idosos, de bebidas fortes, de cansaço não patológico, de carne vermelha, de peixe não congelado. Preciso, até, de cebolas com saias que provocam lágrimas. Preciso de noites com estrelas, de água da torneira, de uma manta de lã que substitua o meu edredon sintético.
- Ah! Afinal, tu pedes-me a vida autêntica!
- Isso.
- Impossível. Não existe mais. Posso dar-te uma vista virtual da Casa Branca, oferecer-te a simulação de um mergulho nas cataratas do Niagara, levar-te no google earth a visitar Moscovo, oferecer-te uma viagem à lua, mostrar-te as cuecas do Brad Pitt, dizer-te quanto custam as camisas de Cristiano Ronaldo, mas a vida, a autêntica, extinguiu-se.
- E tu, então, quem és?
- O sonho desiludido que te surge apenas quando a tua insónia negra  o protege da luz. Só.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Palavras

Fazem parte do meu quotidiano, as palavras. Trabalho com elas, vivo por elas, sinto com elas. Às vezes, magoam-me fundo, outras vezes são algodão que aconchega os meus sentires. Preciso da palavra dita, pensada, escrita também. Se, hoje, me pedissem uma definição de mim mesma, diria apenas que sou uma sequência de palavras desordenadas. Pensando nisso, recuperei um poeta, um Poeta que, não sendo dos meus preferidos, me toca fundo muitas vezes. Aqui fica. Sem segundos sentidos, sem sugestões de leitura, a poesia apenas.
As Palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Poupar

Brincando, a eterna capacidade lusa de rir da própria desgraça, contava ontem um amigo que o ministro Vitor Gaspar só já assina Vitor Par para poupar no gás... Achei piada, mas fiquei a pensar que estamos, de verdade, a ter de poupar em coisas demasiadamente essenciais. Tão essencias que perturbam a nossa essência, dificultam a existência e esvaziam a nossa identidade. Poupa-se no supemercado, na gasolina, nas idas ao restaurante, nas férias, na electricidade, no pão, no café, no cabeleireiro, na roupa, na farmácia, etc. Poupa-se tanto que se começa, talvez sem dar por isso, a poupar nos afectos, na ternura, nas conversas longas, nas cumplicidades, nas humanidades.
Vivemos tristes, preocupados, ansiosos, dependentes da fuga exageradamente rápida dos euros das nossas contas bancárias. Será viver? Será que estamos a assistir ao terminar de uma era de ser-se pessoa,  para entrarmos na era da contabilização? Eu tinha esperança de que o actual governo mudasse alguma coisa. Tinha... Neste momento, alio a uma profunda desilusão um medo, medo até físico, de destruição e incapacidade de sobrevivência. Apetece-me perguntar: - Onde moram as pessoas que deveriam habitar nos governantes desta louca Europa?!

sábado, 12 de novembro de 2011

Utopia

Tenho uma amiga, uma Amiga mesmo, que inicia o seu blog com "Pela Utopia Sempre!". Como vou visitá-la, na blogosfera, todos os dias, às vezes mais do que uma vez, esbarro com este grito frequentemente. Oiço-o sempre, intenso, fundo, parecendo-me, às vezes, ter sido lá colocado para mim... Veleidades minhas, claro, sei bem que não foi assim, mas, ao abrigo do meu silêncio, faço-me de especial e tomo-o para mim. Às vezes, ao lê-lo, fico com os olhos húmidos, com a alma a doer, com o coração encolhido; outras vezes, dá-me força, levanto a cabeça, respiro fundo e vou, uma vez mais, com garra à vida. Então, volto a agarrar as minhas bandeiras, sacudo do pó da desilusão alguns sonhos e, repetindo baixinho o tónico pela utopia sempre! retomo a luta. Volto a achar que faz sentido acreditar, que tenho de ser capaz de conquistar o meu lugar neste mundo louco, que tenho de conseguir voltar a pintar de cores vivas o preto  das minhas insónias. A utopia é, talvez, o alimento da minha essência. Luto por sonhos, combato por impossíveis, choro quando esbarro com a desilusão mas... Pela Utopia Sempre!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

11-11-11

Não se fala noutra coisa: - Hoje é o dia onze, do mês onze, do ano dois mil e onze. Uma coincidência de algarismos que permite mil brincadeiras, outras tantas divagações e iguais absurdos. Logo de manhã, a RFM (a minha mais fiel companhia) anunciava o dia, alertava para a possibilidade do Apocalipse (que alívio) e dizia para prestarmos atenção ao final da manhã, porque, quando faltarem 49 minutos para o meio dia, o relógio marcará 11H11 do 11/11/11, um raro número que, para os adeptos das ciências ocultas, pode indicar a ocorrência de eventos incomuns. Não acredito na numerologia, nem esoterismos absurdos, mas admito que hoje sinto um formigueiro estranho na alma. Tenho uma espécie de temor, uma sensação estranha de que alguma coisa vai acontecer. Provavelmente, nada acontecerá, mas eu penso no dia, nos números, e sonho na possibilidade de se conjugarem forças para surgir uma nova consciência cívica e social, uma efectiva verdade nos afectos e nas relações, uma humanidade menos técnica e mais feita de sentires e compreensões. A partir de hoje, o mundo podia começar a rodar de forma mais harmoniosa, o Tempo poderia ganhar novas qualidades e as pessoas  poderiam, finalmente, criar brechas para que entrassem os afectos!
No entanto, se, por acaso, o Apocalipse vier mesmo, acho que vou ficar aliviada! É que ando muito cansada, exausta mesmo, desta existência oca de Valor.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Redes Sociais

Há dias que me confundem! Sinto-me um fóssil, um homem - neste caso mulher - do tempo da pedra lascada. Sinto-me fora do tempo, nativa de outra dimensão! E isto acontece com cada vez mais frequência o que, convenhamos, é grave. Muito grave quando ocorre, como hoje, no meu espaço  profissional... Entrei na sala de professores, um lugar de conversa e trabalho, e reparei que muitos colegas, muitos!, estavam envolvidos em si mesmos. Olhei melhor e constatei que estavam dobrados sobre os computadores portáteis, Magalhães e afins, nos Facebooks. Num esforço de integração, estou cansada de ser marginal, aproximei-me. Uma colega estava a vender ovelhas e a negociar a compra de um estábulo. Outro procurava feno, outro dava milho às galinhas. Perguntei se tinham comprado uma herdade e fiquei a saber que era só virtual. Era o FarmVille, explicaram-me. Não percebi, nem perguntei mais nada. Fiquei a pensar no sentido que terá vivermos num mundo de faz de conta, de ficções e confusões. Fiquei a pensar que, se calhar, estamos a brincar com o fogo ao destruirmos a relação entre as pessoas, ao eliminarmos as trocas de olhares, o toque, o cheiro. Fiquei a pensar que eu não quero uma quinta a fingir, não quero dar milho  a galinhas que não cacarejam, não quero vender nem comprar feno para cavalos que não escoceiam, nem para vacas sem estrume. Fiquei com a certeza, certeza absoluta, que se esta realidade é o mundo de hoje, eu quero ser parte do mundo de ontem! Não quero pôr fotografias das minhas férias no Facebook, não quero likes de que não gosto nem dislikes que não entendo! Fiquei com a certeza que preciso de sentir que ainda é diferente falar do que teclar. Hoje, fiquei angustiada com a força das redes sociais!

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Gostei

Confesso que não sou admiradora do nosso presidente da república. Aliás, verdade-verdadinha não o tenho em grande conta e acho, muito sinceramente, que ele é um dos principais responsáveis pela miséria (a todos os níveis) a que chegou Portugal. Normalmente, quando ele fala na televisão eu mudo de canal; quando encontro notícias sobre ele num jornal, viro a página. Não gosto da dicção, nem a forma, nem das expressões, nem do conteúdo, nem das ideias que o definem!
No entanto, há pouco gostei que ele falasse português na ONU. Gostei que tivesse usado a nossa língua, tão maltratada e vilipendiada, que fizesse ouvir-se o português naquela reunião de gente poderosa. Talvez seja tarde demais. Com certeza de nada serviu, efectivamente, ter falado em português, mas, ainda assim, senti um certo calorzinho na alma quando o ouvi falar a nossa língua. Muitas vezes acho que nós, portugueses, somos excessivamente servis, demasiadamente humildes, sempre prontos a apoucar-nos face aos que, teoricamente, são grandes e ricos. Gosto de ouvir a nossa língua em lugares de destaque e gostei, estupidamente gostei mesmo!, de ouvir o presidente da república usar a língua de Camões na ONU!

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Foi por ti

Foi por ti que abri a janela para olhar a lua. Foi por ti que tirei da estante os livros empoeirados para recuperar a Ursa Maior. Foi por ti que experimentei juntar o queijo que detesto, ao doce de abóbora que adoro. Foi por ti que pintei de azul as malvas da minha porta. Foi por ti que olhei os castanheiros carregados de ouriços. Foi por ti que misturei Snappy no vinho tinto intenso. Foi por ti que disfarcei a solidão com letras tecladas. Foi por ti que resisti aos mon chéri deliciosos. Foi por ti que me levantei, de noite ainda, para partilhar a torrada com manteiga. Foi por ti que contei as estrelas do meu adormecer. Foi por ti que senti a ausência pintar-se de negro. Foi por ti que o meu corpo gritou calado na noite fria.
Foi por ti que desafiei a existência.
Só por ti!

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Raio de Sol

Está frio lá fora. Frio nas janelas, parecem pintadas com gelo picado, frio nos narizes dos miúdos que gozam o intervalo buscando um raio de sol. Vejo estes jovens da minha janela de trabalho, enquanto teclo textos, elaboro projectos, respondo a emails, preparo formações, aqueço as mãos num café forte. Vejo-os procurando o sol, tocando-se timidamente (ou não), de certa forma provocando a vida, despertando essências. São jovens com a vida a haver, com desejo de ser gente e pessoa. Gosto de os ver. Gosto de os observar, de ouvir as gargalhadas, de poder vê-los sem ser vista. Às vezes, como hoje, comove-me a força com que riem, as cores garridas que vestem, a força com que mordem a boleima que acabaram de comprar. Mordem o pão como mordem o quotidiano, quero eu acreditar, procurando saciar a fome de existir que ainda não sabem SER. O raio de sol brinca nos cabelos das miúdas, aquece os ombros desprotegidos dos rapazes, envolve-os nos recantos onde trocam beijos apaixonados e desejosos. Sinto que o sol é cúmplice. Que do céu vem com força protectora e ternura mágica. Em silêncio, peço-lhe  que não fuja.
Ao menos que o sol aqueça a ternura dos meus miúdos a aprenderem a ser gente!

domingo, 6 de novembro de 2011

A Crise

Chegou sem fantasias, sem cavalo branco, sem anúncio prévio, sem sequer um moderno sms que a preparasse. Chegou numa surpresa indesejada, trazendo anúncios terríveis, futuros assustadores e medos garantidos. Vinha ainda a falar nos gregos, ofendendo um povo filósofo, e carregava pinceis negros e cinzentos para pintar a realidade. Tentei fechar-lhe a porta, descer os estores, trancar as janelas de madeira envelhecida, mas de nada serviu. Chegou servida por mãos letais, carregada da força que marca a mediocridade actual, impôs-se e roubou a minha tranquilidade. Não contente, como se o assalto fosse pouco, destruiu o meu sono e fez da noite um desfiar de escuridões intensas. Agora, dominando os meus pensares, assustando terrivelmente os meus sentires, faz-me tremer cada amanhecer. Cada entardecer também. Não sei quem é, ou são, os responsáveis por estes abusos, mas gostava de poder chamar um polícia eficaz que prendesse a horrível Crise que me tira a paz

sábado, 5 de novembro de 2011

Sábado

Trabalha-se nos sábados. Sob um sol gelado, com os termómetros gritando uns obscenos 7 graus, a sala enche-se de professores procurando respostas, discutindo ideias, analisando textos, confrontando práticas. Não há tempo para se ser apenas singularmente humano, para olhar o Outono ou se aquecerem afectos e cumplicidades. Nunca há tempo. O tempo escasseia na vida das gentes, e a vida tece-se de obrigatoriedades às vezes muito vazias.
Olho quem me acompanha e penso, ou sinto?, que a vida tem de ganhar novos sentidos, que urgem pausas, que se impõem silêncios. Os sábados fazem falta na vida das gentes. Na minha, pelo menos. Apetecia-me caminhar na minha Serra, tomar café no Mercado, sorrir bons dias aos lagóias que, como eu, reconhecem o empedrado da Rua Direita. Queria esgotar a tarde frente à lareira, uma caneca cheia de chocolate fumegante (às urtigas as gorduras!), e partilhar um abraço intenso. Não gosto de trabalhar nos sábados!

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Outono(s)

Decididamente, adoro o inverno. Gosto da chuva, dos dias cinzentos, da humidade que escorre nas vidraças, do vento que uiva nas noites longas. Nesta época, a minha terra ganha novas cores e o meu coração aquece na antominia que me caracteriza. Hoje, bem cedo, encontrei a Serra vestida de vermelho e dourado. O ar cheira a fresco puro, a resina, a dióspiro também.
Um poste de electricidade está embrulhado em vinha virgem vermelho vivo. É um grito de paixão em direcção ao céu que me comove. Queria também chegar ao céu, seja lá isso o que for...
As cores de fora mexem com os meus sentires. A minha tristeza, a minha incompreensão do real vivido, é também intensa e vermelha. É o vermelho da paixão que me faz levantar a cada amanhecer e, apesar de todos os pesares, olhar o mundo e agir. É a paixão intensa que me faz acreditar que sim, que é possível ser feliz, que sim, que vale a pena seguir lutando, que sim, que no Outono da minha existência há essências a realizar.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Sapos

É verdade que a nossa língua tem sofrido muitas alterações. Umas parecem-me lógicas, outras abruptas e idiotas, outras decorrentes da modernidade mas, sempre que esbarro com elas, surpreendo-me com as mudanças. Hoje, tive uma experiência nova... Hoje, senti que não havia forma de expressar o que senti. Eu, eu que tanto gosto das palavras e dos livros, eu que acho que até domino um vocabulário alargado, fui confrontada com um facto que não soube definir. Não fui capaz, sequer, de verbalizar o que senti e, por causa disso, fiquei com uma impressão estranha, com uma espécie de sapo que não consigo engolir entalado nos sentires, preso nos pensares. Afinal, ainda há palavras por inventar e, creio eu, enquanto existirem homens surgirão situações indizíveis (neologismo também). Infelizmente, não há situações que não possam não acontecer por não terem como ser classificadas.
Hoje estou assim. De vocabulário insuficiente.

A Mesma canção

Diz o Rui Veloso, com o inconfundível sotaque nortenho que o caracteriza, que não se ama alguém que não ouve a mesma canção. Gosto de o ouvir e, muitas vezes, é ele quem me acompanha nas minhas peregrinações pelo meu Alentejo. De noite, a coberto do escuro, chego a atrever-me a cantar com ele... Hoje, estou de acordo com ele, profunda e completamente de acordo, e sinto que, de verdade e sem romantismos, não se pode amar alguém que não ouve a mesma canção. Que não tem os mesmos objectivos, a mesma forma de ver a vida, as mesmas preferências. Não se pode amar quem não se comove com o mesmo pôr de sol. Ou seja, um amor assim não pode ter sucesso! Porque, se calhar, o ser humano é um animal de hábitos e não muda; ou porque vivemos na era do umbiguismo e ninguém faz cedências; ou apenas porque para um amor se acertar é preciso que os dois dancem ao mesmo ritmo. Hoje, com muita chuva lá fora, embrulhada no silêncio escuro  que o vento interrompe, concluo que de nada vale empenhar anéis de rubis, saldar corações de ouro ou estilhaçar sentires dourados se a canção que se ouve só a um agrada.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Bruxas e Poções

As bruxas andaram ontem à solta, mas eu oiço-as hoje. Oiço-as rindo-se de mim, troçando da minha noite sozinha, gargalhando face aos meus sentires sempre exagerados. Sinto as bruxas maléficas apropriando-se das rédeas da minha vida e desejo o absurdo. Queria ter baba de caracol, pelos de pulga, patas de escaravelho, cuspo de mosca, visco de sapo, bigodes de gato preto, latidos de cães mansos e, num grande caldeirão, ser capaz de fabricar uma poção que me tornasse invulnerável à desilusão, impermeável à saudade, insensível à dor.

A Gaivota e o Poema

De um lado para o outro, ignorando a espuma das ondas desfeitas, pensava na existência. Estava sozinha, como quase sempre, mas aliviada por, finalmente, poder ter a praia só para si, sem intromissões humanas que sempre a irritavam. Gostava de caminhar assim, marcando a areia, saltitando quando encontrava uma concha no trajecto. Gostava, também, daquelas manhãs frias, silenciosas, quando abandonava o ninho escondido na rocha antes de todas as outras aves.
Caminhava até ao fundo da praia e voltava, na mesma direcção, tentando encontrar para a vida o alinhamento preciso daqueles passeios matinais. Era difícil...
Sentia-se diferente. Estupida e singularmente diferente no bando que integrava. Talvez, porque não?, fosse mesmo herdeira de Fernão Capelo Gaivota; ou talvez tivesse nascido de um ovo tresmalhado. A razão da diferença, desconhecia-a, mas a certeza dessa mesma diferença sentia-a viva. Sentia-a agora, quando desafiava a orla branca da espuma contente com o frio que libertava a sua praia. Sentia-a quando todas voavam no bando grosso e ela ficava observando, no ninho, os voos regulares. Gritavam-lhe a diferença as outras, avisando que nunca seria como elas, que nunca iria longe. Nem sabiam que não queria ir longe, que não queria ser igual às iguais.
Era uma gaivota apenas. E ainda assim conhecia o prazer de ser levada pelo vento, o mistério das noites estreladas, a força daquele mar cheiroso que lhe entontecia os sentidos. Um dia, sabia-o bem, iria desaparecer, aí como todas, na igualdade imposta. Até lá, tinha esse sonho, havia de escrever um Poema Real naquela areia da sua realização. E caminhava, sempre, na berma daquela ondulação.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Dia de Todos os Santos

Apesar da chuva (como gosto dela!), as crianças sairam à rua para cumprir a tradição. Não pedem, aqui, pão por Deus, mas dizem dê-me os santinhos e levam no saco rebuçados, nozes e algumas (poucas) moedas. Lembro outros dias de santinhos. Então a casa enchia-se de cheiro a broas, com mel e noz, bem feiosas mas muito saborosas, e os sacos para pedir eram de pano. Normalmente, eram sacos surripiados à minha mãe e eu era arrastada pela minha irmã Nô que adorava todas estas coisas. Lembro-me de detestar andar a pedir. Tinha vergonha, nunca era capaz de bater às portas, detestava que me dessem coisas que para nada me serviam. A minha irmã gostava de tudo o que fosse fazer coisas, como ela dizia, e rebocava-me contra a minha vontade. Mais tarde, eram as minhas filhas que queriam ir pedir os santinhos e, como moravamos longe da cidade, as vítimas eram sempre as mesmas: - o Dr. Falcão e a Srª. Dona Zélia. A Filipa adorava vir de lá com um postal pintado, com um conto bem contado, ou com um poema recitado pelo velho amigo. A Joana preferia as bolachas e os chocolates que nunca comia...Um dia, trouxeram um Pinóquio articulado, uma das muitas maravilhas que a casa daqueles vizinhos especiais tinha para elas, e o Pinóquio manteve-se, bem preservado, no quarto delas durante anos.
Agora, hoje, vejo outras crianças nas ruas e lamento que não venham bater-me à porta. Queria, também poder dar-lhes um poema, poder contar-lhes da ternura que faz (ou não?) a vida das gentes.

Cordão umbilical

Quando nascem, indefesos e frágeis, tiram-nos o sono com gemidos fora de horas. São as cólicas, as noites que se perdem embalando-os, afastando os medos e os temores. Depressa demais, crescem. Ganham autonomia, fazem escolhas e nós ficamos vigilantes, agora nós os indefesos, incapazes de fazer a transferência da nossa experiência, sem poder para travar e impedir os trambolhões da existência. No entanto, seja em que idade for, o cordão umbilical continua ligado, de pouco serve a tesourada que lhe dão à nascença, o cordão permanece ali, unindo-nos para sempre aos nossos filhos. As dores deles doem na nossa pele, doem fisicamente até, dilaceram por dentro. Não se deixa nunca de ser Mãe, e Pai, e parece que quanto mais crescidos são os filhos mais intensas as nossas dores. Às vezes, acho que me apetecia ter o dom de fazer as minhas filhas voltarem a ser bebés, poder pegar-lhes ao colo e fechá-las no meu casulo protector. O cordão umbilical invisível é forte, eterno, e continua deixando passar todos os alimentos. Só que, agora, são os alimentos da alma que passam e vêm dos filhos para os pais e vice-versa.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Os Carris

Bem sei que quase não há combóios em Portugal. No resto da Europa, pelo contrário, é um transporte eficiente e rápido. Como eu tenho saudades de viajar de combóio na Bélgica! Mas, em Portugal, as linhas desactivam-se e, tirando a circulação de textos sobre o TGV (sim ou não?), não há como viajar no tromba d'aço. Tavez por isso, as coisas saem dos carris com excessiva facilidade. Desde ontem que sinto que, de novo (incrível falta de originalidade) senti os afectos a descarrilarem e a dor a voltar. De repente, num fim de tarde que parecia calmo, a vida descarrilou e, com a força de um tromba d'aço descomandado, chegaram-me desilusões e desgostos. A hipocrisia e o cinismo, a cobardia e a estupidez, provocaram a mágoa e as lágrimas de doer. Vi uma jovem mulher, senhora de sonhos e Valores seguros, ser literalmente abalroada por um combóio de estupidez! Impressiona-me a forma como gente jovem  alinha tão facilmente pela lei da idiotice vigente.

domingo, 30 de outubro de 2011

A Hora

Mudou a hora, no tempo dos homens, sem mudarem os tempos a horas de se ser Homem. A manhã é hoje longa, arrasta-se, e eu encontrei no meu mail a carta que Ásia Bibi, uma mulher indiana, escreveu à família ao saber que será enforcada. Esta mulher vai ser morta por ser católica, por ser assumidamente cristã. A ser verdade, e eu creio que, infelizmente, é mesmo verdade, onde estão os Direitos Humanos? Onde estão os jornalistas que deveriam denunciar estes abusos? Como podemos aceitar que, em pleno século XXI, uma pessoa seja morta por professar uma determinada religião? Experimento uma revolta impotente que me faz sofrer. O que são as minhas angústias, os meus desesperos perante uma situação destas? Talvez seja possível fazer-se alguma coisa, talvez seja possível mobilizar vontades para impedir a morte desta indiana que, numa carta que me dilacera, se despede dos filhos e do marido. Talvez, quero crer, seja possível olhar para mais este crime e combater o egoísmo colectivo que marca os tempos de hoje, onde os homens, a se bel-prazer, até o tempo alteram.
É domingo, há sol, vou tomar um café com mar e levo os meus sentires feitos em esfrangalhos. Eu devia ser capaz de fazer alguma coisa!

sábado, 29 de outubro de 2011

Ondas

Piso terreno alheio. É esta Lisboa que não é minha (e onde por crueldade nasci), este mar que aprendi nos poetas, esta luz que enche os Fados de que gosto, que fazem hoje o meu sábado. Hoje, o mar é um lago, planície a arar por alfaias feitas de sonho e vontades. Germinam velas, navegam ligeirezas, levuras e ausências de raízes. Tomo o meu café olhando este terreno líquido e reparo nas ondas, sonhos de lonjura?, que morrem, desiludidas mas hoje ordenadas, na praia vazia. Morrerão os sonhos sempre, quando as palavras se fazem de espuma e a verdade não tem raíz. Morrerá a vontade quando os ventos, intensos, soprarem a desrazão colectiva. E o meu café sabe bem, forte, enquadrado na baía de Cascais onde sempre afogo sentires de muitos cansaços.
Hoje, as ondas são de vontades e o sol espelha de prata o mar de sempre.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Luz

Depois da chuva violenta, o dia acordou brilhante e lindo. É um tempo de cristal que envolve a minha cidade, a minha Serra, os meus sentires. Junto à barbacã, agora semeada de oliveiras cheirosas, há musgo e cogumelos bravos; na rua do Comércio cheira a castanhas e, à porta das tascas, as velhas tabernas de sempre, anuncia-se a jeropiga recente. Gosto de descer a rua, de saudar os meus conterrâneos de nariz vermelho e de sentir o frio intenso no rosto. É Portalegre com luz. Portalegre a tentar reagir, sobreviver, construir possíveis num tempo de impossibilidades. 
Escorrego no empedrado e rio-me com gosto. Se todas as minhas escorregadelas fossem assim, eu seria bem feliz... Recupero o equilíbrio e sinto o raio de sol, brincalhão e ousado, exigir os óculos escuros. Troco de óculos a tempo de contemplar o pedaço de Serra que o arco do ascensão emoldura. É a minha Serra a dizer que existe, que é forte, que está ali e brilha acreditando na magia da luz cristalina do novo dia. Faço-lhe companhia e acredito também. Acredito que sim, que é possível, que vale a pena, que a luta por uma nova luz ainda faz sentido! Hoje, canto ao optimismo e creio em novas possibilidades.
Hoje, reina em mim a força de viver! A culpa, creio, é desta luz lavada que cobre a minha cidade.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Direitos?

A noite foi de uivos violentos, janelas a bater, ramalhar iluminado por relâmpagos brilhantes. Acordei com um peso na alma, com uma tristeza funda e um desejo, inexplicável, de me sumir num escoador de água, daqueles sempre entupidos com muitas folhas. Mas reagi e fiz-me à vida, o que, para mim, significa dizer que desci à cidade e vim para a Escola. Esperavam-me 26 alunos de 12º ano. Como eu gosto destes miúdos! Falaram-me de Guernica, de Modernismo, de possibilidades e olhares cruzados.
Gosto de perceber que crescem, que o discurso é mais seguro, mais fluente, mais expressivo. A aula voou, em torno de Caeiro e de Álvaro de Campos, todos descobrindo sentidos e decifrandos mistérios. A minha alma aqueceu quando, ao toque da campainha, ouvi protestos de "já?!".
Seguiu-se o Curso Profissional. Agora, 10º ano, o assunto são as relações de palavras, os textos com marcas biográficas. Os miúdos a tentarem, com muita dificuldade, compreender e evoluir. E um só a impedir o trabalho, a procurar o protagonismo, a pôr à prova a minha resistência. Porque terá de ser assim? Porque não será possível, à Escola, encontrar saídas (ou saída?) para jovens de 18 anos que julgam só ter direitos, que crêem tudo poder fazer? Este rapaz, árbitro de futebol, procura na Escola uma ocupação de tempos livres. E os outros têm de o suportar, e nós, todos, pagamos. Será que está certo? Tenho dúvidas.
Tenho muitas dúvidas!

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Orelhas grandes e Suicídio

Uma criança, de orelhas grandes e dez anos, suicidou-se. Era vítima de bullying. Era, com certeza, vítima também de desatenção dos adultos, de indiferença talvez, vítima de uma rotina demasiadamente cheia de insignificâncias para deixar espaço às importâncias. Este miúdo suicidou-se no seu quarto, uma vez mais sozinho, procurando a fuga que deve ter considerado possível.
Não consigo deixar de pensar nesta criança. Não importa agora, é tarde demais, procurar culpados, mas, creio eu, é necessário pensar esta morte. O que está a acontecer nas nossas escolas, no nosso mundinho aparentemente moldado de acordo com normas sociais? Como se sentirá uma escola que permitiu esta morte? Sinto, como professora sobretudo, que urge pensar a dinâmica educativa com verdade e não apenas à sombra de parangonas pedagogicamente sonoras. A nossa Escola precisa de tempos de afectos, de tempos de comunicação, de tempos de ser, e não, como nos impõem, de tempos feitos exclusivamente de OPTE's e aulas de apoio. Se a família falha, e está a falhar (ou em mudança) a função da Escola tem de ser, também, a de desenvolver competências sociais, afectivas, facilitadoras (e promotoras) de integração. O suicídio deste miúdo, de orelhas grandes, tira-me o sono. Sei que há como minimizar estas situações comportamentais que constituem o bullying e desespera-me a passividade (e até indiferença) com que se encaram estas situações!
Urge fazer com que as fadas voltem à Escola, com que a magia dos afectos ganhe sentido! A Escola não pode ser um lugar de medo, onde a única forma de libertação é a morte!
Hoje, tenho muita vergonha de ser professora e queria pedir desculpa a todos os miúdos a quem, por vezes, não dei, ou não dou, o tempo com a qualidade necessária. Hoje, penso que ser professor deve ser, antes demais, estar atento e disponível, agir e mimar, proteger e ensinar. Hoje, tenho a alma tão negra como o céu plúmbeo que cobre a minha cidade e, dolorosamente, os meus sentires embrulham-se levados por um vendaval de emoções intenso.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Segredos

"Sei um ninho. E o ninho tem lá dentro um passarinho" - acho que é mais ou menos assim que começa um poema de Miguel Torga. Fala de um segredo, que não pode nem quer contar a ninguém, para poder ver, um dia, o passarinho voar. Eu não sei um ninho. Mas gosto dos meus segredos, dos que me ajudam a viver, dos que me fazem ser mais eu, dos inconfessáveis, dos antigos. Curiosamente, às vezes apetece-me contar os meus segredos ao papel, confiante que ao grafá-los os escondo, segura que ao dar-lhes forma os conservo. Será?

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A recta

É uma recta (deveria ser reta?), de bom piso, paisagem tranquila, radares escondidos e traiçoeiros, pouco movimento e horizonte largo, a que me leva até Arronches. Dantes, no tempo em que as rectas tinham a certeza dos "cês", Arronches era a terra dos porcos. Dizem que varas inteiras regressavam dos campos e cada porco seguia a caminho da sua pocilga sem nunca se enganar no destino. Dizem, e eu acredito, que as ruas empedradas da vila branca, em Arronches ainda predomina o branco, ficavam cheias de porcos ao final de cada dia.
Hoje, já não há porcos de quatro patas nas ruas, já não há varas a regressar ao pôr-do-sol, já não há razão para se chamar a Arronches a terra dos porcos. Hoje, as ruas estão vazias, os espaços entristeceram e, sempre que saio da escola pelas nove da noite, por companhia só tenho mesmo as lembranças das muitas estórias que sempre ouvi sobre esta vila linda!
Há pouco, circulando calmamente na recta (para mim com "cê"), com todo o tempo que a minha solidão me concede, deu-me para pensar nas coisas que se perdem nestes tempos de pseudo-modernidade. Hoje, esta noite, no meu canto sozinho penso que estamos a deixar morrer as coisas de ser. Lembro Caeiro, "as coisas não têm significação, têm existência" e concordo que, se calhar, a existência das coisas se faz, cada vez mais, de ausência de significação. Hoje, depois de circular na recta moderna, com os olhos embaciados de vazio, deu-me para pensar que gostaria de poder não sentir. Não pensar também me convinha.

Ei-la!

Faz carreirinhos no vidro da janela, lágrimas de alívio desalentado, criando pequenos lagos no parapeito. Vejo-a do lado de dentro, aquecendo as mãos na chávena larga de café forte, e sinto-a escorrer também dentro de mim. Fazia falta nos meus sentires, nos campos gretados e secos, na vida das gentes, creio eu. Olho os carreirinhos, ordenados, nascendo em gotas minúsculas e criando pequenas ribeiras grossas. Como a vida, os meus sentires, as estórias que nos tecem. Começa fácil, fininho, e vai-se enchendo de pingos gordos, de lágrimas salgadas, de desilusões e ausências, terminando num lago de águas estagnadas e baças onde, muitas vezes, nos tornamos (eu me torno) náufraga da vida.
Eu gosto da chuva! Gosto da autenticidade do Inverno, da fúria do vento que deita ao chão as nozes da minha nogueira, do frio que pinta de vermelho a ponta o nariz das minhas crianças. Gosto do cheiro da lareira, das romãs rubicundas, dos marmelos a cozer anunciando, na minha cozinha, o possível regresso de um D. Sebastião para construir um Portugal novo e com sentido mesmo.