sexta-feira, 24 de outubro de 2014

PRAXES

Cada ano que passa, sucedem-se os excessos nas praxes académicas. Eu cresci a ouvir contar histórias de Coimbra, cidade berço (também) das praxes, e nunca pensei que fossem práticas humilhantes ou violentas. O meu Pai falava com imenso carinho, saudade e orgulho, das praxes coimbrãs, das amizades, das cumplicidades que aí se iniciavam. Eram, com certeza, outros tempos... Hoje, o que a televisão nos mostra são humilhações gratuitas, excessos graves e comportamentos doentios. Para piorar as coisas, aqueles - Veteranos(?) - que dão voz em defesa das mesmas, mal sabem falar português, têm um discurso cheio de lugares comuns e, estranhamento para mim, orgulham-se por há "muitos anos" frequentarem a Universidade... Faz- me imensa confusão, traz-me muita preocupação, o comportamento de alguns dos jovens portugueses que frequentam o Ensino Superior (e não só...). Num texto, fantástico, de Teolinda Gersão, levanta-se a questão destes caloiros - apelidados pelos veteranos de vermes e bicos (no mínimo) - estarem legalmente menos protegidos do que os animais eles mesmos. Não concordo. Penso que não é de protecção legal que estes jovens precisam. O que precisam é de formação e educação a sério. Um indivíduo que tem prazer em humilhar outro, que acha integrador esfregar cabeças de colegas com porcaria, não tem competência social que lhe permita usufruir da verdadeira designação de cidadão...
Acho eu. Eu que, nos últimos tempos em Portalegre, esbarro com as praxes feitas de água suja, berros, humilhações e bebedeiras. 
Às vezes, só às vezes, penso que algumas das praxes mais não são do que oportunidades privilegiadas para que os cobardes, os idiotas, os medíocres, tentem impor-se...

sábado, 18 de outubro de 2014

O ABRAÇO

A Vinha virgem, feminina e ousada, abraçou o Alecrim. Indiferente à altura dele, sem se importar com a robustez dos ramos, ela, frágil, trepou e foi-o envolvendo, abraçando-o, aproveitando-lhe o apoio para chegar mais alto. Ele aceitou-a sem protestar, suportou-lhe o peso, ajudou-a a ver o sol mais de perto e achou-se lindo naquele abraço vermelho. Quem passava perto não comentava, nem criticava. Olhava apenas, rendido, a beleza daquele abraço. Ali, não havia quem ousasse pôr defeito.
Há coisas que, sendo tão naturais, quando acontecem nos humanos parecem estranhamente desajustadas...

domingo, 12 de outubro de 2014

CONVERSA PROIBIDA

Buarcos
Olhava-o zangada. Eram só os dois: Ela, envolta no casaco encerado gasto, com o chapéu até aos olhos, e ele imenso, excessivo. O silêncio era total, feito do marulhar do dia de Outono-Inverno. E ela atirava-lhe as palavras que caíam na água revolta. Estava zangada sim! Zangada com aquela imensidão, aquela força ruidosa, aquela presença sempre constante que a atraía inexplicavelmente. As lágrimas misturavam-se com a chuva, com o sal trocista que o mar cuspia com força. Ela falava tremendo. Dizia dos impossíveis, da solidão, dos adiamentos, da dor da ausência que, por absurdo, desejava até. Ele rugia. Feroz e denso, poderoso e mágico. Ele tinha nele o Gama e o Adamastor, tinha a coragem e a ternura. Ela tinha os destroços, o quotidiano imposto. Era uma luta desigual, mas ela insistia. Sentia o corpo gelar, os cabelos emaranharem-se, mas não desistia: Queria dizer-lhe que, no jogo inconsciente de muito querer amar, ele, mar, estava escandalosamente presente. Queria dizer-lhe o indizível, as palavras cheias que os homens não compreendem, as desilusões que todos garantiam serem rotinas. O frio abraçava-a, violento e negro, mas ela recusava fechar-se no conforto do seu automóvel. Às vezes, achava, é preciso sentir a energia da Natureza para poder aceitar a estupidez de alguns homens!

sábado, 11 de outubro de 2014

OUTONO NA COZINHA


 O Outono inundou hoje a minha cozinha. Pela manhã, de botas de borracha e armada de coragem, fui colher marmelos, dióspiros e folhas de vinha virgem. Se os primeiros me enchem o paladar, as folhas aquecem-me a alma gelada. Depois, meti mãos à obra e tenho ocupado a tarde na tarefa de fazer marmelada e geleia. Por companhia, uma montanha de memórias e a voz de Cesária Évora. 
Enquanto descascava marmelos desfiava memórias. A minha avó, primeiro, a senhora Joaquina, a minha mãe também. Gerações de mulheres de quem herdei o saber nos gestos que repito. Já não sou a miúda que ajudava, sou a responsável pelo ponto certo, pela medida exacta do açúcar, pela canela bem colocada nos dióspiros que colhi  com mil cuidados. As horas foram correndo e o saco, não já a canastra de bunho,  foi-se esvaziando de marmelos cheirosos.

O pulso começou a doer, mas não dei ouvidos e cumpri o que me tinha disposto a fazer: - 5 kgs de marmelada! Com as cascas, e os caroços, hei-de fazer a geleia vermelha que a minha avó insistia em deixar líquida demais para o meu gosto.



Enquanto cortava os marmelos em pedaços pequenos, via cenas de um filme gasto onde fui protagonista. A casa cheia, as empregadas atarefadas, os miúdos a lamberem a colher de pau. Hoje, estou sozinha. Estou com as memórias, com algumas saudades, mas estou, também, com a calma segura da paz que começo a conquistar. Talvez, afinal, envelhecer seja esta capacidade de abrir a janela dos sentires apenas ao que é importante. Talvez, quem sabe, esta arte de fazer marmelada nos/me sirva para mostrar que das cascas e caroços, do lixo aparente da existência, se podem fazer coisas saborosas, bem envoltas no açúcar da paz de espírito, temperadas com um pau de canela confiante!!

Afinal, é tudo uma questão de Tempo, e de sabedoria: - A marmelada precisa de uma hora para ficar no ponto, faz-se com o fruto bom; a geleia precisa de três horas, faz-se com as cascas! A vida também se cumpre mais rapidamente quando é fácil, mas fica deliciosa quando as agruras se adoçam!

O INSULTO

É comum considerar-se o Homem um ser de comunicação, um ser que, por ter o poder da palavra, pode comunicar, partilhar, opinar, amar e até odiar. Mas, acho eu, às vezes o homem baralha tudo e torna a palavra uma arma vulgar, metálica, cortante e assassina. 
O insulto é, para mim, a concretização da mediocridade, a afirmação do vazio de argumentos, a assumpção da estupidez. Quem insulta, é o cobarde que não tem argumentos, é o idiota (ou a idiota) que não consegue sair do seu mundinho de certezas vazias, para ouvir o outro, para compreender e partilhar. Às vezes, eu tenho também vontade de insultar! Mas obrigo-me a pensar que, se calhar - DE CERTEZA - há-de haver no outro diferenças que, não sendo minhas, merecerão ser escutadas.
Muitas e muitas vezes tento ensinar os meus alunos a debater ideias, a construir argumentos, a fazer citações, a usar a palavra ao serviço da inteligência. Não o faço apenas porque os programas o impõem... Faço-o, sobretudo, porque acredito que é através da palavra, da conversa calma, da capacidade de ouvir e compreender que se poderá, um dia..., construir um mundo melhor.
E eu quero tanto um Mundo Melhor!!

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

GOSTAR DE GOSTAR

É bom gostar. Gostar de chocolate, de um bom bife, de legumes no forno, de fruta fresca, de entardeceres mágicos, de luares brilhantes, de roupa nova, de conversas reais. Mas é melhor ainda gostar de gostar de pessoas. Gostar de ouvir, de partilhar espaços, de rir em simultaneo, de fazer brindes sorrindo, de coçar o nariz no momento em que as borbulhinhas do champagne fazem cócegas no nariz. É bom gostar de abraços intensos, de encostos fortes, de gargalhadas uníssonas.
Às vezes, acho que estamos a desaprender a prática do gostar. Andamos muito cinzentos, muito apressados, e olhamos o gostar com demasiado desinteresse, com se fosse uma coisa menor! E gostar é tão MAIOR!!

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

CONVERSAS MUDAS


Vamos conversar? 
Então senta-te aqui, despe as reservas, sacode da alma as certezas, deita para o lixo as mágoas. Senta-te bem, ajeita-te no coração da ternura e ouve. É tão importante ouvir! 
Ouve o silêncio da minha tristeza, escuta a verdade da minha desilusão e sente o sal quente das lágrimas que já sequei. Não te mexas. Oferece-te tempo (eu sei que isso vale dinheiro!) e escuta só. Um dia, eu prometo, o que escutas vai fazer verdade no teu coração magoado. 
Agora, ouve só a conversa impossível. 
Não protestes, aceita. Apenas.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

MONSTROS NA EXISTÊNCIA

A gente - gente singular eu - faz quilómetros, salta do comboio para o avião, faz-se à estrada de automóvel, corre a cumprir obrigações e, quando dá por isso, esbarrou na meta: - Um buraco escuro onde se constrói o esquecimento. 
Já passei (há muito) o tempo dos porquês, mas não passei, talvez não passe nunca, a mania de querer encontrar sentido, ou sentidos, para as idiotices (muitas) que tecem o nosso quotidiano dito moderno e desenvolvido. Cada vez mais, o meu quotidiano profissional me dilacera. Onde estão os sonhos que eu tinha, os meus projectos de grandes mudanças, as ideias fantásticas para melhorar a educação? Os meus netos dizem que há uns monstros terríveis, vindos do algures, para nos chatear. Eu, mais velha, começo a adivinhar de onde vêm os monstros.. Mas não digo. Não digo porque, embora não acredite em bruxas, eu sei que elas existem.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

RETALHOS

Afinal, descobri hoje, o ser humano, sobretudo mulher, não é uno e indivisível. Eu tenho 50% do coração em Inglaterra, outros 50% em Ponte da Barca, a cabeça em Portalegre, a memória nas saudades vivas de quem já partiu, a consciência profissional amarfanhada no fundo da pasta e a competência social partida em mil pedaços. Isto tudo, assim mesmo esfrangalhado, faz-me ser quem sou agora: - A Luísa a despachar a mala para embarcar! 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

MADE IN

Um destes dias, treinando a competência oral dos meus alunos de 10º ano, pedi-lhes que falassem durante um minuto sobre o marcador que uso para escrever no quadro branco (o giz já faz parte de outra era). Houve hesitações, algumas aflições, mas houve, também, gente que se desembaraçou bem. Um dos alunos resolveu partir do facto da dita caneta ser "Made in Germany". Confesso que eu, que a uso diariamente, nunca tinha reparado nisso... 
O meu aluno lá falou de tempos perdidos, dos tais Descobrimentos que só já servem, infelizmente, para encher páginas de livros de história. Saí da aula satisfeita (acontece muitas vezes), não porque a caneta era "made in Germany" mas porque me pareceu que ajudei os alunos a compreender como se formula um argumento.
Hoje, resolvi ir às compras na minha cidade. E não é que encontrei uns sapatos, giríssimos e de sola cosida, baratos ainda por cima? E, cereja no topo do bolo, "Made in Portugal!" Fiquei apaziguada (um bocadinho) com o meu país: - Há quem produza! 
Soube-me mesmo bem, muito bem, calçar os meus sapatos novos Made in Portugal. É que, ainda por cima, fazem bom andar!