quinta-feira, 29 de março de 2012

Ruínas

Vestiu o corta-vento, calçou as velhas galochas e fez-se ao caminho. Gostava daqueles passeios solitários, das caminhadas sobre pedras e montes, de se deixar envolver pela neblina matinal, húmida, sentindo a solidão a fazer-se companhia. Ia às ruínas. Era um lugar que conhecia bem, poderia (talvez) por ali caminhar de olhos vendados, e gostava de sentir a aspereza de muitos destroços, a doçura de muitas ternuras, a macieza de alguns viveres. Sabia bem que de pouco, quase nada, lhe serviam as botas de borracha, mas a protecção exterior iludia a vulnerabilidade interior. Levava a alma a reboque, os sentires enovelados mas, ainda assim, a passada era segura e decidida. Nas ruínas reencontrava-se e, embora não parafraseando Pessoa e não querendo construir castelos com as pedras do caminho, sentia que poderia ter já uma cidadela. O corta-vento dava calor e, por isso, tirou-o, expondo o corpo à intempérie. Sempre assim viveria: de alma aberta às intempéries, viessem elas de onde viessem!

terça-feira, 27 de março de 2012

Agressão Urbana

Apetece-me provocar um levantamento popular, uma revolução em Portalegre, uma guerra violenta! Apetece-me gritar aos quatro ventos, pegar em paus e sair para a rua, organizar manifestações e abaixo-assinados. Não estou a conseguir aceitar a mais recente violência urbana na minha cidade!
No coração da cidade de José Duro e Régio, no centro de um nordeste alentejano que sinto carregado de magia, ali mesmo no Rossio, vão construir um mamarracho de cimento e aço, bicos e curvas, numa modernidade chocante. O Palácio Póvoas, apesar de achinesado, já chora de vergonha e humilhação. Não merecia esta vizinhança! O projecto, que vai destruir o velho Facha, surge anunciando uma Cafetaria - bem à espanhola - e terá flores no telhado e bicos de alçada(?). A Câmara Municipal da minha cidade aprovou em pleno e, ontem mesmo, só houve dois votos contra na Assembleia Municipal... Não dormi! Como se pode assim, de ânimo leve, atentar contra a dignidade de uma cidade com mais de 500 anos de História?! Não bastaria já o prédio encostado às velhas muralhas, o pavoroso monumento aos dadores de sangue, o monstro de cimento a crescer na avenida 1º de Maio, os imóveis absurdos a meio da Serra (Parque Natural?!) ?
Sei que de nada serve a minha indignação mas, ainda assim, não consigo calar-me. Sofro com a minha cidade. Sangro ao passar no Rossio antevendo o que aí vem...

segunda-feira, 26 de março de 2012

Mudanças

Quem não sabe de nada, opina sobre Educação. E muita gente que não sabe de nada, dirige o país. Ora, está-se mesmo a ver o que dá: - saem disparates e disparates sobre Educação!
Agora, a ideia peregrina são os Mega Agrupamentos... juntam-se crianças desde o pré-escolar até ao secundário e pretende-se que, assim, os miúdos aprendam. Nada de mais errado! Crianças de três anos e jovens de 18 aprendem, de certeza, de forma diferente, têm necessidades educativas diferentes, exigem atitudes e desempenhos diferentes! O que está a acontecer é que apenas se olha para o dinheiro, encara-se a Educação só sob o prisma economicista e, UMA VEZ MAIS, ignoram-se as pessoas. A minha escola, garantem, vai ter um Mega Agrupamento. Os meus meninos jovens vão ter uma Mega Escola. As aprendizagens é que, temo, vão ser uma Mega Fraude! Mas vai sair baratinho...

domingo, 25 de março de 2012

Amigos

Abraçam-se, enrolam-se um no outro, não se perdem de vista um só momento. São amigos de verdade, o Tango protege o Manel fazendo-lhe de barreira nas rampas e degraus, e o Manel abraça-o com força, faz-lhe mil festas, beija-o (face aos protestos indignados da mãe) e diz-lhe na sua pureza - o Manel adora o Tango.Gosto de os ver, ternos, alegres, gozando a Serra, enchendo de sentido a minha existência.
O Manel e o Tango lembram-me como é bom aceitar tudo sem fazer perguntas, confiar nos outros, sorrir e sentir  carinho real, sem cobranças nem julgamentos.
Nestes dias, são eles que me fazem voltar a olhar o céu e pensar na renovação!

sábado, 24 de março de 2012

A Inquilina

Não paga renda, não é convidada, não tem contrato selado mas, todos os anos, chega com a família e aloja-se atrás da lanterna que ilumina a minha porta. É viscosa, gorda, atrevida, e já me olha de lado, língua de fora, indiferente à corrida que dou para entrar em casa sem que ela me caia em cima. A minha inquilina, a dona osga, normalmente chega a meio de Maio, sem malas mas com a filharada às costas, e fica até Outubro. Vem passar o tempo quente à Serra....
Este ano, chegou muito mais cedo e já está instalada. Deve ter sentido o calor excessivo, ou se calhar entrou no desemprego, e já ocupou o espaço que, sendo dela, é meu.
Não morro de amores pela minha inquilina. De facto, eu detesto répteis, e as osgas, particularmente, causam-me arrepios. No entanto, admito que já estabeleci com esta família, deve ser já a quarta ou quinta geração, uma certa ligação afectiva. Gosto de as ver caçando moscas, acho graça à forma indignada como  me olham quando desligo a lâmpada e sinto uma certa inveja por poderem passar o dia de papo para o ar. É que elas não sabem da crise, não conhecem o ministro Gaspar, não descodificam a palavra poupança. ~
Têm muita sorte, as minhas inquilinas!

sexta-feira, 23 de março de 2012

Depressão e Fortaleza

As depressões são doenças sérias, doem mesmo e, infelizmente, são cada vez mais frequentes. Os jornais e os psiquiatras dizem que a crise económica tem responsabilidade no número crescente de depressões e, obviamente, eu acredito. Mas, ao ver uma grande amiga ir-se abaixo, tenho medo. É que não é só a crise que pode provocar, ou agravar, uma depressão, e não há, não há mesmo, fortaleza humana que garanta resisistir-lhe... Eu que não sou médica (graças a Deus!) continuo a pensar que, neste país, não só a crise nos deprime. A sociedade, as relações entre as pessoas, também têm a sua quota parte de responsabilidade. É que, olhando à minha volta, cada vez mais encontro dedos apontados, gente barricada nas certezas próprias e pronta, sempre, a julgar e condenar os outros. Não há, creio eu, fortaleza emocional que resista à constante crítica e condenação, que se mantenha firme face a bombardeamentos e ataques! Se eu mandasse, com um poder de verdade, impedia e  punia os julgamentos constantes que, não sendo autos de fé, tornam cada um de nós terríveis inquisidores.
A depressão dói mesmo! E, acho eu, pior que a crise económica é mesmo a crise social!

quinta-feira, 22 de março de 2012

Envelhecer

Está a chegar a interrupção lectiva (vulgo férias) da Páscoa e sinto em avalanche as memórias. Lembrar não é viver. É envelhecer! É ler muitas páginas escritas de muitos fazeres, de imensos sentires e alguns sentidos. Quando as memórias são muitas, quando, como hoje, a Páscoa traz muitas histórias com coelhos e ovos, lágrimas e sorrisos, ausências e presenças, está-se a envelhecer depressa e o ontem fica bem mais comprido do que o amanhã. Estranhamente, gosto da compridura do ontem...

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia Mundial da Poesia

A minha homenagem...

Amei Demais
Madruguei demais. Fumei demais. Foram demais
todas as coisas que na vida eu emprenhei.
Vejo-as agora grávidas. Redondas. Coisas tais,
como as tais coisas nas quais nunca pensei.

Demais foram as sombras. Mais e mais.
Cada vez mais ardentes as sombras que tirei
do imenso mar de sol, sem praia ou cais,
de onde parti sem saber por que embarquei.

Amei demais. Sempre demais. E o que dei
está espalhado pelos sítios onde vais
e pelos anos longos, longos, que passei

à procura de ti. De mim. De ninguém mais.
E os milhares de versos que rasguei
antes de ti, eram perfeitos. Mas banais.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'
 

Parlamento dos Jovens

Mais um ano, mais um dia a brincar aos políticos com os alunos do secundário. Há já sete anos que, pelo menos um dia no ano, vejo jovens transformarem-se em deputados e discutirem ideias e medidas. Há anos em que os vejo mais do que um dia, porque, quando os meus alunos vencem, o que aconteceu nestes últimos anos muitas vezes, vejo-os também com o rabo bem sentado na Assembleia da República.
Tenho boas recordações destes momentos. Lembro alunos aguerridos, discussões acaloradas e amizades que permanecem vivas. O Joel, de Campo Maior, discutia furiosamente com a Ana que, por vezes muito irritada, o acusava de ter a escola dos comunistas... Tinha razão, a Ana. De facto, os miúdos que integram juventudes partidárias têm sempre, no Parlamento dos Jovens, uma prestação mais sólida e uma argumentação mais estruturada. As juventudes partidárias são, admito, uma boa escola política mas, infelizmente, a par com o poder argumentativo, reproduzem os piores modelos da vida política e formam, creio que conscientemente, jovens formatados e ecos daquilo que, ao ouvir os debates na Assembleia da República, mais me incomoda!
Que é preciso educar os jovens para o exercício activo da cidadania, parece-me indiscutível. Que ouvi-los dizerem que não lhes interessa a política, que não vão votar ou sequer recensearem-se, angustia-me. Mas vê-los a reproduzir modelos ocos e a repetir estratégias erradas, apavora-me!
Creio que o jogo do Parlamento dos Jovens, teoricamente muito importante na educação dos jovens, se mantiver a actual forma, tem os dias contados. Vejo que o jogo chegou ao fim, ensinando aos jovens que em política o que tem valor são os acordos de bastidores e não as ideias; que não interessam ideais, mas simpatias; que não interessam projectos, mas interesses pessoais.
No final de mais uma sessão, apetece-me ter a esperança de que, para mim, seja a última.

terça-feira, 20 de março de 2012

Óculos

Há alguns anos, em Bratislava, encontrei este anúncio de venda de óculos. Lembro-me que estava um dia quente, eu chegara à cidade de barco, vinda de Viena de Austria, protestando por o Danúbio ser castanho e não azul, para visitar uma cidade que muito me surpreendeu. Na altura, ainda não usava óculos, (eu). Via até muito bem e não entrei sequer na loja anunciada.
Hoje, provavelmente, seria diferente... Hoje, reconheço que precisava de uns óculos de longo alcance. Uns óculos que me permitissem ver o amanhã com mais clareza e menos tristeza. Uns óculos que me fizessem ver o mundo pintado de cores com sentido!

segunda-feira, 19 de março de 2012

Dia do Pai

Sabia alisar as pratinhas dos chocolates Regina e fazer lagos brilhantes. Sabia montar o Presépio e arrancar o musgo com cuidado, fazendo tapetes enormes. Gostava de encher a casa de amigos, da mesa coberta de petiscos típicos, de dias de sol com boné na cabeça. Passeava no campo, devagarinho, ensinando-me a distinguir o voo da codorniz do da perdiz vermelha. O meu Pai sabia de cor os caminhos da Serra, os atalhos e as histórias dos muros velhos que me legou em segredo. À tarde, sentava-se na cadeira longa e conversava, copo na mão, petiscando e desfiando memórias e sonhos que sempre tinha. O meu Pai cheirava bem, a colo e mimo, e o casaco verde, onde os bolsos nunca chegavam para guardar os óculos, tinha a forma do corpo dele. Quando iamos à praia, o meu Pai entrava num instante no mar, ainda eu me arrepiava com apenas os pés molhados,  e nadava sempre ao longo da areia. Depois, secava-se na toalha larga e vestia a camisa porque a areia picava a pele branca, (de galinha), ria-se ele.  O meu Pai acreditava na bondade, na ternura, na verdade e no carinho.  O meu Pai gostava de me ouvir, de conversar comigo, de viajar comigo ao volante do seu automóvel, descobrindo lugares novos, Restaurantes gostosos e paisagens mágicas. O meu Pai era capaz de ouvir sem condenar, de perdoar sem punir, de aceitar e de compreender. O meu Pai faz-me falta todos os dias e, sem ele, há um buraco eterno na minha existência.

domingo, 18 de março de 2012

Domingo

A preguiça de domingo fá-la encompridar a manhã. Fica mais um pouco, quieta, deixando os melros picarem o vidro da janela e tentanto esquecer as mossas que deixarão nos vidros. Queria poder esquecer tantas mossas... Vira-se um pouco, fecha os olhos, pede ao sonho que a embale e a deixe partir para um mundo diferente. Um mundo transparente, onde as opacidades não existam mesmo. Se pudesse, eliminaria os  ses. Está cansada de condicionais, de futuros eternos, de adiamentos constantes. Volta o melro. É gordo, luzidio, alegre e não conhece o condicional. O melro tem a sorte de não saber que há meninos com fisgas, que existem pressões de ar, que o gato gordo é rápido no ataque...A manhã avança e, relutante embora, sai da cama. Liga a música e procura um livro, um poema:
(...)
Deixem ao dia a cama de um domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa de um flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre

Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o Amor por fim tenha recreio.
Natália Correia

Vestiu-se rapidamente e saíu. Ia comprar lírios. Isso!Lírios de domingo, numa manhã feminina.


sábado, 17 de março de 2012

Ausência

AUSÊNCIA
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

                          Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 16 de março de 2012

Despenteado

Chegou um mail à minha caixa que me fez sorrir. Sob o título "Viver Despenteada", enumeram-se várias situações da vida que nos despenteiam... É o caso de nadar - despenteia -, fazer amor - despenteia -, brincar - despenteia -, dançar -despenteia, beijar com ardor - despenteia. Etc. Muito etc.
Li tudo. Algo me dizia que o mail não era para apagar, e conclui que vale a pena deixar que a vida nos despenteie. No final, o pior que me pode acontecer é, apenas, precisar de me pentear de novo! E eu gosto tanto de ir ao cabeleireiro...

quinta-feira, 15 de março de 2012

Trem de cozinha

Já rodam os tachos, panelas, frigideiras e caçarolas. Tem de haver lugar para todos os boys, todas as girls e, provavelmente, todas as children.... Trocam-se os filiados do PS pelos do PSD, e fazem-se listas de quem falta. Todos merecem um novo tacho porque, neste pais, os cozinhados saem sempre insonsos! Oiço os nomes dos novos dirigentes e pasmo: - Continua a não se olhar a currículo, a experiência, a competência. Rolam cabeças, mudam-se cadeiras e ninguém sabe se os desempenhos foram de sucesso ou de fracasso. O PS e o PSD esgrimem frigideiras e tachos e nós, portugueses (seremos ainda?) pagamos os ingredientes de um menu que não queremos.
Recupero Camões "No Mais Musa, no mais!"

quarta-feira, 14 de março de 2012

Subidas

Mais um dia. Olha a rua, ouve as notícias, sorri à voz do Zé Coimbra que, na RFM, lembra o poema sobe a calçada, Luísa, sobe a calçada. Há tantas subidas, sempre. Subidas íngremes, desejo de chegar, de alcançar horizontes largos, de ir para além do chão duro, da terra plana e chata. Literalmente chata!
Espera-a um dia longo. Um dia de muitos mais do que 24 horas porque, ao contrário de Reis, não quer ficar na margem do rio, não quer resistir e não prefere rosas à pátria. Será um dia de possíveis, de cumprimentos obrigatórios, de desafios e de buscas de brechas num quotidiano muito cerrado, muito pouco receptivo a concretizações de sucesso. Mas, ainda assim, urge reagir e avançar a cada novo sol com a esperança trémula sempre renovada.
Olha a montanha de papéis que a provocam na secretária e prepara-se para mais uma subida. Uma subida dura que, quer crer, lhe permitirá por fim olhar a infinidade do horizonte e aquecer a alma, um pouco ao menos, na linha vermelha de um Verão também ele desajustado.

terça-feira, 13 de março de 2012

Súplica

SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.



Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.



Miguel Torga



segunda-feira, 12 de março de 2012

Oxímoros

Estou seguramente perdida na realidade nebulosa que me abraça. Sinto intensa a ausência de possíveis, festejo a incerteza de um quotidiano de muitos passados. Encontro-me no espaço que desconheço, sentindo-me num labirinto onde identifico as saídas que nego sempre. Na solidão cheia de mil seres, sinto-me múltipla na minha unidade. Qual cadáver vivo, cumpro uma rotina incumprível. Se acredito, erro; se duvido, cumpro. O que não digo, incomoda, porque o que digo ilude. Na minha vida alheia não há lugar para o eu que, conhecendo, estranho a cada alvorecer.
Existo? Vivo? Quem sabe? Eu conheço que o desconheço.

sábado, 10 de março de 2012

Procura(s)

Quando abro a porta de casa, procuro-te.
Procuro-te no sofá, ali, perto de onde me sento para a minha leitura calma.
Quando abro a gaveta da direita, é a ti que procuro.
Procuro o corpo ausente na roupa dobrada, é a ti que procuro.
Quando peço bica para dois, é a ti que procuro.
Procuro a companhia ausente, é a ti que procuro.
Quando compro os iogurtes magros, é a ti que procuro.
Procuro a parceria na dieta imposta, é a ti que procuro.
Quando ligo o computador, é a ti que procuro.
Procuro o passado que quero futuro nas fotografias arquivadas, é a ti que procuro.

Às vezes, fico quieta. Fecho os olhos, apago a luz, desligo a música, e espero. É a ti que procuro.
Um dia, tem de ser, eu vou encontrar-te!

sexta-feira, 9 de março de 2012

Mimosas

Quando chego agora ao meu quintal, há um cheiro novo no ar. Há um perfume intenso que, sem dar à existência novo sentido, de certa forma adoça o meu viver. Inspiro intensamente e extasio-me olhando a enorme mimosa que tomba, lânguida, sobre o telhado de minha casa. Não espero nada da grande árvore, como ela nada espera de mim, mas compreendemo-nos no silêncio que a tarde calma impõe. Está ali há anos, firme, sempre recuperando a cor que o inverno lhe rouba, incansavelmente perfumando dias e, por vezes, provocando espirros e comichões. Gosto de ficar lá fora, olhando o amarelo intenso, gozando o perfume que não pago, não compro, e me entontece. Saboreio a bebedeira de sentidos, deixo-me levar nos sonhos livres e sorrio à minha árvore amarela. Ela não sonha nada, não conhece preocupações e, ainda assim, eu creio que me escuta e me compreende. Não sei se é por a árvore ser feminina, se é por ter nome de ternura, se é porque abusa impunemente do perfume, mas sei que esta árvore me ajuda a sorrir nos fins de tarde de quotidianos difíceis.
Lembro Caeiro. Talvez  a verdade esteja nele e, de facto, Pensar seja estar doente dos olhos...

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia M

Ouvia as referências à mulher. De certa forma, a si também. Ouvia na televisão, na rádio, no trabalho, no café, elogiar as mulheres e lembrar o seu dia. Ouvia ao longe, um ouvir sem eco, sem fazer sentido para ela, as declarações socialmente correctas. Enumeravam-se mulheres famosas, algumas ela detestava, outras admirava mesmo: Sophia, Madre Teresa, Margaret Tatcher, Maria José Nogueira Pinto, etc. Não queria lembrar as que abominava. Não no seu dia.
Saíra de casa como sempre, cumprindo rotinas, trabalhando muito e, agora,  rodava na mão a flor que recebera no supermercado, de viveiro (a flor, não o supermercado), e sentia  falta do odor da planta. Como, tantas vezes, sentia falta do odor da vida, de sentidos, de razões, de objectivos alcançáveis. A flor, uma margarida, era bonita, com o pé travado num arame fininho que a impedia de se dobrar. Como as pessoas, afinal, mulheres e homens, presos em arames sociais e obrigados a posturas que outros definiam como adequadas... Sorriu sozinha reconhecendo a sua veia mazinha, de mulher, afinal. E se pudesse colocar arames que pusessem as pessoas a seu jeito? Começou a imaginar posturas. Inenarráveis, de facto.
Sorrindo, deixou a flor plastificada no caixote do lixo do parque de estacionamento. Se era o seu dia, que o fosse autêntico!

quarta-feira, 7 de março de 2012

Ironias

Reinam no país a tristeza, e a depressão, colectivas e generalizadas. O português vai-se andando, que tanto me desesperava, foi substituído pelo tudo péssimo, que muito me aflige. Os olhares escureceram, os receios de cada nova hora são constantes, as notícias assustam-nos cada vez mais. Parece que não há luz ao fundo do túnel, que não há alternativas, que nada de bom se avizinha. Nos locais de trabalho partilham-se as angústias e dissecam-se horrores.
De repente, sinto que é urgente, a bem da saúde mental (pelo menos da minha) recuperar a esperança, reinventar a gargalhada. Lembro-me de uma leitura de menina, Sexta Feira e a Vida Selvagem, e sinto-me um pouco como o Robinson que, ao perceber que já não sabia sorrir, decidiu mudar a sua atitude. Estava eu presa nas minhas divagações, no meu tecido de memórias e futuro, quando ouvi a notícia do assalto às Finanças de Gondomar. No insólito, gargalhei com gosto! "Ladrão que rouba ladrão, tem 100 anos de perdão!"

terça-feira, 6 de março de 2012

Empréstimo

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.
Fernando Pessoa

O Amor

Em parangonas, estrategicamente colocado, um enorme cartaz gritava: "Veja até onde o Amor o pode levar!". Obviamente, entusiasmei-me. Uma viagem até ao pólo norte? Um passeio de gôndola em Veneza? Uma noite  no deserto? Umas férias na Patagónia? Um pacote de toneladas de felicidade ternurenta?...imaginei muita coisa, confesso. Deixei-me levar pelo sonho, ressuscitei os meus sonhos mais loucos e aproximei-me do cartaz promissor. Acho que no fundo-fundo eu antecipava uma desilusão e, por isso, avancei devagarinho saboreando o pode ser que até ao limite. Quando a distância entre a realidade e a promessa era nula, descobri que seria um Fiat Panda o Amor que me levaria algures. A desilusão, que o não foi, ofereceu-me uma valente gargalhada e uns minutos de boa disposição! Um dia, ainda compro um Fiat Panda (da Corgi Toys, claro!)

segunda-feira, 5 de março de 2012

Os pontos

Ela insistia: - Tinha pontos para gastar! A resposta vinha firme, não poderia utilizá-los se não no final de dois anos... E ela protestava: - Mas eu preciso agora e já tenho este contrato há imenso tempo! - A resposta, na ponta de uma unha/garra vermelha e brilhante, incidia nas letras miudinhas... Sim, ela já devia saber que há sempre letras miudinhas, que nunca as ofertas são o que parecem, que não há jantares grátis, que os favores e facilidades não existem... Mas, ainda que segura das sua certezas inócuas, insistia: - Eu preciso de um telemóvel novo e, se não é possível usar os pontos, vou mudar de serviço. Veio o supervisor com a resposta certificada, um não mais autorizado.
Saíu da loja irritada. Ainda no automóvel, abriu a carteira e encontrou os cartões: - uns prometiam pontos, outros descontos, outros crédito imediato, outros acessos privilegiados. Soube-lhe muito bem rasgar todos, partir em bocadinhos os mais duros, e lançá-los no cinzeiro de onde seriam aspirados directamente para o lixo. Estava farta de adiamentos, de promessas condicionadas, de ofertas envenenadas. Cansada de uma realidade cheia de plásticos para iludir a verdade, para entreter as dificuldades. Estava farta de comprar pão e entregar um cartão, de ir ao Supermercado e passar outro cartão. Estava farta, até, da publicidade daqueles que garantiam descontos sem cartões nem promoções...
Pontos? Só se, por azar, tivesse de recorrer a um cirurgião!

domingo, 4 de março de 2012

Benedita

"Uma Fazenda em África" é o título do intenso romance de João Pedro Marques. Tudo começa com a revolta de Pernambuco, com o sequente ataque indiscriminado a portugueses, mas tudo se desenvolve, depois, em torno de uma personagem feminina- Benedita - que cresce aos nossos olhos. Se a conhecemos menina, insegura e receosa, no Brasil, vamos vê-la tornar-se Mulher, segura e decidida, em Moçâmedes. Li este romance de um fôlego, sofrendo, chorando (acontece-me tantas vezes) e sentindo os odores de uma África que desconheço. Benedita não é a heroína perfeita, mas é a personagem humana. Erra, hesita, sucumbe, questiona-se e questiona-nos também. Com ela partilhei o vazio que as constantes partidas de quem amamos sempre causam, com ela passei noites olhando as estrelas em busca de uma resposta que, se calhar, está dentro de nós.
Andava eu viajando por África, aguardando o regesso de Peter, espreitando a negra protectora e mágica, quando fui interrompida pela realidade. Realidade medíocre de quem, sem nenhum valor real, se põe em bicos de pés, em sapatos de má qualidade (ainda por cima), para chatear os outros. Esbarrei, de rompante, com um mundo onde gente sem valor se gosta de empinar como os coiotes que Peter abatia com tiro certeiro.
Ah! como eu gostava de poder conviver apenas com a Benedita...

Lágrimas

Correm em carreirinho, picam os olhos, incham as pálpebras e sabem a sal. Surgem quando querem, às vezes por causa de uma palavra, outras vezes por uma paisagem, ainda também por uma dor, por coisa nenhuma até. As lágrimas envelhecem connosco, tornam-se dolorosamente adultas. Em crianças, secamo-las num instante. Trocam-se lágrimas por sorrisos, tristezas por alegrias, bastando para isso um colo terno, um beijo amigo. No entanto, quando as rugas começam a surgir, elas tornam-se acres e duradouras. Ao mesmo tempo, as lágrimas libertam-nos, lavam-nos a alma até.
Às vezes, o meu cão uiva num tom dilacerante. Tento consolá-lo mas concluo, sempre, que ele uiva assim porque não pode chorar.
Ainda bem que eu tenho lágrimas. Muitas!

sábado, 3 de março de 2012

Espelhos e Demónios

Para os orientais, sobretudo para os japoneses, o espelho é um objecto que permite afastar os demónios. Acreditam eles, ou acreditavam (no tempo em que se acreditava em alguma coisa), que os diabos são feios e, por isso, ao verem-se reflectidos se afastariam. Nunca tinha pensado nesta possibilidade, sem dúvida fantástica e útil, dos espelhos. Para mim, os espelhos são só denunciadores, violentos por vezes, de realidades pouco agradáveis... Mas, depois que lhes aprendi esta nova funcionalidade, olho-os com mais respeito. Gostava mesmo que funcionasse esta  ideia! Acho que, se isso acontecesse, passaria a trazer no bolso sempre um grande espelho. Qaundo me agredissem dsrespeitando a minha privacidade, quando me chateassem exigindo que compreenda o absurdo, quando me pedissem para cumprir desacertos, eu puxaria do espelho e tudo desapareceria! Porque, sinceramente, eu acho que os verdadeiros demónios estão cada vez mais perto de nós. Estão no nosso quotidiano com estatuto adquirido e, vezes demais, disfarçados de normalidade...

sexta-feira, 2 de março de 2012

Pastel de Nata

Ajeitou um pouco o corpo dorido, dobrou o cartão grosso com que enganara o frio húmido da noite e ficou olhando. A fila era longa, o linguajar plural, o odor intenso. Ele era a presença estranha, incómoda, a nódoa a manchar uma paisagem perfeita. Reparou no cuidado com que várias objectivas o evitavam, a foto devia ser perfeita, levando os fotógrafos turistas a mudar de ângulo. Também ele já fora turista, já tirara fotografias quase perfeitas, já fizera fila para comprar o verdadeiro pastel de nata. Sim, ele já tivera vida, emprego, sonhos cumpridos. Agora, vítima da idade (que chatice não ser ainda velho para reforma, nem jovem para novo emprego), ali estava, na rua, com o passado penhorado e o futuro adiado. Sorriu.
Recusava-se ainda a estender a mão à caridade. Doía-lhe o orgulho, magoava-o a humilhação e, por isso, tentava arrumar carros, carregar sacos de supermercado, fazer pequenas tarefas que lhe permitissem não morrer de fome. Continuava procurando uma solução: - Partir? Como, se não tinha nem como pagar o bilhete de ida?! Quanto mais pensava, mais concluia que morrer seria a melhor opção... Perdera tudo, morrer era a oferta que o seu país lhe fazia.
Afastou os pensamentos e voltou ao seu cenário agora diário. Tantos pacotes cheiinhos de pastéis de nata! Lera, uma leitura roubada num jornal de quiosque, que um dos muitos ministros garantira poder o pastel de nata ser um motor de desenvolvimento. Lera, também, a proposta de fazer pastéis de nata sem açucar, light?, e rira-se na sua descrança. Um mundo excessivamente preocupado com calorias e aberrações e, achava, pouco atento à realidade de pessoas amargas. Excessivamente light o mundo, talvez...

quinta-feira, 1 de março de 2012

OBRIGADA

Um blogue serve para muita coisa. Para desabafar, para opinar, para acompanhar, para chatear, e, sem dúvida, para comunicar. Hoje, é mesmo só comunicar que quero. Quero comunicar a todos os meus amigos, leitores, visitantes esporádicos, que me aqueceram a alma os muitos (imensos!) desejos de felicidades e parabéns que recebi. Cada um chegou especial, com ou sem presente, aconchegado num ramo de rosas vermelhas, acompanhado de uma foto especial, com palavras sempre especiais. Só para saber que tenho amigos, todos tão queridos, valeu a pena ter feito anos.
No entanto, tenho de deixar um especial obrigada carinhoso aos meus alunos que já não o são e, de longe, das suas vidas universitárias, não me esqueceram: - Para a Ana, Eduardo, Luís (plural), Catarina, Raquel, João, Teresa, Joana, Rita, ... TANTOS! OBRIGADA MESMO! Se fazer anos serve para aquecer a alma e nos encher de afectos com sentido, eu quero fazer anos todos os anos e não, apenas, de 4 em 4!