sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Li...

Não quero respostas, não quero certezas, não quero amanhã nem um dia... Não quero nada, para além da Poesia de cada amanhecer!
Nada, para além da certeza dos possíveis.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Emaranhados lógicos

Bem cedo, as ruas enchem-se de gente. Há chineses, árabes, paquistaneses, europeus, africanos, americanos, australianos, japoneses (muitos) e as linguas misturam-se criando, incrivelmente!, sentidos. Milhares de lojas, desde os omnipresentes chineses a Louis Vuitton e Chanel, dão cor aos olhares. Toda a gente parece apressada, os andares são rápidos e, curiosamente, chocam com os tempos passados nos cafés cheirosos em torno de uma cerveja ou apenas de um chá de menta. Há em cada esquina informações de destinos que a todos podem interessar,  a cidade é paradoxalmente lógica nos seus emaranhados de ruas, construída em paralelas e diagonais e, se nem todos os caminhos vão dar a Roma, decerto todos vão dar a algum lugar. Um ecrã gigante mostra a Tomatina, milhares de pessoas, em Espanha, lançando tomates e, meio-nus, milhares de homens lutando cheios de molho ketchup por fazer... É assim na grande cidade.
É assim, o emaranhado lógico das grandes cidades desta era a que, pomposamente, chamamos Modernidade...

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Leituras e Desilusões

Não ter nada para ler, para mim, é quase tão grave como imaginar a esquerda a governar o meu país! Só não é pior porque, normalmente, não ter nada para ler é um problema que resolvo depressa... Às vezes, resolvo tão depressa que sofro longas horas de más leituras. Foi, exactamente, o que me aconteceu ao comprar uma obra de Karen Blixen (essa mesma do inesquecível África Minha) intitulada Ironias do Destino. Abri o livro, instalei-me e preparei-me para a evasão que a leitura me proporciona.
Tenho um amigo que diz que, para males de alma, o remédio eficaz é uma bela praia, um bom livro  e um Gin loooooongo. Como não gosto de Gin, agarro-me à praia e à leitura... Só que, desta vez, a desilusão foi imensa. A obra é uma chatice completa, feita de banalidades, de gente muito boazinha e cheia de fé, de mulheres loiras e - ainda assim - inteligentes (por isso solteiras?) e muito felizes. No cenário da Noruega agreste, as personagens diluem-se em nada e o enredo nem chega para me distrair da lembrança dos fiordes que já visitei. Arrumei num canto o livro e fui buscar uma leitura repetida e nunca gasta. Com Helena Marques, uma vez mais, recuperei a confiança nos efeitos terapêuticos da leitura. A boa!

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Veuve Clicquot

Chegaram cedo, hora da bica se fosse em Portugal, largaram a correr a mala no Hotel e, de mãos dadas, correram ao Centro. Bruxelas era uma cidade conhecida mas, ainda assim, para ela sempre envolvente e empolgante. Lembrava a primeira visita, os morangos com chocolate na Grand Place, as caminhadas à procura do pequenino boneco de pilinha de fora, a rua sem saída onde uma menina faz também o seu xixi. Da primeira vez, tinham aproveitado bem a facilidade de transportes e Bruges e Antuérpia foram destinos escolhidos. Hoje, não. Os dois haviam escolhido Bruxelas apenas porque a ela encantava o ambiente intenso, a magia das ruas, os cheiros gelados e os enormes arranjos de flores por todo o lado. Ele alinhara. Que interessava o destino desde que ela lhe desse o braço? À noite, com um casaco confortável e ela festejando o facto de poder voltar a calçar botas - sempre detestara o calor - rumaram à rue des Bouchers. O inevitável tacho cheio de moules veio para a mesa e ele impediu o pedido dela. Não, Kriek Framboise, hoje, não. Hoje, noite de fantasia e sonho, só Veuve Clicquot!

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

27 de Agosto

Em minha casa, 27 de Agosto era, sempre, dia de grande festa! Vinham amigos, punham-se as mesas no quintal, preparava-se com antecedência o menu, enchia-se a geleira de sacos de gelo, verificava-se o número de guarda-sóis e desde cedo a agitação era muita. O meu Pai fazia anos e, contrariamente a muitos adultos, adorava comemorá-los, fazer festa, encher a casa de amigos e soprar as velas. Não me lembro, nunca, de o meu Pai passar longe o dia de anos. Não me lembro, nunca, de passar com indiferença o dia 27 de Agosto.
Hoje, sem ele por perto, penso nessas festas, nesses amigos que partiram, e sinto que fui uma privilegiada da ternura. Com o meu Pai, para além de tudo, aprendi o valor da amizade, a importância da alegria e a necessidade de festejar a existência. Hoje, sem festa, penso nele mais ainda e, em silêncio, peço-lhe que olhe por mim. Faz-me tanta falta!

domingo, 26 de agosto de 2012

Domingo

Comprou o Expresso, o Público também, e fez-se à esplanada. Gostava de ficar ali, protegido pelos óculos escuros, fingindo ler os jornais enquanto espreitava o mundo. Na grande cidade, o seu lugar de eleição, confundiam-se rostos, cruzavam-se silêncios. Ele escolhia sempre a mesa junto à janela e pedia a bica com canela. Gostava de roer o pau gostoso, lembrando as histórias que ela costumava contar, lembrando sempre leituras e viagens alheias.
 Hoje, domingo, havia mais casais maduros. Mulheres frescas, homens desportivos camisas de risquinhas e pólos Hugo Boss. Falavam pouco, os casais maduros, olhando, como ele, os vizinhos de mesa. Os jovens casais pareciam-lhe mais faladores, trocando beijos e toques  ousados, sorrindo muito também. Numa mesa maior, um grupo de raparigas, idades indefinidas, ria alto e dedilhava telemóveis. Impressionante a velocidade com que teclavam sms enquanto conversavam, ou bebiam as coca-colas carregadas de gelo. A ele, os constantes sms irritavam-no. Sentia, muitas vezes, que, com a loucura dos telemóveis, as pessoas falavam agora muito mais dizendo cada vez menos. Mas não queria rabujar. Queria, apenas, gozar a manhã fresca de um domingo mais. Estava ali, consciente do tempo, olhando e pensando. Por nada e por coisa nenhuma. Apenas porque estava vivo, gostava de café e era domingo.

sábado, 25 de agosto de 2012

Areia(s)

Enterrou os pés na areia e deixou-se ficar. As ondas vinham e partiam, a espuma ficava fazendo bolhinhas, e ela lembrava cantigas de menina. "Não vás ao mar Tóino, que o mar está bravo Tóino...." hoje, o Tóino poderia ir ao mar. Estava calmo, mar chão, com ondas certinhas e suaves. Hoje, o perigo era fora do mar, num mundo sem lugar para pescadores ousados, sem espaço para navegadores de sonhos. Hoje, as marés perigosas fazem-se de julgamentos precipitados, de condenações e arbitrariedades.
Viu os pés enterrarem-se cada vez mais na areia, e tirou-os célere desejando fugir à prisão a que a areia parecia condená-la. Se pudesse escolher, preferiria ser como as gaivotas que, do alto da rocha enorme, se lançavam em voos rápidos e corajosos sobre as águas.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

30 Anos

Há datas balizas, referências, na vida das gentes? Não sei. Mas sei que há marcas no tempo, idades que significam mais do que outras. Os 30 anos, uma data redonda, marca uma fase. Creio mesmo que marca o início, efectivo, da vida adulta, deixando para trás as loucuras que os vinte anos perdoam e justificam. Não pesam, os 30, mas chamam a atenção para o início de uma nova época e, às vezes, surgem os primeiros cabelos brancos a incomodar (ou não) a nossa imagem.
Mas fazer 30 anos é estar a entrar nos melhores anos da vida de uma mulher! É o tempo de poder, com alguma calma mais, gozar a família, a existência, o crescimento dos filhos que, normalmente, ainda não estão na idade terrível do armário (eu acho que devia ser do congelador). Lembro-me muito bem de ter feito 30 anos, há tanto tempo!, e, hoje, penso que há mulheres que têm muita sorte por os poderem festejar nos braços de maridos apaixonados, pedindo silêncio apenas para que as crianças não acordem...

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Engomar

Longe vão os tempos dos grandes alguidares cheios de roupa branca, lavada no tanque e corada ao sol, esperando a engomadeira. Então, enchia-se o ferro de brasas, o calor era insuportável, e a roupa saía direita, sem vincos, dura da goma e capaz (quase) de endireitar um corcunda!
Hoje, as coisas estão mais facilitadas e os ferros, com água em vez de brasas, com botões para borrifar e humedecer, são leves e fáceis de utilizar. Ainda assim, se há tarefa doméstica que abomino é mesmo passar a roupa. Estico de um lado, enfio o braço da camisa no suporte, aliso os ombros e, quase sempre, verifico o insucesso do meu esforço: - Fica sempre uma ruga, ou dois vincos, ou uma dobra inusitada!
Às vezes, penso que passar a roupa é um pouco como viver. Por mais que a gente se esforce por deixar tudo direitinho, por mais que se estique e endireite, há sempre rugas e vincos que se notam a olho nu...

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Mudanças

Quando, há uns anos, se atravessava o Alentejo, o olhar perdia-se no mar de searas ondulantes, nas ondas de calor que cobriam os campos de girassol, no horizonte longínquo apenas ponteado por um ou outro sobreiro solitário. Faziam-se muitos quilómetros sem se ver ninguém e eu lembrava, quase sempre, a figura da personagem da Aparição que se suicidara por já não ter mão para semear.
Hoje, a paisagem é outra! O Alentejo cobre-se de vinha, arrumadinha e alinhada, sugerindo obediência cega às normas das muitas troikas, verde e bem tratada. Mas, curiosamente (ou talvez não...) continuam a atravessar-se quilómetros de solidão e, nos olhos das gentes, a secura permanece.

sábado, 18 de agosto de 2012

A Barriga

Magrinha, de olhos escuros de mel, afaga a barriga que começa a notar-se. As velhas calças de ganga, justinhas a destacar a sillueta, já não passam na cintura e, pela primeira vez nos seus 27 anos, os vestidos surgem cómodos. Espera um filho.
O primeiro filho, desejado, esperado com ansiedade, surge com a concretização de um amor que deseja eterno. Os amigos dão parabéns, desejam uma hora pequenina, falam-lhe da beleza das crianças. Dizem-lhe que está linda, pousam a mão na barriga, brincam com os enjoos constantes, oferecem-lhe sempre o lugar mais confortável. Na rua, há lugares para estacionar, empinando a barriguinha, e no supermercado passa à frente nas filas. Em casa, a ansiedade do marido faz-se de mimo e ternura, os projectos são muitos, os sonhos de ser feliz não têm fim. Ela, Mulher, sente-se diferente e, feliz embora, não consegue explicar o nó que lhe aperta a garganta, a insónia que lhe enche as noites. Será assim, sempre, ser Mãe?

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Ditos

Que eu gosto de palavras, já não é novidade. Gosto de as enrolar, de as ver ordenarem-se para criar sentidos, de as desfiar a dar cor a emoções, de as arreliar para que contem histórias. Também gosto delas soltas, isoladas, e silabadas também. Talvez por isso, ou apenas porque em meias férias presto mais atenção a tudo- será que se ouve melhor em férias? - há uma publicidade na rádio que me faz sempre rir pelo absurdo. Apelando ao consumo no Pingo Doce (esse mesmo das promoções loucas), há uma voz feminina, creio que loira(ah!ah!ah!), que diz melosamente: ... agora, no nosso take away, refeições individuais para uma pessoa apenas a.... Nunca ouvi quanto custa a refeição porque fico colada ao individuais para uma pessoa. E se fosse individuais para familias? Ou individuais para três pessoas? Ou, melhor ainda, se fossem individuais para quatro amigos de ambos os dois sexos? Sim, porque qualquer absurdo é legítimo quando a ignorância, ou será mesmo estupidez?, impera. Numa das minhas fúrias, decidi nunca mais ir ao Pingo Doce. Mas, pensando melhor, desisti e continuo a ir... Afinal, num país como o meu, há individuos que não chegam a ser uma pessoa. Eu é que estava a ver mal a coisa.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Visibilidade

Há uma máxima da publicidade que diz que "o que não se vê, não existe". Deve ser verdade, é o eterno dilema entre essência e existência, mas, ainda assim, eu gosto do que não se vê, do que eu sinto e vivo só de mim para mim, do tempo secreto em que o meu eu dá o braço à minha pessoa numa conversa inexistente.
Cansa-me a necessidade de mostrar, de publicar, de revelar ao mundo coisas individuais e singulares. Cansa-me, às vezes, a visibilidade excessiva que alguns procuram e de que outros são vítimas. Manias, decerto.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Nossa Senhora

Talvez por ser mulher, de certeza por ser mulher, olho com muita admiração a figura de Nossa Senhora. Muitas vezes, humanamente apavorada, peço-lhe ajuda; algumas vezes, lamento a vida dela e, sempre, me revolto por ela ter visto morrer O filho. Como mãe também, imagino a dor de perder um filho como a maior que pode existir!
Hoje, dia da ascensão de Nossa Senhora, descrente de muitas das histórias (para mim, católica, lendas) da Igreja Católica, volto a olhar Maria. Sofreu, amou decerto, foi Mãe e, hoje, num dia que lhe é dedicado, deve temer por nós, mulheres também. Mulheres ainda espezinhadas, ainda excessivamente ignoradas.
Nunca acreditei na virgindade apregoada, (tenho uma teoria que não ouso revelar...), mas acredito mesmo que o Filho foi crucificado à frente dos seus olhos. Olhando à minha volta, vendo o que algumas mães, demais, fazem aos próprios filhos, assistindo à banalização do crime sobre um filho que se carrega no ventre, não resisto a desejar que seja lembrada (hoje especialmente) Maria de Nazaré.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Sonhos?

Liguei o computador e esbarrei com uma notícia: "Dois em cada três jovens sonha emigrar quando concluir os estudos superiores!" Ao contrário do que acontece com algumas notícias, desta vez não me indignei. Apenas me surpreendi com o facto de ainda haver jovens - dois em cada três - que ousa sonhar! Supreende-me que ainda haja estudantes portugueses com sonhos, com confiança num futuro que se avizinha cerrado e negro. Este país, este Portugal que é o meu, põe os licenciados a mendigar, paga humilhantes vencimentos a altos quadros, convida os jovens a sair do país. Ainda assim, há um em cada três jovens a pensar ficar por cá. Para quê? Porquê? Porque, acho eu, nós somos um país com vocação para sofrer...

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Praias do Norte

Com toda a certeza, não viria o Desejado. Sabia a lenda, conhecia os foros intrigantes do sebastianismo mas, com certeza, sabia que esse Desejado se ficara nas areias de Alcacer- Quibir. No entanto, o vento húmido, o mar revolto desvendando a espuma por baixo do denso cobertor de nuvens, fazia-a pensar na História. Dentro do café, com um polar bem quente sobre o fato de banho - afinal, era Agosto -, aquecia as mãos e alma num abatanado em chávena de loiça. No vidro embaciado a que se encostara, sempre o eterno vício da mesa do canto, escrevia palavras soltas. Vinham os filhos, os netos, as ausências definitivas, as temporárias também. Assim, numa letra tremida e escorrida, a companhia surgia, terna, mágica, carregada da força do mar revolto que, em breve, a receberia. De manhã, era sempre assim, ao fim da tarde também, mas, durante a meia manhã, aquela praia iodada e forte fazia as suas delícias. Lembrava, recusando o biscoito caseiro agora oferecido, a pergunta da filha pequena "Oh Mãe, porque vimos nós passar as férias ao mesmo sítio que o Inverno?", e sorria. Como explicar à miúda o seu gosto pelas manhãs fuscas, pelas tardes ventosas, pelas noites que permitiam, em Agosto, o conforto do cobertor?
E voltava sempre.
Voltaria sempre às praias do Norte!

domingo, 12 de agosto de 2012

O Príncipe Real

Começa pelas onze, o movimento. Quais lagartos do campo a que ela chama seu, as pessoas saem de casa, calções os homens e pouco  vestidas as senhoras, e a agitação começa.
Há quem se sente junto ao quiosque reinventado, (há de novo capilé e groselha, limonadas também), e os copos de plástico, moles, entornam-se com frequência azendo correr ais surpresos. O quiosque está na moda, é chic (chic a valer, diria o Dâmaso), e, sem bengaladas à mistura, as mesas vão-se enchendo. O pastel de nata, sim com canela, surge no sorriso diminutivo do empregado educado - aqui tem o pastelinho -, e as conversas vão-se fazendo de sugestões, afinal é Domingo!, reclamações, ah este país!, de sonhos, eu cá, se  pudesse.
O dia vai correndo, quente, e a feira próxima, só produtos biológicos, convida a uma caminhada. Há alface com lagartas, morangos com terra, oregãos sem cheiro, tudo garantidamente saudável...
Lá longe, persistente no abraço que Lisboa parece eternamente recusar, está o Cristo Rei. Em baixo, espaço de sonhos passados, o Tejo corre, hoje polvilhado de brancas velas.
Ela, com a bica em copo reciclável,  tenta, apenas, não queimar as mãos, não sujar a Lacoste.

sábado, 11 de agosto de 2012

Clandestina

Não tinha nif, perdera deliberadamente o cartão de cidadão, enfiara no fundo da gaveta das cuecas os cartões de crédito e de débito, desligara o telemóvel e fora tratar da horta. Precisava limpar as alfaces, havia lagartas enormes, e queria apanhar os tomates para congelar para, ao longo do ano, poder fazer as tomatadas carregadas de oregãos de que tanto gostava. Com medo das cobras que sabia inofensivas, calçou as botas, as luvas, pôs o largo chapéu na cabeça e fez-se ao trabalho. Sabia-lhe bem mexer na terra, ouvir o silêncio, sentir o suor a escorregar-llhe por lugares indizíveis.Era só ela consigo mesma, e estava bem assim.
De repente, alguém chamou. Ergueu-se entre arreliada e surpresa. Quem seria? Ela tinha-se certificado que deixara o mundo à distância... Lentamente, dirigiu-se ao portão. Um homem estranho, careca com franjinha, insistia em vender-lhe uma fotografia que, dizia ele, fizera da sua horta desde uma avionete. Face à irritada questão de quem o autorizara, o homenzinho, franjinha colada de suor gorduroso, afirmou que não precisava de autorização, lembrou-lhe que no google earth a horta também estava localizada e garantiu que a foto, vista aérea (claro) só custava 150 euros. Ela não comprou. Voltou ao trabalho irritada e revoltada. Porque não tinha o direito de ser clandestina no seu espaço? Que mundo maluco era este que a espiava do céu, da terra e sabe-se lá mais de onde?! Ao arrancar umas ervas encontrou uma toupeira atrevida. Olhou-a com atenção. Traria ela um periscópio de registo? Seria uma espia disfarçada? Teria Facebook? Se tivesse, poria um like?...

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Egoísmo

Junto à água, com o gato escanzelado (quem o manda ser esquisito com a comida?), ouvindo os pássaros e tentando não ligar a algum restolhar mais assustador, fujo do mundo. Não quero saber quantas Fundações vão fechar, desinteresso-me dos valor aterrador do défice das estradas de Portugal, calo o rádio onde um locutor anuncia a morte de mais um bombeiro. Tanta dor! 
As minhas preocupações insistem em fazer-se notar, mas eu mergulho para que se afoguem. Desfiam reflexões, essas impossíveis de anular, e recupero a voz da minha professora de filosofia. O Bem, o que é afinal? De olhos fechados, lembro Aristóteles, a sua definição de bondade "é bom aquele que procura a felicidade para todos", e discordo dele.  O que é todos? Como se pode procurar a felicidade de "todos" sem se ter a felicidade individual? Volta a voz da Drª Celeste, Deus agora como juíz e nós donos do livre arbítrio. Não queria a filosofia comigo, hoje. Queria ser capaz de esvaziar a cabeça, de deixar as emoções num cantinho do coração e apenas pensar que tenho de ir comprar whiskas para o gato escanzelado.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Congelação

À minha volta há mil fotografias. Em cada cómoda, cada estante, cada brecha entre os livros, há fotos. Reconheço o exagero, sorrio às críticas alheias, e continuo a colocar ainda mais fotografias. Devia, talvez, substituir algumas, eliminar alguns rostos, trocá-los por outros. Mas não sou capaz! As fotografias mantêm vivos os que partiram, devolvem-me infâncias passadas, recordam-me momentos felizes. São, de certa forma, o congelador das emoções. E eu, que detesto comida congelada e nem uso o micro-ondas, não resisto à tentativa de conservar os momentos idos. Malhas que a emoção tece?...

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

OBRIGADA

Eu, que não ligo nenhuma ao desporto e adormeci a meio da sessão de abertura dos Jogos Olímpicos, estou a vibrar com a medalha de prata que o Fernando Pimenta, 22 anos, e o Emanuel Silva, de 26 anos, alcançaram  na prova de K2 1.000 metros nos Jogos Olímpicos de Londres. Estes jovens merecem o nosso aplauso e, também, o nosso agradecimento. É que em tempos de desgraças, depressões e ameaças, um lugar destes faz-nos ganhar alento! Obrigada, por isso.

TALVEZ

Peguei nos restos de muitas vivências, varri as folhas de alguns sentires, empilhei memórias cheias de doeres. Tentei pegar-lhes fogo, mas não arderam. Lancei-as ao rio, mas não se afundaram. Então, construí um torreão, tranquei a porta de ferro e lancei a chave para o fundo da cisterna. Agora, só quero saber do que deixei de fora, deliberadamente, tecido de possíveis e decisões felizes. O resto? Um dia, um historiador desocupado (e curioso) fará o reconto. Talvez.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

A Portagem

Quase a medo, o rio continua a correr sob a velha ponte romana. Lá longe, no cimo do monte, está Marvão. Atravesso a pé a ponte, imagino outros passos, sandálias romanas, e sorrio à ideia de um centurião observando os corpos semi-nus daqueles que, agora, procuram a água fresca do rio.
Já não se paga portagem, a Portagem modificou-se e, agora, sedutora, oferece o abraço refrescante que lembro desde a infância. É bom pisar a terra minha, sentir carregar a energia telúrica e sentir que, apesar de muitos pesares, há raízes que nos definem, lugares que nos identificam. À minha passagem as pedras gastas não gemem, as flores não mudam de cor, as rãs não calam o coaxar ansioso. Tudo permanece igual, tranquilamente igual, assegurando-me, no silêncio de mil ruídos, que faço parte desta terra onde, agora, refresco o sangue cansado.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Romantismo

Mais do que velas ao jantar, lençois de seda, rosas vermelhas, caixas de chocolate em forma de coração, mais até do que uma corrente de pensamento, o Romantismo é uma forma de estar  na vida. Ser romântico é viver dando primazia às emoções, acreditar que, como disse António Damásio, "Sinto, logo existo!", entregar a razão às urtigas (mais ou menos) e cumprir, de certa forma, o carpe diem de Reis. Por isso mesmo, ser romântico não dá bom resultado nem leva a lado nenhum! Quem pode viver acreditando num orgão com forma de manga podre? Quem pode acordar com fé no calor humano e, só assim, enfrentar o inverno rigoroso da actual existência humana? Quem pode viver, e pagar contas, seguro apenas nos abraços quentes, beijos ardentes e caminhadas de mãos dadas?! Pois é, o Romantismo é uma forma de vida. Mas está completamente desactualizada, não dá felicidade e não permite a, contestada mas obrigatória, integração social. Acreditar no amor é descrer da vida. Mas como viver sem crer no mesmo Amor?!

Desilusão

Deixou que o sonho a conduzisse na descoberta das iniciais: - KC. Ken e Carol. E viu o casal cuidando das flores, caminhando devagarinho, sentando-se ali, de mãos dadas sempre, falando primeiro do futuro, depois dos filhos pequenos, logo dos netos bebés, depressa no passado longo. Adivinha o silêncio abruptamente imposto, as folhas caídas e, agora, as poltronas de madeira vazias, ali no relvado, no abrigo apenas ocupado pelos esquilos e  melritos ousados.
Que fariam os dois? Talvez Carol fosse investigadora, Ken economista. Ou, se calhar, ela era professora e ele farmacêutico. Não, isso não podia ser, ele cheiraria a remédios e assim a história quase perfeita ficava estragada. Ia acreditar que ela era advogada e ele escritor. Ali, naquelas poltronas isoladas no imenso jardim relvado, ela falar-lhe-ia de casos reais e ele, com calma e óculos de aros redondos, criaria personagens, limaria as arestas da vida chata e eternizaria páginas de possíveis. Se calhar, às vezes ela trazia biscoitos de gengibre e ele, cuidadosamente no bolso largo do casaco quente, uma pequenina garrafa de Porto português. Talvez, porque não?, os dois tivessem gostos parecidos e aquela mania de amolecer o biscoito no líquido doce e quente...
Olhou de novo as iniciais. KC. De repente, uma gargalhada veio destruir o sonho: King's College. Apenas a marcação da propriedade...

domingo, 5 de agosto de 2012

A espera

Escolhe a mesa próxima da praia, mesmo em cima da grade quadriculada que limita a esplanada, e espera. Olha em volta, corpos bronzeados, casais, crianças eléctricas pedindo gelados. Ao longe, para lá da barreira, morre aos poucos a praia, arrumam-se sacos, chamam-se os mais pequenos, enrolam-se toalhas e sacode-se a areia, agora incómoda. Os mais resistentes ousam um mergulho mais na água gelada e as gaivotas, impacientes por recuperar o espaço que julgam pertencer-lhes, mergulham indignadas. A água parece suja, marcas de barcos e gente, e simultaneamente espelhada. A espaços soa o combóio, assustador até, carregado de gente que ainda trabalha, de outros que roubam, dos que passeiam apenas. Ele deixa-se ficar, na mesa solitária, indiferente ao facto do empregado insistir em ignorá-lo. O que espera? Nada, porque nada há para esperar. O fim apenas, de mais um dia, e, se o empregado o permitir, uma caipirinha para ver o por-do-sol. Podia desfiar memórias mas, hoje, é mesmo a espera que desfruta.

sábado, 4 de agosto de 2012

Os Putos

Chegam à praia em bandos, t-shirts idênticas, bermudas coloridas pelos joelhos, óculos escuros berrantes (os rayban passaram de moda), com as toalhas enroladas nos ombros e andar gingão. Dizem palavrões, bem alto porque o objectivo é mostrar a segurança que não têm, e instalam-se perto do mar. Sai uma bola e começam os pontapés furiosos, Ronaldos eternamente falhados, incomodando quem tenta aproveitar o fim de tarde. Não pedem desculpa, mergulham para apagar o suor incómodo e olham, desejo mal contido, as meninas que, de biquini reduzido, procuram a água. Estes miúdos, nos quais não vejo - hoje -, a poesia dos putos do fado, são mal educados e incómodos. No entanto, o mesmo nadador salvador que não permite o guarda-sol gratuito junto ao toldo pago, não os vê, numa cegueira voluntária. O grupo, não terão  os miúdos mais de 14 - 15 anos, parece-me perdido. Procuram, todos, uma visibilidade que não têm, como se gritassem, em silêncio, nós estamos aqui! Será que este país dá por esta geração?...

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Os teus olhos

Há uma entrevista na SIC, feita (muito bem) pelo Daniel Qualquer-coisa, onde sempre surge a pergunta: - "O que dizem os teus olhos." Os entrevistados, claro, respondem quase sempre de forma correcta, ou conscientemente escandalosa, de acordo com o objectivo que pretendem atingir. Eu gosto das entrevistas, gosto dos ambientes escolhidos, da forma natural como as conversas correm mas, apesar disso, num instante esqueço o conteúdo das entrevistas... normalmente são artistas, não é assunto que me interesse muito. No entanto, o que dizem os teus olhos tem chamado a minha atenção e, frequentemente, dou comigo a tentar descobrir o que dizem os olhos de alguns dos meus colegas de existência humana. Tenho lido cada coisa... Há olhos que dizem exactamente o contrário dos lábios, há olhos que dizem ternura, há os que gritam socorro e há os que são mudos. São os olhos mudos que mais me assustam.
Queria que os olhos que me encaram nesta coisa estranha que é viver dissessem sempre cumplicidade, ternura, amizade, tempo e atenção. Eu quero cada coisa...

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Amantes

Ele tinha a vida dele. Ela tinha a vida dela. Cada um cumpria a sua rotina, seguia a vida possível, jogava o papel que os outros, o mundo, aplaudia. Às vezes,  ele e ela encontravam-se nos momentos impossíveis. Conversavam, partilhavam gostos, desmontavam realidades, tocavam-se e, quanto o desejo era mais intenso, tornavam um só os dois corpos. Gostavam de ver o mar, de partilhar uma colheita tardia, de se perderem nos Museus, de dizerem de cor a Poesia que amavam. Não faziam projectos, não tinham passado, a vida fazia-se-lhes  de instantaneos de agora, sem amanhã nem encores. Nunca  diziam adeus, nunca marcavam rotinas. Liam o olhar do outro, sabiam a que cheirava cada acordar e adivinhavam os apetites de cada momento. Apenas. Não eram felizes, sequer infelizes. Eram humanos. Amantes, dizia o catálogo social.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Ao contrário

Senta-se num lugar junto à janela e espera o início da viagem. Há apitos, avisos, tremores, e, aos poucos, o combóio ganha velocidade. Vai ao contrário, ela. O combóio segue no carril certo, acelera já, e ela vê tudo desaparecer ao contrário. Sempre lhe acontece o mesmo, sentar-se ao contrário, e ainda assim não aprende. Fecha os olhos, tonta já de ver tantos rabos a vacas, e pede um Pinot Noir. Chega-lhe fresco, frutado, e ela delicia-se, indiferente até ao facto da verde Inglaterra lhe surgir amarelecida. De olhos fechados sente a velocidade vertiginosa e torna-se parte dela mesma. Desfilam agora viagens passadas, colheitas tardias feitas Late Harvest sempre partilhadas, e lugares quentes sempre junto à janela. Como se a janela lhe permitisse manter de longe a vida, essa mesma circulando ao contrário, num sentido tão diferente do seu...