segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Os Carris

Bem sei que quase não há combóios em Portugal. No resto da Europa, pelo contrário, é um transporte eficiente e rápido. Como eu tenho saudades de viajar de combóio na Bélgica! Mas, em Portugal, as linhas desactivam-se e, tirando a circulação de textos sobre o TGV (sim ou não?), não há como viajar no tromba d'aço. Tavez por isso, as coisas saem dos carris com excessiva facilidade. Desde ontem que sinto que, de novo (incrível falta de originalidade) senti os afectos a descarrilarem e a dor a voltar. De repente, num fim de tarde que parecia calmo, a vida descarrilou e, com a força de um tromba d'aço descomandado, chegaram-me desilusões e desgostos. A hipocrisia e o cinismo, a cobardia e a estupidez, provocaram a mágoa e as lágrimas de doer. Vi uma jovem mulher, senhora de sonhos e Valores seguros, ser literalmente abalroada por um combóio de estupidez! Impressiona-me a forma como gente jovem  alinha tão facilmente pela lei da idiotice vigente.

domingo, 30 de outubro de 2011

A Hora

Mudou a hora, no tempo dos homens, sem mudarem os tempos a horas de se ser Homem. A manhã é hoje longa, arrasta-se, e eu encontrei no meu mail a carta que Ásia Bibi, uma mulher indiana, escreveu à família ao saber que será enforcada. Esta mulher vai ser morta por ser católica, por ser assumidamente cristã. A ser verdade, e eu creio que, infelizmente, é mesmo verdade, onde estão os Direitos Humanos? Onde estão os jornalistas que deveriam denunciar estes abusos? Como podemos aceitar que, em pleno século XXI, uma pessoa seja morta por professar uma determinada religião? Experimento uma revolta impotente que me faz sofrer. O que são as minhas angústias, os meus desesperos perante uma situação destas? Talvez seja possível fazer-se alguma coisa, talvez seja possível mobilizar vontades para impedir a morte desta indiana que, numa carta que me dilacera, se despede dos filhos e do marido. Talvez, quero crer, seja possível olhar para mais este crime e combater o egoísmo colectivo que marca os tempos de hoje, onde os homens, a se bel-prazer, até o tempo alteram.
É domingo, há sol, vou tomar um café com mar e levo os meus sentires feitos em esfrangalhos. Eu devia ser capaz de fazer alguma coisa!

sábado, 29 de outubro de 2011

Ondas

Piso terreno alheio. É esta Lisboa que não é minha (e onde por crueldade nasci), este mar que aprendi nos poetas, esta luz que enche os Fados de que gosto, que fazem hoje o meu sábado. Hoje, o mar é um lago, planície a arar por alfaias feitas de sonho e vontades. Germinam velas, navegam ligeirezas, levuras e ausências de raízes. Tomo o meu café olhando este terreno líquido e reparo nas ondas, sonhos de lonjura?, que morrem, desiludidas mas hoje ordenadas, na praia vazia. Morrerão os sonhos sempre, quando as palavras se fazem de espuma e a verdade não tem raíz. Morrerá a vontade quando os ventos, intensos, soprarem a desrazão colectiva. E o meu café sabe bem, forte, enquadrado na baía de Cascais onde sempre afogo sentires de muitos cansaços.
Hoje, as ondas são de vontades e o sol espelha de prata o mar de sempre.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Luz

Depois da chuva violenta, o dia acordou brilhante e lindo. É um tempo de cristal que envolve a minha cidade, a minha Serra, os meus sentires. Junto à barbacã, agora semeada de oliveiras cheirosas, há musgo e cogumelos bravos; na rua do Comércio cheira a castanhas e, à porta das tascas, as velhas tabernas de sempre, anuncia-se a jeropiga recente. Gosto de descer a rua, de saudar os meus conterrâneos de nariz vermelho e de sentir o frio intenso no rosto. É Portalegre com luz. Portalegre a tentar reagir, sobreviver, construir possíveis num tempo de impossibilidades. 
Escorrego no empedrado e rio-me com gosto. Se todas as minhas escorregadelas fossem assim, eu seria bem feliz... Recupero o equilíbrio e sinto o raio de sol, brincalhão e ousado, exigir os óculos escuros. Troco de óculos a tempo de contemplar o pedaço de Serra que o arco do ascensão emoldura. É a minha Serra a dizer que existe, que é forte, que está ali e brilha acreditando na magia da luz cristalina do novo dia. Faço-lhe companhia e acredito também. Acredito que sim, que é possível, que vale a pena, que a luta por uma nova luz ainda faz sentido! Hoje, canto ao optimismo e creio em novas possibilidades.
Hoje, reina em mim a força de viver! A culpa, creio, é desta luz lavada que cobre a minha cidade.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Direitos?

A noite foi de uivos violentos, janelas a bater, ramalhar iluminado por relâmpagos brilhantes. Acordei com um peso na alma, com uma tristeza funda e um desejo, inexplicável, de me sumir num escoador de água, daqueles sempre entupidos com muitas folhas. Mas reagi e fiz-me à vida, o que, para mim, significa dizer que desci à cidade e vim para a Escola. Esperavam-me 26 alunos de 12º ano. Como eu gosto destes miúdos! Falaram-me de Guernica, de Modernismo, de possibilidades e olhares cruzados.
Gosto de perceber que crescem, que o discurso é mais seguro, mais fluente, mais expressivo. A aula voou, em torno de Caeiro e de Álvaro de Campos, todos descobrindo sentidos e decifrandos mistérios. A minha alma aqueceu quando, ao toque da campainha, ouvi protestos de "já?!".
Seguiu-se o Curso Profissional. Agora, 10º ano, o assunto são as relações de palavras, os textos com marcas biográficas. Os miúdos a tentarem, com muita dificuldade, compreender e evoluir. E um só a impedir o trabalho, a procurar o protagonismo, a pôr à prova a minha resistência. Porque terá de ser assim? Porque não será possível, à Escola, encontrar saídas (ou saída?) para jovens de 18 anos que julgam só ter direitos, que crêem tudo poder fazer? Este rapaz, árbitro de futebol, procura na Escola uma ocupação de tempos livres. E os outros têm de o suportar, e nós, todos, pagamos. Será que está certo? Tenho dúvidas.
Tenho muitas dúvidas!

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Orelhas grandes e Suicídio

Uma criança, de orelhas grandes e dez anos, suicidou-se. Era vítima de bullying. Era, com certeza, vítima também de desatenção dos adultos, de indiferença talvez, vítima de uma rotina demasiadamente cheia de insignificâncias para deixar espaço às importâncias. Este miúdo suicidou-se no seu quarto, uma vez mais sozinho, procurando a fuga que deve ter considerado possível.
Não consigo deixar de pensar nesta criança. Não importa agora, é tarde demais, procurar culpados, mas, creio eu, é necessário pensar esta morte. O que está a acontecer nas nossas escolas, no nosso mundinho aparentemente moldado de acordo com normas sociais? Como se sentirá uma escola que permitiu esta morte? Sinto, como professora sobretudo, que urge pensar a dinâmica educativa com verdade e não apenas à sombra de parangonas pedagogicamente sonoras. A nossa Escola precisa de tempos de afectos, de tempos de comunicação, de tempos de ser, e não, como nos impõem, de tempos feitos exclusivamente de OPTE's e aulas de apoio. Se a família falha, e está a falhar (ou em mudança) a função da Escola tem de ser, também, a de desenvolver competências sociais, afectivas, facilitadoras (e promotoras) de integração. O suicídio deste miúdo, de orelhas grandes, tira-me o sono. Sei que há como minimizar estas situações comportamentais que constituem o bullying e desespera-me a passividade (e até indiferença) com que se encaram estas situações!
Urge fazer com que as fadas voltem à Escola, com que a magia dos afectos ganhe sentido! A Escola não pode ser um lugar de medo, onde a única forma de libertação é a morte!
Hoje, tenho muita vergonha de ser professora e queria pedir desculpa a todos os miúdos a quem, por vezes, não dei, ou não dou, o tempo com a qualidade necessária. Hoje, penso que ser professor deve ser, antes demais, estar atento e disponível, agir e mimar, proteger e ensinar. Hoje, tenho a alma tão negra como o céu plúmbeo que cobre a minha cidade e, dolorosamente, os meus sentires embrulham-se levados por um vendaval de emoções intenso.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Segredos

"Sei um ninho. E o ninho tem lá dentro um passarinho" - acho que é mais ou menos assim que começa um poema de Miguel Torga. Fala de um segredo, que não pode nem quer contar a ninguém, para poder ver, um dia, o passarinho voar. Eu não sei um ninho. Mas gosto dos meus segredos, dos que me ajudam a viver, dos que me fazem ser mais eu, dos inconfessáveis, dos antigos. Curiosamente, às vezes apetece-me contar os meus segredos ao papel, confiante que ao grafá-los os escondo, segura que ao dar-lhes forma os conservo. Será?

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A recta

É uma recta (deveria ser reta?), de bom piso, paisagem tranquila, radares escondidos e traiçoeiros, pouco movimento e horizonte largo, a que me leva até Arronches. Dantes, no tempo em que as rectas tinham a certeza dos "cês", Arronches era a terra dos porcos. Dizem que varas inteiras regressavam dos campos e cada porco seguia a caminho da sua pocilga sem nunca se enganar no destino. Dizem, e eu acredito, que as ruas empedradas da vila branca, em Arronches ainda predomina o branco, ficavam cheias de porcos ao final de cada dia.
Hoje, já não há porcos de quatro patas nas ruas, já não há varas a regressar ao pôr-do-sol, já não há razão para se chamar a Arronches a terra dos porcos. Hoje, as ruas estão vazias, os espaços entristeceram e, sempre que saio da escola pelas nove da noite, por companhia só tenho mesmo as lembranças das muitas estórias que sempre ouvi sobre esta vila linda!
Há pouco, circulando calmamente na recta (para mim com "cê"), com todo o tempo que a minha solidão me concede, deu-me para pensar nas coisas que se perdem nestes tempos de pseudo-modernidade. Hoje, esta noite, no meu canto sozinho penso que estamos a deixar morrer as coisas de ser. Lembro Caeiro, "as coisas não têm significação, têm existência" e concordo que, se calhar, a existência das coisas se faz, cada vez mais, de ausência de significação. Hoje, depois de circular na recta moderna, com os olhos embaciados de vazio, deu-me para pensar que gostaria de poder não sentir. Não pensar também me convinha.

Ei-la!

Faz carreirinhos no vidro da janela, lágrimas de alívio desalentado, criando pequenos lagos no parapeito. Vejo-a do lado de dentro, aquecendo as mãos na chávena larga de café forte, e sinto-a escorrer também dentro de mim. Fazia falta nos meus sentires, nos campos gretados e secos, na vida das gentes, creio eu. Olho os carreirinhos, ordenados, nascendo em gotas minúsculas e criando pequenas ribeiras grossas. Como a vida, os meus sentires, as estórias que nos tecem. Começa fácil, fininho, e vai-se enchendo de pingos gordos, de lágrimas salgadas, de desilusões e ausências, terminando num lago de águas estagnadas e baças onde, muitas vezes, nos tornamos (eu me torno) náufraga da vida.
Eu gosto da chuva! Gosto da autenticidade do Inverno, da fúria do vento que deita ao chão as nozes da minha nogueira, do frio que pinta de vermelho a ponta o nariz das minhas crianças. Gosto do cheiro da lareira, das romãs rubicundas, dos marmelos a cozer anunciando, na minha cozinha, o possível regresso de um D. Sebastião para construir um Portugal novo e com sentido mesmo.

domingo, 23 de outubro de 2011

O Almoço

Hoje, vamos almoçar fora. Vamos rir-nos da crise, vamos olhar-nos no fundo do ser, cheirar o mar e almoçar conversando. - Era um convite feito desafio e ela rejubilou. Sabia-lhe bem o carinho, o cuidado de uma proposta que, ela sabia-o bem, surgia apenas para lhe agradar, para a ajudar a recuperar a confiança numa vida que, vezes demais, fora mais madrasta que mãe. Por isso, ela arranjou-se com esmero, escovou com energia o cabelo longo e calçou os sapatos de salto alto. Ele merecia. Ele merecia a sua entrega, o seu abraço, a sua confiança. Ele era a presença firme, o apoio seguro, o leitor da escrita das suas emoções de doer e/ou sorrir. Ele conhecia o Restaurante que ela sempre elegia, sabia-lhe o gosto pelo mar intenso, tratava por tu as suas divagações fantasiosas, misturando viveres e sonhares, quando, descontraída e feliz, comia com deleite as ostras que adorava. Sim, iam almoçar fora os dois, amigos e cúmplices, confiantes num futuro de possíveis e vitórias, proximidades e entregas. Sempre.

sábado, 22 de outubro de 2011

Culpas

Vai de uns para os outros, num registo mimético que incomoda e nada traz de novo. Multiplicam-se os mails reencaminhados, ora contando escândalos financeiros da responsabilidade do PS, ora fazendo o mesmo com dirigentes do PSD. Agora, corre um mail acusando Lobo Xavier, entre outros nomes próximos, ou membros, do actual governo. Já nem leio.
Sinto um enorme cansaço desta politiquice que oscila entre a infantilidade e a estupidez que querem tornar colectiva. De repente, ninguém parece ser reponsável, ter a "culpa", pela situação a que o país chegou e que todos, culpados ou não, temos de enfrentar e tentar vencer. Entre mails que acusam, e outros que desculpam, o tempo escoa-se em coisa nenhuma e o país continua encalhado! Gostava de ver nos dirigentes, e nos portugueses como eu, mais seriedade e, sobretudo, mais vontade de ajudar a encontrar soluções! Também eu acho que os sacrifícios são duros demais; também penso que tanto aperto de cinto vai sufocar ainda mais a economia; também me parece que a fuga ao fisco vai aumentar. Mas, tenho a certeza, nenhum dos governos anteriores fez melhor!!
Não quero, recuso com a pouca força que ainda tenho, acreditar que não há uma saída para Portugal. Não acredito, não posso acreditar, que todos os políticos sejam corruptos e ladrões e, por isso, gostava que me dessem alguma paz e parassem com as culpas que, para mim, soam apenas a "desculpas de mau pagador"!

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Silvo do Nordeste

Ouve-se ao longe, no longe de tempo e espaço, o silvo do combóio que passa a caminho de Espanha. Dantes, passava todos os dias, ele ouvia-o nos campos, no aparar das searas, no acerto da poda, no limpar dos cachos da uva tinta. Era jovem, então, e muitas vezes pensou como seria seguir o silvo que cortava o ar tranquilo, que assustava os sobreiros e fazia estacar, de orelhas em riste, as lebres que viviam nos marouços. Aquele silvo, que angustiava e doía, seduzia-o sempre.
Mas resistira, permanecera ali, preso por raízes fortes à terra onde nascera, murchando com a secura da planície, vendo surgirem-lhe as rugas que acompanhavam o escurecer da terra vermelha. Bem cedo, tantas alvoradas laranja!, ouvia o silvo do nordeste. Do seu nordeste. Ouvia-o na pele, na alma também, e sentia ali o poema vivo que, tantas vezes, o balir das suas ovelhas musicava.
Hoje, o silvo vinha húmido, o outono desejado a chegar, carregava cheiros frescos e promessas de mudança. Quereria ele, homem de nordeste, mudar também?
- Talvez tivesse perdido a oportunidade de o fazer. Sim, a vida faz-se de oportunidades, sem cedência a hesitações...
Talvez devesse ter seguido o silvo que o seduzia há muitos anos já. Talvez houvesse, na vida das gentes como nos tempos dos campos, momentos únicos e irrepetíveis. Tinha assistido a tantas partidas! Partira ela, cansada do silêncio, incapaz de compreender a força de uma terra que não era dela, que tentara amar por paixão a ele. Talvez devesse tê-la seguido. Talvez o olhar dela, triste e húmido ao partir, fosse o silvo silencioso que deveria ter seguido. Talvez, pensava, um homem devesse ser capaz de ouvir os silvos que, tantas vezes, soam silenciosos nos afectos das mulheres.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Formação

A sala está abafada, cheira a gente, as mesas não foram limpas, o chão tem presenças de muitos miúdos, de muitas horas de aulas. O dia começa a morrer, e uma nova sessão de formação está prestes a iniciar-se. Os professores vão entrando, entre um telefonema a saber dos filhos e um boa tarde esgotado, protestando contra o calor e sentando-se. Vejo olhares curiosos, alguns descrentes, e recupero os meus ensinamentos pedagógicos. Dialogo, desafio, falo alto e tento criar pontes e unir margens. Às vezes, acho que consigo.
Acredito, apesar de muitos pesares, na importância da formação contínua, na eficácia dos momentos de discussão que nos ajudam, a todos, a desempenhar cada vez melhor a nossa profissão.
Não é fácil ser professor. Mas é fantástico ser professor. Muitas vezes, penso quem seria eu sem as aulas, sem as formações, sem as cumplicidades que vou tecendo, sem as frustrações que vou vencendo. A Sophia de Mello Breyner dizia que metade da sua alma era maresia. Eu, hoje, acho que metade da minha alma é docência. Hoje. Porque, se calhar, daqui a pouco, quando o sol raiar, vou achar que a minha alma se faz de destroços apenas.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Cansaço

Diferente de  Álvaro de Campos, o meu cansaço não é de tudo, não é superlativo, não termina nenhum poema. O meu cansaço faz-se de incapacidade de compreender, de solidão eterna, de medo de cada amanhã. Não me apetece mais protestar, não quero esforçar-me por aceitar, recuso com força o comodismo.
Quero o tudo. Ou o nada. Quero o prazer do paradoxo, a possibilidade do sonho impossível, a quimera da utopia. Quero ouvir os pardais ao vento, o ladrar dos meus cães na noite escura, as gargalhadas dos meus alunos face aos textos complexos. O meu cansaço veste-se do cinzento do momento que vivo e, olhando à volta, para trás também, não sei quando foi que a vida começou a descolorir.
Por isso, hoje, queria um poema a estrear, com rima livre, métrica irregular e sentido absurdo.
Agora, queria que o sono viesse vestido de azul, de camisa de dormir branca, bem pontilhado de estrelas macias, abrindo grossos portões para um sonho real.
Cansaço? Só de existir, nunca de ser.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Estacionamento

O sol amornou. Desistiu, talvez, teve medo da fúria colectiva, ensombrou-se com a tristeza vigente. Corre um vento um pouco mais fresco e, nos meus sentires, surge uma aragem que me dá ânimo e me ajuda a lutar. Sim, a lutar. A lutar nesta guerra de que se faz um quotidiano cada vez mais de possíveis minúsculos, de utopias eternas. "Pelo sonho é que vamos" - e eu sinto que não vamos mais. Que ficamos, estacionados com um preço altíssimo, num parque de existências que têm de caber no espaço sinalizado, no lugar que outros nos destinaram e onde não nos sentimos confortáveis.  Viver é isto?

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Rio e a Sveva

Saí tarde, tarde para os meus hábitos, mas é fim-de-semana e apeteceu-me conceder-me um café na cama, um banho longo, antes de caminhar ao encontro do rio. Mais uma vez, procurei a esplanada debaixo dos pinheiros, bem pertinho da Torre de Belém, lembrando outros tempos e outras glórias. Lembrando, também, os tempos em que os portugueses ainda olhavam para além das margens do rio, ainda tinham Valores e ainda perseguiam impossíveis.
Na esplanada, porque é cedo e porque há crise, troco a caipirinha por uma bica e resisto até ao pastel de nata. À minha volta há turistas, felizes com os 30 graus que o Outono lisboeta lhes oferece.  Olham com atenção o menú, e tiram fotografias a tudo. Sorriem muito. Há um casal, em lua de mel?, que troca carícias ousadas. A senhora que me traz o café reconhece-me de outras manhãs solitárias, de outras tardes também, sorri-me e mete conversa. Como é a escrita da Sveva? - Pergunta, apontando o livro que hoje me acompanha. Respondo que é ligeira, fácil, marcadamente feminia. Ela sorri, diz que gosta de ler, mas nunca tem tempo. Eu sorrio.
Responder o quê? Que leio compulsivamente? Que leio noites a fio? Que estou interessadíssima em saber se o dr. Ermes Corsinni vai ceder ao pedido da filha Tea ou se, concordando comigo, vai defender que os filhos não podem determinar as opções dos Pais, que a liberdade individual, tão indispensável, não é privilégio dos jovens e adolescentes? Enquanto me perco nas linhas da minha memória, a senhora deixa-me para atender os alemães e os italianos.
O sol já incomoda e eu agradeço a presença do rio, do mesmo rio que levou à glória os meus antepassados e, agora, refresca um pouco o sufoco em que vivo, trazendo um intervalo saudável num presente de angústia. Como a Sveva. Mas de outro modo.

domingo, 16 de outubro de 2011

Rankings e omeletes

Todos os anos isto acontece, todos os anos a ferida dói, todos os anos a humilhação ocorre, e eu não consigo habituar-me! Publicam-se os rankings das escolas e elogiam-se as primeiras, humilhando-se as últimas. A minha, felizmente, fica no meio. Se olho o início da lista, entristeço, se olho o final, alegro-me. Ficamos ali no meio, entre os bons e os maus, numa posiçao que, acho eu, deve querer dizer que somos assim-assim. Devia eu ficar contente, assim-assim não é mau, e no meu distrito somos dos melhores, mas não fico. Fico irritada, furiosa, danada mesmo. Porquê? Em primeiro lugar, porque acho incriveis estes rankings que comparam o incomparável. Gostaria que os autores dos rankings fizessem um retrato do modelo/tipo de aluno de cada uma das escolas. Depois, gostaria que divulgassem a forma como as escolas modelo selecionam os alunos que recebem.
Acontecerá como na minha escola, onde todos têm lugar, onde numa turma de 26 há quatro que são  NEE's (com necessidades educativas especiais)? Será que carregam os alunos que não querem trabalhar, que se desinteressam e arrastam nas salas de aula, eternamente, como nós somos obrigados a fazer? Duvido. O que sei é que, logo de início, só aceitam aqueles que vêm do Ensino Básico com notas elevadas, e que a disciplina é rigorosa.
Ora, pergunto eu, o que será mais difícil, mais digno de mérito? - Ajudar a ter dez valores, a concluir processos educativos e de socialização, jovens sem perspectivas, ou conseguir que alunos interessados e trabalhadores tenham boas notas nos exames?... pois é, estes rankings permitem-nos concluir verdades tão relevantes e reveladoras como as seguintes:
. Um meio socio familiar e económico elevado, favorece o sucesso educativo;
. Se se tabalhar só com alunos motivados e com firmes alicerces, é mais fácil obter bons resultados nos exames;
. A disciplina é importante no processo de ensino e aprendizagem;
. A Escola pública é mais Escola para uns, do que para outros!
Em suma, e pensando bem, ainda bem que há os rankings! Ficamos todos a saber que não se podem fazer omeletes sem ovos!!

sábado, 15 de outubro de 2011

A Bola

Era uma vez uma bola gorda, um pouco achatada nas pontas, com muita água, árvores, montanhas, areia, rios, flores, animais capazes de voar, outros de nadar sempre por baixo de água, e milhares de existências inofensivas a perfumar e a dar cor a essa bola. Na mesma bola achatada, partilhando a harmonia alheia, viviam uns bichos estranhos, cruéis, que se auto-intitulavam  humanos e tinham a ousadia de pôr nome a tudo, como se fossem donos da bola achatada, como se tivessem mais poder que todos os outros seres que, como eles, ocupavam a bolinha azul... Esses seres, que se julgavam inteligentes, tinham, reconheça-se-lhes, uma arte única: - Conseguiam destruir tudo. Mas tudinho mesmo! Era tal a febre de destruir que conseguiam, proeza inigualável, destruir-se a eles próprios.
Para que fosse mais eficaz a destruição, inventaram uns papeis coloridos a que chamavam dinheiro e, com a sua malvadez criativa, conseguiram que, por causa desses papéis, minúsculos seres indefesos passassem fome, e obesos seres luzidios ocupassem palácios. A tristeza começou a morar na maioria dos corações dos seres ditos humanos, os olhares escureceram, a raiva e o ódio ganharam vida e poder. A bola achatada, andava chateada mesmo e, por isso, resolveu castigar os seres impertinentes: - deu-lhes calor quando queriam frio, mandou sol em vez de chuva, fez a água varrer muita terra, lançou ventos furiosos, fez sair fogo do seu ventre. Mas os seres de duas pernas e uma cabeça geralmente oca, ou cheia de maldade, não tinham tempo para parar e pensar e, por isso, seguiam fazendo o mesmo de sempre: - Explorando os mais fracos, auto-destruindo-se, ocupando espaço demais na bola achatada que estava mesmo zangada. Um dia, um dia de inverno com muito calor, pessoazinhas nas praias e muitos papéis coloridos nos bolsos de poucos, a bola achatada deu duas voltas e decidiu: - Chega! Vou fazer destes seres perigosos seres com lugar apenas nas tristes memórias da minha existencia.
E pronto, mais duas voltas, mais fome aos milhares, mais injustiças aos milhões e lá se foram os terráqueos idiotas. Os outros seres, viveram felizes para sempre.
Às vezes, há estórias terrivelmente reais.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Maria Francisca

De caracóis negros e olhos enormes, pediu: - Tia, dá-me uma boxe! No início, nem compreendi. O que quereria a minha menina, a minha sobrinha querida, para assinalar os seus três anos? Uma boxe? Sim! esclareceu - para poder ter um cavalo a sério no meu quarto. Expliquei à Francisca que não podia ser, e fiquei a pensar em muitas coisas que não vão poder ser ao longo da vida dela... se eu pudesse, dava mesmo uma boxe à Maria Francisca.
A minha sobrinha faz as minhas delícias. O olhar escuro e doce, as respostas prontas, o pedido terno oh tia, empurra-me até às nuvens, tornam o meu dia a dia mais colorido e com sentido. Esta miúda devolve-me o Bernardo, o meu primeiro sobrinho, e recordo a noite de chuva, nevoeiro cerrado, em que me fiz à estrada para vir, a 12 de Novembro de 1979, ver o menino acabado de nascer... A Maria Francisca faz hoje três anos. Não vai ter uma boxe, mas eu queria poder dar-lhe uma mão cheia de afectos e magias para que nunca se sentisse sozinha ao longo da vida. Agora, numa noite em que a lua muito cheia e grande torna diferente a minha insónia, penso como seria bom se a Maria Francisca nunca fechasse a janela do sonho para que, sempre-sempre, o Peter Pan e a Fada Sininho, a magia e ternura, a pudessem acompanhar.
Não vou poder passar o dia de anos com a Maria Francisca, mas tenho-a comigo sempre!

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Receios

A minha alma é triste como um sobreiro amputado. Podia ser Caeiro, o guardador de rebanhos, se ele tivesse vivido no Alentejo. Mas não é Caeiro. Não é poesia sequer. É, apenas, a minha alma a escurecer, por antinomia ao sol intenso de uma natureza desordenada.
Olho, procuro ver, e, talvez ofuscada pelo sol nu, não compreendo o que encaro. Doem-me os pensares, tremem os sentires. A minha alma fecha-se como a tartaruga, mas a casca parece não resistir.
Chovem pedradas moles, feitas de palavras negras, que me tornam os olhos fontes. Vivo. Ou não vivo e, apenas, vejo a vida passar, faço escala nas muitas estações e vou deixando, no percurso, a minha bagagem real, portadora de um bilhete que não comprei e que, exigem-me, devo apresentar ao cobrador. 
Um dia, sei-o bem, vou chegar. Será a última estação e, temo, não reconhecerei a paisagem, não serei capaz de identificar os espaços onde fui perdendo a bagagem.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ternura

Olha-me com olhos doces, ternos, conhecedora que é da minha mágoa, do meu desejo contido, do meu sofrimento diário. Recebe-me de braços abertos e deixa que feche a porta para enfim me encontrar no meu mundo protector. Quando venho de longe, noite já, tento descobrir a presença querida no meio do arvoredo, pequena, mas tão minha. Sabe-me bem chegar a casa. Fazem-me companhia as fotografias de muitos momentos bons, os livros a que sempre retorno, as paredes onde, nalguns lugares, a tinta do meu amarelo alentejano já caíu.
A minha casa, o meu espaço, o meu ambiente, formam o casulo onde queria ser eternamente larva, de onde desejaria nunca ter de voar, borboleta estonteada em volta, tantas vezes, de fogo fátuo.

À Mesa

Com muito cuidado, combinando a cor dos guardanapos com a toalha, acertando o lugar do copo de vinho bem à esquerda, pôs a mesa. Sempre tivera aquela mania, o gostar da mesa bem posta, da loiça herdada, dos pormenores insignificantes como o cestinho individual para pôr o pão. A vida atraiçoara-a muitas vezes, impusera-lhe alterações de hábitos, mas ela preservara o gosto pela mesa bem posta, pela conversa em torno da refeição. Com os filhos jovens sempre recusava a moda do tabuleiro, obrigando-os a sentarem-se juntos, pelo menos ao jantar, e gostava de saber de cada dia, de espreitar os olhares, de sentir, como dizia, a pulsação à família naqueles momentos.
Muitas vezes resolvera situações complexas também em torno da mesa. Combinava um almoço, o jantar era para a família, sempre que um dossier se apresentava mais complexo, mais difícil de terminar.
Com ele, sempre mantivera o hábito saudável de, sozinhos, pelo menos uma vez em cada mês, sairem para comerem junto e se reencontrarem, muitas vezes perdidos nas próprias rotinas. Agora, eram só os dois, o tempo sobejava, mas ela punha a mesa com carinho, mantendo o lugar dele na cabeceira, como sempre, o dela ao lado, permitindo-lhe ver o jardim e tocar na mão onde sempre se apoiara. Em breve, ele chegaria. E o bolo de noz estava a arrefecer, o caldo verde fumegava, e o peixe, aromatizado com ervas intensas, aguardava no forno. Sentou-se na velha poltrona e fechou os olhos. Lembrou outras refeições, tantas, e pensou que não podia esquecer-se de reservar a tal mesa, exclusiva e eterna, junto à janela, naquele Restaurante onde sempre a força do mar a impressionava.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Última Sessão

Durante 25 horas (arrumadinhas em sessões de 3 ou sete horas) trabalhei com colegas de outras escolas nos projectos de Educação Sexual. Saía de casa depois de um dia de trabalho, aos sábados logo de manhã, por vezes, e discutia propostas, sugeria processos, apresentava metodologias, exemplificava actividades várias. Faziamos trabalhos em grupo, partilhávamos opiniões e experiências, e por duas vezes - sábados...- almoçámos todas em torno de mesas grandes, bebendo sangria e, quero crer, crescendo profissionalmente.
A caminho das formações, 25 horas é muita coisa, atravessava o meu Alentejo e, muitas vezes, tinha inveja das vacas que, tranquilamente, pastavam ou caminhavam, lentamente, ancas a abanar, sob os sobreiros imponentes. Pensava, naquelas conversas longas que muitas vezes tenho de mim-comigo, que as vacas tinham muita sorte porque não tinham de preparar formação, não tinham de correr de um lado para o outro, não tinham de tentar escapar aos constantes radares da brigada de trânsito, não tinham de aturar bois de incompreensão, e nem sequer tinham de vir aflitinhas para fazer xixi quando, já tarde, a casa me parecia incrivelmente longe. (Claro que as vacas serão abatidas, mas também eu morrerei e, o que é pior, eu tenho consciência desse facto.)
 Hoje, agora, noite cheia de luar lá fora e de insónia agitada cá dentro, já não tenho inveja das vacas. Porque eu criei laços com as minhas colegas, cresci com elas, fiz amizades, e tenho, a esta hora tardia, memórias e recordações para acompanharem a minha insónia, e as vacas não conhecem a força dos afectos, o sentido das cumplicidades.
Ontem, há umas horas, terminou a formação em Vila Viçosa. Despedi-me das colegas e já tenho saudades! Agora, quando, uma vez mais, não consigo dormir, lembro-me da atenção da Teresa, da gargalhada da Rosalina, das histórias da Assunção, da fragilidade da Sofia, da curiosidade da Lisete e, sobretudo, da disponibiidade de todas para me ouvirem e trabalharem comigo, aceitando as minhas ousadias, confiando nas minhas competências. Assim se devia, sempre, fazer a Escola: - De afectos, cumplicidades e teias de confiança!

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O Melhor

Para ti, o melhor. Para ti, o sorriso exclusivo, a presença atenta, o presente sempre. Para ti, o meu telefone sempre disponível, o meu abraço sempre forte, o meu beijo sempre intenso, a Verdade sempre fácil. Para ti, a aceitação de cada convite, a concordância com cada proposta, a partilha de cada ideia. Para ti, a realidade contada a cada anoitecer, a ternura murmurada, o braço disponível. Para ti, o sim eterno, a atenção permanente, as primeiras rosas colhidas. Para ti, a melodia que nos enlaça, o passo certo, o ritmo envolvente. Para ti, a surpresa do novo lugar, mesmo quando eternamente repetido. Para ti, o despertar sorrindo, o tabuleiro pronto, a cama vestida de novo. Para ti, o poema recortado, o verso dito de cor.
Para ti, o melhor. Só assim, o Amor.

E as pessoas?

Quase todos os portugueses acima dos 40 anos sabem de cor alguns versos da velhinha Balada de Neve, de Augusto Gil. Não sei se este poeta terá escrito muito mais, nada conheço dele, mas da Balada da Neve, a cheirar a caridadezinha e a torradas, lembro-me muitas vezes. Hoje, tenho andado a ouvir dentro de mim, numa repetição que cansa porque não é desejada, o verso "(...) mas  as crianças Senhor, porque lhes dais tanta dor? porque padecem assim?". Na minha cabeça, o verso sofre adaptação e soa "Mas as Pessoas, senhores, porque lhes dais tanta dor, porque as maltratais assim?!".  Porque eu sinto que este momento político está a matar as pessoas, está a ignorar o facto de uma sociedade só fazer sentido se houver pessoas, e existe (deve existir) por causa das pessoas! O mundo actual, o mundo europeu, Portugal na linha da frente, está a impor às pessoas realidades  sem  justificação. Sinto na pele, na alma, na carteira, nas emoções, nos afectos, nas relações com os outros, a violência destas medidas absurdas que querem que aceite como justificadas e necessárias.
Talvez sejam necessárias. Mas, de certeza, não são justificadas. Nada pode justificar a destruição da humanidade, o ataque ao essencial de cada um de nós, a desvalorização do sentido real da organização social. Até quando seremos nós confrontados com mais cortes, mais impostos, mais aumentos, mais dor? Um dia, tudo vai estoirar...

domingo, 9 de outubro de 2011

Singularidade

Diferente, sozinho, esquecido, abandonado? - talvez-, junto a uma casa que, triste e escalavrada, suporta um grande cartaz anunciando que se arrenda, está o girassol. Passo por ali diariamente, olho a casa, lembro-me dela habitada, uma família conhecida, muitos filhos, ninguém ficou, e reparo no girassol redondo. Cresceu sozinho, selvagem, diferente. É redondo, lembra-me as esponjas marinhas, é alto, é lindo, e é único. É esta força singular que me impressiona, que me faz sentir na flor uma presença quase humana. Este pé amarelo, a quem ninguém parece querer, grita-me na sua imponência que é um girassol, que sabe bem o que quer, que continua vivo, lindo, cheio de energia e de cor. Grita-me, do alto do muro da linda casa que ninguém quer, que é possível fazer vingar a singularidade, que vale a pena impor a força da individualidade.
Onde se apoia a esponja amarela? No seu caule de raízes fortes, nas folhas que preservam a originalidade, não foram podadas, na certeza de que, fortemente seguro a uma terra que todos desprezam, quer continuar diferente, crescendo e esticando-se até tocar o céu.
Este pé solitário, comove-me. Ensina-me, também.

sábado, 8 de outubro de 2011

Silêncio

Oiço o silêncio. É boa a calma da noite, o abraço morno do descanso de um mundo que, sinto-o, está esgotado e a sucumbir. Embrulham-se-me os sentires, cruzando-se com existires que me fazem tremer. É mais um sábado, mais um dia a haver, mais trabalho, mais esperança - sempre a esperança - de colocar uma marca, um sinal positivo, neste fazer de vida que nos aproxima do fim. O fim. A libertação, a saudade certa, a segurança de, será?, deixar de sentir. Ecoa em mim Pessoa:  "Tudo o que faço ou medito, fica sempre na metade. Querendo, quero o infinito, fazendo nada é verdade".

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Quando o mundo se une para nos/me tramar

O Rui Veloso canta um poema onde diz que não é fácil ser jovem porque, às vezes, parece que o mundo inteiro se une para os tramar. Apetecia-me telefonar-lhe a sugerir que alterasse a letra porque também eu, adulta, sinto que, às vezes, o mundo se une para me tramar. E fá-lo com requintes de malvadez, conjugando acções num mesmo dia, para que não me esqueça do seu poder. Sinto-me como se viesse contra mim um exército fantasma para me azucrinar a existência.
Ontem, foi um dia assim. Comecei com um aluno agarrado ao telemóvel qual tartaruga à carapaça, circulei 20 kms atrás de um camião espanhol a deitar fumos mal-cheirosos, e acabei a tarde a tentar trabalhar num espaço onde a sala estava quente e suja, o computador não abria os meus documentos (incompatibilidades de sistemas), a internet não existia e, logo ao início, dois colegas foram embora por não estarem com disposição (nem ousei perguntar disposição para quê...). Como canta o Rui Veloso, voltei para casa na companhia do meu Tontom e certificando-me que não havia mesmo estrelas no céu.
Agora, quando já devia estar a dormir bem descansada, estou com uma espertina irritada que me impede de sossegar! Eu tenho desenvolvido as minhas próprias defesas às desilusões e aos contratempos - que remédio! - mas, às vezes, ainda acho que o mundo inteiro me quer tramar.
Talvez seja presunção minha pensar que o mundo se vai incomodar comigo, mas ao menos esse direito ninguém mo tira!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Vidro Limpo da Janela Grande

Acordam abraçados. A janela grande, o vidro espesso, impede a entrada do calor excessivo e ficam ali, dedos enlaçados, deixando o tempo correr. Há palavras soltas, sem fazerem conversa sequer, saltitando no quarto em desalinho, tentando, em vão, arrastá-los para a realidade. Negam-na. Vivem o sonho.
Têm o vidro, estão protegidos, e o abraço prolonga-se no desleixo cómodo. Lá em baixo é o mundo - "metade de nada" - e eles têm  o tudo naquele acordar de novo. Não despertam, acordam para o novo possível, para a nova oportunidade, para o sonho que recuperam, e não há culpas, não há remorso, há só o momento. E o vidro. O vidro sem marcas de dedos, sem presenças de outros passados, protegendo-os, preservando-os e, simultaneamente, mostrando-lhes que, lá longe, há o mundo, o quotidiano, esperando por mais um acordar. Ela tem os cabelos despenteados, soltos nos lençois imaculados, e ele descansa a mão na coxa abandonada sobre a sua. Os relógios avançam, as palavras voltam, agora procurando sentidos. É o mundo a chamar, a exigir sempre a visibilidade que não desejam. Ele levanta-se primeiro. Ela segue-o. Olham a existência alheia e, mudos, sentem crescer à sua volta o vidro invisível que sempre os protegerá. Sabem que serão só dois, numa cumplicidade total, numa teia inviolável. Ah! É bom poder recomeçar, é bom poder acreditar que o novo dia nasce, de facto, com um mundo a estrear.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Dia do Professor ?

Deveria eu estar hoje de parabéns, estar em festa, ir passear e celebrar o dia do professor. É que eu sou professora há já 28 anos!
Só que, ultimamente, tenho vivido experiências profissionais tão traumatizantes que não me apetece festejar.
Eu acredito na importância do que faço, esforço-me por fazer o melhor que sou capaz, não fujo ao trabalho, vou com os alunos descobrindo a vida, construindo saberes. Com eles, fui já até Bruxelas, Paris, Estrasburgo, Bristol, Stavanger (Noruega), Espanha, Itália, Porto, Lisboa, Coimbra, sei lá mais onde. Com eles vivi  (e vivo) alguns dos melhores momentos da minha vida. Com eles já passei, com erros eventuais da minha matemática deficiente, cerca de 9125 dias, 219000 horas. É tempo!!
Não é dos meus alunos que me queixo. Eles ouvem-me, creio que me compreendem, tecem laços comigo e deixam-me saudades quando partem. Às vezes, de longe, procuram-me e eu fico sempre feliz por poder reencontrá-los. Ser Professor, para mim, é fascinante, é descobrir sentido para a vida, é poder ajudar gerações a serem Pessoas inteiras, é ser agente de um Humanismo cada vez mais necessário no mundo.
No entanto, desempenhar a profissão de professor, hoje, em Portugal, é ser-se humilhado, é sofrer, é ser-se capacho de uma sociedade acéfala e sem nenhum respeito pela cultura e pelo saber - Como poderia respeitar-se o que não se conhece? .
Eu hoje não estou a festejar nada. Porque o meu ser Professora não tem nada a ver com estas celebrações hipócritas e carregadas de banalidades.
Hoje, neste feriado, eu esgoto o tempo preparando aulas, criando textos e, para me homenagear, logo à noite vou trazer para junto de mim todos os verdadeiros professores que conheço, vou trancar a porta dos sentires aos outros, e nessa boa companhia vou rever (pela centésima vez?) o Clube dos Poetas Mortos!

República

Não sou monárquica. Não por ser crente nas vantagens da República, mas, e apenas, porque, para mim, a Liberdade é fundamental e, assim, não posso aceitar que um indivíduo nasça condenado a ser Rei, ou súbdito, ou moço de estrebaria ou seja lá o que for. Para mim, cada ser humano deve ver preservada a sua liberdade de escolha e não imagino o que seja nascer com um destino já  (relativamente) traçado.
No entanto, não consigo deixar de achar ridícula esta república portuguesa e, mais ainda, estes festejos ocos de sentido. Afinal, festejamos o quê? A liberdade que os republicanos durante mais de 40 anos nos confiscaram? O sucesso de um país à  beira da bancarrota? A democracia feita de opacidades e injustiças? A mendicidade crescente nas ruas? A tristeza de um povo que, embora sem jugo real, continua de olhos postos no chão?
Hoje, bem cedo, encontrei a banda da minha cidade (zinha) tocando na rua. Iam alinhados, botões reluzentes, fizeram-me lembrar um fado cantado pelo Nuno da Câmara Pereira de que gosto bastante mas, simultaneamente, senti que aquela música não me alegra.
Festejar a república? Nem a das bananas, porque a Madeira me faz chorar...

Disparates - Só! (Também tenho os meus direitos)

Na minha Serra, lá mesmo em baixo quase a entrar na cidade, fica a Fonte dos Amores. Agora está seca, a água não corre, mas o espaço envolvente não está abandonado, um eufemismo para dizer que está ignorado, e ainda existem bancos de pedra, candeeiros de ferro e, claro, os Amores. Quando desço a Serra, quase todos os fins de tarde, vou até junto deles e sento-me para recarregar as baterias que gastarei na subida. Hoje, olhei para eles e reparei que até nas estatuetas os papéis da mulher e do homem são distintos. Fiquei satisfeita, porque eu, Mulher, acho que ser Mulher é um privilégio e, por isso, gosto quando vejo que a Arte reconhece a diferença.
Há coisas só de Mulheres, e coisas só de homens (já oiço os protestos indignados das feministas ferrenhas...), e as coisas de Mulher denunciam qualidade, subtileza, refinamento, que as coisas de homem (as maiúsculas e minúsculas não são acidentais) não têm (não sei o que têm as coisas de homens). Para mim, homens e Mulheres são diferentes e pronto. Não há melhores nem piores, mas há diferentes!
Nesta estátuas, a água (quando corria) estava mais próxima da boca do homem do que da da Mulher. Ele bebia primeiro, considerava-se o mais importante. Quantas vezes isto não acontece ainda? Ainda hoje, séc. XXI, há homens, e não são poucos nem pertencem a minorias ditas socialmente excluídas, que julgam que a Mulher lhes deve obediência, que devem ver sempre cumpridos os seus desejos. Felizmente, para a paz do mundo, as Mulheres conseguem, quase sempre, desobedecer-lhes em obediência cega... 
Faz-me confusão como, estando, aparentemente, a mulher tão próxima do homem, socialmente tão igualados nos direitos e deveres, na prática ainda há tantos homens a matar a sede antes das Mulheres.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Revolta triste

Eu sei que a idade, e a vida, me deveriam ter já ensinado a aceitar tudo sem revolta nem espanto. Devia ser capaz de manter o distanciamento, de encolher os ombros e sorrir face às aberrações do quotidiano. Devia. Pois, eu devia muita coisa, mas não consigo!!
É tarde, a noite está escura, e eu estou aqui teclando o meu desalento, a minha revolta, a minha frustração também. Eu não consigo aceitar, simplesmente aceitar, que o meu país me force a desempenhar mal a minha profissão, a pactuar com burlas que apelidam de educação.
Ontem, vivi uma situação profissional que nunca vou esquecer! Exigem-me que finja que ensine, mas que, de verdade, reduza ao mínimo os níveis de desempenho; exigem-me que pactue com uma formação profissional que deve ser, parece, apenas uma ocupação dos meninos. Dão-me uma turma de um Curso Profissional com 26 alunos, onde há, no mínimo, quatro indivíduos sinalizados como tendo necessidades educativas especiais (NEE) e querem que eu os integre, que os faça progredir (ainda que não aprender). E eu não sei como fazer isto. Nunca, no meu processo de formação, já longo, aprendi como ajudar alunos com estas caracteristícas a aprender e, com certeza, há-de haver estratégias específicas para o fazer. Mandam-me dar aulas de apoio, mais do mesmo..., e eu sei que essa não é a estratégia adequada!
Será que estes miúdos têm culpa das deficiências que têm? E eu tenho culpa de não ser competente nestas áreas? Sinto que o meu país desaprendeu a Verdade, esqueceu o humanismo e se viciou no faz de conta.
Sinto-me, profissionalmente, frustrada. Sinto que estou a desempenhar mal a minha função e isso revolta-me.
Dizem-me os colegas e os amigos que me conforme. Que de nada serve a minha irritação, a não ser para me consumir. Eu sei que têm razão. Sei que a minha revolta de nada serve, que estes miúdos especiais vão continuar a ser enganados por professores - EU - que fingem que os fazem aprender! Que os outros, os que querem mesmo ser profissionais, vão ficar aquem das suas expectativas, mas, mesmo sabendo tudo isto, sofro horrivelmente!
São quase 4 da manhã e o sono não vence as lágrimas que me atacam.
O meu país é um mau país!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Vulgar

Todos os domingos, pela manhã, faziam aquele percurso, íngreme, e sentavam-se, ora envoltos na samarra grossa, ora abanando-se com o leque espanhol, vendo o mundo de cima. Um bocadinho de mundo, do seu mundo. A conversa começava sempre com um silêncio longo, para recuperar o fôlego, para arrumar os sentires, para eliminar as repetições, para selecionar o tema, para se sentirem vivos, ali, ainda. Se lhes perguntassem há quantos anos repetiam a mesma subida, nenhum dos dois saberia dizer. Nem lhes interessava saber. Sabiam que fora um dia, depois de vidas distintas, de passados cumpridos em lugares diferentes, que se tinham encontrado e unido. Tinham, os dois, a vida, o resto dela, livre para cumprir a gosto, ou a possível?, e, fazendo-se surdos à crítica colectiva, virando as costas à má-língua abundante, tinham acordado, uma manhã, abraçados e unidos. Desde então, não mais se tinham largado e, sentiam-no, eram um só desde sempre. Pelo menos, desde que o sempre tinha sentido. Aquele banco, aquele lugar, era o seu ponto de oração, o seu lugar de fé nos possíveis. E subiam sempre, deixando o carro longe, a velha calçada que a fazia torcer os pés e apoiar-se nele.
Outra vez ali estavam. Ela encostada a ele, calados, vendo lá em baixo a vida a acordar. Era muito cedo, apenas viam as costas das águias, o voo dançado das folhas e algum fumegar nas chaminés distantes.
A conversa surgiu então, agora feita de palavras quentes, murmuradas quase. Desfolharam a semana, as diferentes profissões, as preocupações comuns, a crise crescente e assustadora. Era bom estarem de acordo muitas vezes, como era bom discordarem muitas vezes também. Ela, sempre ela e o romantismo exagerado, beijou-o ternamente murmurando - "desculpa a vulgaridade, perdoa a banalidade, não te rias da saloiice, mas eu amo-te mesmo!Como dizer-te outra coisa, se o que eu quero mesmo dizer-te é que te amo?". Ele sorriu num beijo fundo que, ela sentia-o, era o aceitar cúmplice da declaração vulgar. Mas tão verdadeira!

domingo, 2 de outubro de 2011

Al Mossassa

Todos os anos é assim: - os mouros voltam a Marvão, enchem a velha vila de aromas estranhos e a história ganha vida. Os turistas, muitos, enchem as ruas, os automóveis ficam longe, a subida faz-se ofegando, a descida sorrindo já. A rua principal de Marvão, onde, tantas vezes, caminho imaginando histórias, é ocupada por tendas que oferecem chás, ginjinhas (deliciosas), túnicas coloridas, dança do ventre (algumas do barril) e reconstituições de profissões já desaparecidas. Voltam as forjas, as amêndoas acabadas de tostar, a cerveja artesanal, as primeiras castanhas da época e maçãs de Bravo absolutamente fantásticas. Há ainda os barros, os produtos de cortiça, e os muitos olá! tudo bem sorridentes e descontraídos.
Eu prefiro Marvão sem Al Mossassa. Prefiro Marvão silencioso, as ruas húmidas e cheias de mistério, a possibilidade de entrar com o meu automóvel e estacionar lá bem no alto, junto às ameias. Mas reconheço a importância destas iniciativas para promover, e divulgar, uma vila linda e uma região que tem muitas coisas gostosas, muita História rica e muitas oportunidades por explorar. Ontem, há pouco, o castelo de Marvão foi assaltado por hordas de árabes empunhando espadas mal afiadas (felizmente). Acho que os cristãos os venceram, mas não sei por quanto tempo...

sábado, 1 de outubro de 2011

Bluff

Não sei jogar Póker. Aliás, tirando o King (sem fazer contas) não sei jogar às cartas, nem gosto de jogos de cartas. Não sei fazer bluff, e tenho dúvidas sobre a necessidade de aprender a fazê-lo. Assim, fiquei muito surpreendida quando me confrontei com o bluff que é feito em torno dos cursos profissionais. Os alunos dos cursos profissionais, pagos pelo POPH (não sei muito bem o que é isto) têm regalias sem fim: - Não pagam materiais, não pagam visitas de estudo, não pagam batas para trabalharem no laboratório, têm direito a ver repostas as aulas sempre que faltam, têm, enfim, todos os apoios de que precisam. Estes alunos, teoricamente, pretendem adquirir competência e qualificação profissional. Teoricamente. Na prática, e é aqui que começa o bluff, a maior parte destes alunos não quer trabalhar, não quer estudar, não quer fazer nada! Na sua maioria, estes alunos procuram, apenas, uma forma de estarem entretidos. Eu acho indecente que, nos tempos difíceis que correm, e em todos os tempos!, se invista dinheiro de todos na preguiça de alguns. Se eu mandasse, o jogo seria muito mais verdadeiro, sem bluff, afastando aqueles que não querem mesmo fazer nada. Os cursos profissionais são, na minha opinião, uma oportunidade válida e muito importante mas, por isso mesmo, têm de ser levados a sério. Revolta-me ver desperdiçar dinheiro com quem não o merece!
Tenho, na minha turma de alunos do Curso Profissional, miúdos com muita vontade de acertarem na vida. Porque terão de ser prejudicados por aqueles outros, tantos, que ali estão apenas para prejudicar e enganar o sistema?