domingo, 30 de junho de 2013

Mastro de Sinais

A noite era escura e as luzes, amareladas, colocadas bem junto da velha fortaleza desactivada, fazia destacar o mastro de sinais. A ela parecia-lhe um esqueleto perdido, um ser fantasmagórico, esbracejando contra o ruído intenso da discoteca na areia, pedindo respeito pela sua idade, acarinhando os casais de namorados que o escolhiam como cenário para as fotografias obrigatórias das férias, mas ouvira alguém dizer que aquilo era um velho mastro de sinais. Gostou do nome e, agora, olhava-o com outro respeito desejando (quantas vezes?) que houvesse um mastro assim, com sinais, para a orientar na navegação da vida. Devia ser bom saber por onde seguir, lançar o ferro com segurança sabendo que não se deixaria levar pela corrente, atracar em portos sempre seguros. Saber-lhe-ia bem possuir um mastro de sinais e ser capaz de descodificar a informação para não naufragar a meio da viagem. Mas não tinha. Tinha, apenas, um coração tão emocionalmente analfabeto que nem os sinais óbvios do dia a dia conseguia decifrar... 

sábado, 29 de junho de 2013

Neologismos e idiotices

Não há muito tempo, Mia Couto foi justamente premiado e eu recuperei a sua ternura criadora de neologismos fantásticos. Veio o poetar, a belezura, o encompridar, etc. Gosto de Mia Couto, gosto de me perder nas suas páginas, experimentando uma língua que, sendo a minha, se recria para me surpreender. Ora, estes neologismos nada têm a ver com a mania, dantes politica mas agora dolorosamente generalizada, que alguns tecnocratas (e burRocratas) têm de inventar palavras. Esses assassinos da língua, na minha opinião, tentam inventar palavras para dar dignidade ao que o não tem, ou para fazer parecer difícil uma coisa simples. Os políticos, por exemplo, usam até a surpreendente expressão do à anteriori (!!!) entre outras que me fazem rir (para não chorar).

Mas, infelizmente, não são só os políticos que maltratam a nossa língua... Os professores (que mágoa) também gostam de inventar para complicar e, assim, esbarramos com distratores e desfazedores que me causam raiva! Será que as pessoas acham que, por usarem palavras compridas e sem sentido, vêem reconhecida superioridade intelectual?
É que eu acho que o que acontece é exactamente o contrário!!

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Mulheres

A Carlota e a Constança são pequeninas mulheres. A Carlota, de olhos amendoados e sorriso constante, é imparável, corajosa, capaz de seduzir o mais carrancudo dos seres com o seu olhar irresistível; a Constança, de olhos claros, calma e paciente, parece ter já compreendido que é preciso arte e sabedoria para viver neste mundo louco. 
As duas são de idades próximas, têm sangue comum mas quis a vida que vivessem a milhares de quilómetros uma da outra. Nas duas me revejo um pouco, quando as olho na alma procurando (e felizmente encontrando sempre) a comunhão de identidades.
Penso nestas mulheres miniaturas e no mundo que as espera. A vida, ou as pessoas - o que é quase a mesma coisa - tem mudado muito depressa, às vezes creio que depressa demais..., e as mulheres do futuro muito próximo não serão como as mulheres de hoje. Será que a Carlota e  a Constança vão amar em entrega total? Serão as duas mulheres de sucesso profissional a sobrepôr-se aos afectos tantas vezes dolorosos? Serão capazes de, entre as duas, criarem laços indissolúveis que lhes permitam nunca conhecer a verdadeira solidão? Na noite escaldante, quando penso que o inferno desceu (ou subiu?) à Terra, penso na condição destas mulheres que, um dia, (ah.. que vaidade a minha) me lerão para conhecerem mulheres de ontem.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

VERÃO

Odeio o Verão! Detesto as festas, os corpos nus e torrados qual frango no espeto, os campos secos, as noites sufocantes, o céu raiado de vermelho, o suor a escorrer por todos os regos possíveis (sim, todos!) , a obrigatoriedade de falar de férias e o cansaço que se me impõe para realizar qualquer tarefa tão simples como respirar. Para mim, o Verão é o tempo em que o mundo, a Terra, protesta e lembra que o inferno existe mesmo.
Nas noites ardentes, em vez de imaginar, como no inverno, um abraço quente e cúmplice, imagino os diabretes cornudos, de espeto em punho, provocando a minha resistência, espicaçando a minha angústia e a minha paciência.
Imagino que, a esta hora, quem me lê se indigna... O Verão é a estação preferida da maioria das pessoas e devem estar a apelidar-me de velha rabugenta. Não me importo, sou mesmo assim, a gostar de frio, de manhãs de nevoeiro fresquinhas, de conversas longas protegidas por edredons de penas, e de abraços intensos para me aquecerem.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

AMIGAS

Pode ser lagosta suada, bife do lombo, carapaus fritos, pão com chouriço, filetes congelados, ou mesmo salada russa; pode ser um restaurante com estrelas Michelin, um restaurantezinho de aldeia ou até a velha tasca onde o tratamento de menina denuncia o velho conhecimento  dos donos.
Não interessa o menu, nem interessa o lugar, quando duas amigas se concedem o tempo de conversar. É um privilégio, acho eu, podermos sentar-nos à mesa com uma amiga, daquelas raras e antigas, para conversar. As amigas, as que se fazem na infância e nos seguem para sempre, podem estar ausentes meses, caladas dias, mas estão aí, presentes, quando fazem falta. Julgo que as conversas entre amigas são exclusivas. Não existem invejazinhas, maldadezinhas, julgamentozinhos de velhacaria. Não há inhos nem inhas, porque tudo é verdadeiro e real. Com uma amiga, pode-se escancarar o coração, borrar a maquilhagem com lágrimas incómodas, rir de inconfessáveis femininos. As amigas, porque mulheres também, compreendem os absurdos do amor, são leais na crítica, justas e nunca ofensivas nos julgamentos. Há coisas que só se contam a uma amiga. À Amiga, porque, acho eu, é importante distinguir a Amiga, da conhecida...
Ontem, concedi-me um almoço com uma amiga. O Alentejo mágico, com água fresca e azul, serviu-nos de cenário,  e o  tempo fez-se da conversa cúmplice, de filhas, de homens (raça esquisita), de sonhos e possíveis. Garanto que os filetes com o vinho branco gelado me souberam melhor do que lagosta com champanhe francês!

terça-feira, 25 de junho de 2013

AMOR

Passeando na blogosfera para enganar a noite, assaltei o blog de Helena Sacadura Cabral, Senhora que admiro imenso, e roubei o seguinte:

" Será que "o homem da nossa vida" é, sempre, "o amor da nossa vida"? Diria que em muitos casos não é.

O homem da nossa vida é uma espécie de alter ego de nós próprios, alguém por quem nos apaixonamos, com quem desejamos fundir-nos, que constitui por assim dizer o nosso complemento, que ocupará sempre um lugar especial no nosso coração. E que, mesmo quando a vida nos separa, mantém subtilmente cativo esse lugar. (…)

De modo diverso, o amor da nossa vida é aquele que nos aceita como somos, que não compete com outros amores que tivemos, que nos ama como nós precisamos de ser amados, que disfruta das nossas diferenças e que, apreciando quem somos, jamais pretende transformar-nos na mulher de que eles precisariam, ou que gostariam que nós fossemos.

Às vezes leva muito tempo a compreender esta subtil diferença, porque o que é natural e romântico, é desejar-se que o homem da nossa vida seja também o nosso grande amor. (…)"

Soube-me muito bem a sintonia. Soube-me deliciosamente verificar que há quem, como eu, não ache que falar de emoções e sentires seja exposição gratuita. Tal como HSC, eu também acho que a vida, para fazer algum sentido, carece de compreensão e cumplicidade partilhadas entre dois seres diferentes.
Obrigada Helena!

segunda-feira, 24 de junho de 2013

A Lua


Está o país de olhos no céu, mas as árvores do meu quintal impedem que faça parte deste colectivo. Adivinhei-lhe a força, espreitando-a da porta, mas não consegui encantar-me e fui tentar dormir. Não sou nada entendida nestas coisas da astronomia, estou mais habituada a olhar o céu por outros motivos, procurando outras presenças, outras luzes também. Mas não resisti aos apelos e alertas constantes da comunicação social - quem sabe se, daqui a 18 anos, estarei viva para ver de novo este fenómeno? - e saltei da cama, com remorsos por não ter ligado nenhuma à lua quando ela se mostra na sua total pujança, atrevendo-se a aproximar-se desta bola achatada e louca que é a Terra.
Pronto, fotografei-a já alta e, agora, muito mais culta e socialmente integrada, posso ir dormir. Amanhã, poderei entrar nas conversas certas sobre o tamanho da lua, o seu brilho e, talvez, a sua forma redonda. O que eu não vou contar a ninguém, a ninguém-ninguém, são os desejos que pedi a esta lua extraordinária, a intensidade com que lhe supliquei que iluminasse outra noite, outra escuridão que nenhum sol consegue destruir...

domingo, 23 de junho de 2013

O FACHA

Na minha cidade havia um Café com muita história. Era um Café com portas giratórias, onde em miúda adorava passar, com madeiras escuras e situado bem no Rossio. Nas quartas-feiras e nos sábados, sobretudo, o Café Facha enchia-se de chapéus alentejanos, de lavradores de pele escura, calças estreitas, e coletes de onde pendiam correntes de ouro ou prata segurando pesados relógios. Estes homens, que davam vida ao largo, tiravam o chapéu sempre que passava uma senhora, faziam negócio e  coloriam a cidade. No Café Facha comia-se bem, a gastronomia alentejana, conversava-se muito e respirava-se o ambiente lagóia de que eu tanto gosto.
Agora, o Café Facha foi deitado abaixo. No lugar dele, vai surgir um Hotel moderno, descaracterizado, igual a todos os hotéis de província posta em bicos de pé: - Feio e ridículo! Agora, já não há lavradores no Rossio da minha cidade, já não há correntes de ouro (nem de lata), já ninguém tira o chapéu quando passam as senhoras. Agora, Portalegre ficou mais triste, mais vazia e com menos identidade. Sei que nada é eterno, que tudo tem o seu tempo, que a mudança é constante, que a arquitectura de hoje não é igual à de ontem. Sei tudo isso, mas tenho tanta pena que tenham deitado abaixo o Café Facha...
 

sábado, 22 de junho de 2013

Convulsão

Tem sido com horror e medo que tenho acompanhado os protestos no Brasil. É um país enorme, cheio de potencialidades mas, também, feito de injustiças e maldades. Num país onde há crianças a viver no lixo, famílias inteiras em morros de miséria, bandidos à solta em cada esquina, quase me parece uma provocação de Deus o cenário maravilhoso de cidades como o Rio de Janeiro... Compreendo a revolta dos brasileiros. Não sentimos nós também, com dor e raiva, a injustiça e a estupidez violenta que representou a construção de dez estádios novos para o Euro 2004?! Que é feito desses estádios agora? A maioria fechou, está decadente, de nada serve... Os brasileiros têm razão em protestar, em defender que as prioridades de investimento deviam ser outras. Parece-me, a mim que vejo tudo do outro lado do mar, que verificaram que Lula não foi o fazedor de igualdades, que Dilma não é a diferença com sentido. No entanto, e apesar da razão que lhes reconheço, apavora-me a violência dos protestos,  este tocar a rebate a que alguns continuam surdos, assusta-me que aquele país caia numa guerra civil. A violência nunca me agradou, acredito que o Homem tem o poder da palavra, mas, neste momento, creio que o mundo vive uma convulsão profunda a partir da qual nada mais ficará igual. Síria, Irão, Turquia, Brasil, Grécia, Coreias, Palestina, Israel, Angola, Moçambique são, apenas, alguns dos lugares onde, hoje, a violência é quotidiana. O mundo aprece estar a contorcer-se de revolta e mágoa, procurando um outro caminho. Não é mais possível, penso, imaginar o amanhã igual ao hoje. E não sei para onde vamos... Pessoalmente, acredito que a mudança está em cada m de nós, que só mudará o todo se mudar cada um, que o caminho se deve fazer através da compreensão e respeito, da justiça e da diferença. Mas sei que estes Valores estão esquecidos, que predomina um umbiguismo doentio, que cada um só pensa em si mesmo e na sua verdade. Tenho medo pelos meus netos, pelos meus jovens. Por mim também.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

48

Tenho 48 provas de exame de português de 12º ano para corrigir. Nem mais, nem menos. 48! Considerando que demoro cerca de quarenta minutos a corrigir uma prova, esperam-me, se a máquina de calcular não errou a conta, 1920 minutos de trabalho numa época do ano em que o cansaço é já muito e cabeça e corpo pedem férias. Ninguém me vai pagar este trabalho, faz parte da minha função de professora e, por isso, devo acumulá-lo com vigilâncias de exames, relatórios finais, matrículas de alunos, formação de professores, conclusão da avaliação de colegas, organização do ano lectivo 2013/14 e reuniões de Conselho Geral. Ao mesmo tempo, continuo viva (acho) e por isso gostaria de concluir as minhas leituras, de caminhar na minha serra, de poder refrescar-me na piscina. Gostava, enfim, que houvesse vida para além do trabalho... Os professores, os de verdade, trabalham muito mais do que 40 horas e talvez - TALVEZ - uma avaliação rigorosa que de facto beneficiasse os que trabalham, pudesse resolver a questão das greves.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Dúvidas

A rodar pôs o CD de Sinatra, I did it my way, sempre boa companhia, deixando a alma valsar, solta, enquanto o corpo se ocupava de papéis. Grelhas de classificação dos alunos, números, o excel a exigir rigor e ela, hesitante, sem saber qual o número a atribuir aos olhos brilhantes de saber, à vontade de aprender, ao prazer de descobrir poesia, ao entusiasmo em realizar aprendizagens activas... Sem saber, também, como classificar o desinteresse, as faltas de educação repetidas, o desleixo e os comportamentos absurdos.
Os quadradinhos ali estavam, chamados células, aguardando a sua decisão arredondada às décimas. Lembrava-se de ter lido há tempos, talvez na Madrugada Suja de Sousa Tavares, que em caso de dúvida se deve decidir a favor do réu. Mas os seus alunos não eram réus. Naqueles seres eléctricos, conversadores, capazes de a tirarem do sério, moravam pessoas a precisar de crescer com sucesso. Pessoas que, desejava ela, fossem capazes de criar um mundo novo e muito melhor do que o seu. A grelha excel ficava curta para o que ela considerava dever avaliar. E, no entanto, concordava com a necessidade de impôr objectividade e rigor à avaliação. O CD continuava girando, you must remember this..., e ela tentava trancar a memória, proibir as recordações de tomar conta de si. Tão complicada a vida, tão difícil coordenar sentires e pensares, memórias e futuros. Olhou a rua. Se lhe pedissem que avaliasse a vista do seu quintal, como faria? Sorriu ao absurdo. Há realidades que não se avaliam. Há mundo que, como dizia Alberto Caeiro, existe só para ser realidade. Uma flor é só uma flor.
Ou não?

A LINHA

Uma linha ténue marca o limite. Para lá do fundo, o nada, o horizonte, o desconhecido. Mas não é tudo desconhecido? Não é tudo mistério? Onde fica a linha que marca certezas e segurança? De repente, nada parece seguro, tudo é efémero, tudo é relativo. E vem a imensidão do oceano de sonhos feitos em ondas de desilusão, em certezas de espuma frágil. É a vida, a existência, a obrigatoriedade de acordar a cada dia e lutar, sobreviver, nadar como náufragos eternos. A linha continua lá, sempre fixa, sempre limite e tentação de passagem. Quem passa? Talvez os mais corajosos, ou quem sabe os mais inconscientes, os mais capazes de ignorarem o coração. Talvez os poetas tenham razão e as emoções sejam a ferida que sangra sempre.Talvez Alberto Caeiro esteja certo e o mistério das coisas serem não terem mistério nenhum. Olho a linha, revisito poetas, varro para debaixo do tapete da minha existência os destroços das minhas emoções. Quero ser capaz de manter a linha lá, ao longe, sabendo que há um limite, mas não há um fim.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Soma e Segue

Continua a greve, somam-se reuniões que não se realizam, os alunos aguardam pelas avaliações, os professores assinam actas onde, repetidamente, se escreve apenas que a reunião não se realizou. Vive-se um braço de ferro que me parece uma birra infantil, uma espécie de vamos ver quem ganha, esquecendo-se que são os alunos quem mais perde. Se tinha dúvidas em relação a esta greve, agora já não tenho e discordo profundamente dela! Não me venham com a conversa da defesa da escola pública, porque o que acontece é que estamos a destruí-la. No ensino privado os exames decorreram TODOS com normalidade, os alunos realizaram as provas em sossego e sem sobressaltos. Os que podem pagar, não sofrem com as guerras de poder, continuam vivendo tranquilamente. É esta a equidade que os sindicatos tanto exigem?! Porque não dizem os professores em greve que o que os preocupa mesmo é o risco de desemprego? Ao menos, ainda que discutível, seria uma verdade e não continuariam a justificar a greve com falsas verdades...

terça-feira, 18 de junho de 2013

Concretizações

 Chegara de noite, cansado, com os olhos a doerem dos quilómetros de condução, dos destroços líquidos de uma vida desfeita. Procurava paz, descanso, um espaço sem memórias, um lugar onde os fantasmas noturnos não o encontrassem. Uma sugestão de um amigo fizera-o rumar ao Alentejo profundo, à imensidão de amarelos interrompida, apenas, por alguns sobreiros espalhados. Estranhara o verde das vinhas, não era este o Alentejo que aprendera nos livros, mas sentira a força das searas, o branco das aldeias, as rugas das gentes sozinhas sentadas às portas caiadas. Mesmo com a ajuda do GPS, perdera-se e, por isso, chegara tarde e desejando apenas dormir. De manhã foi o silêncio do hotel rural que o acordou. Deixou-se ficar, no quarto invadido de sol, organizando a cabeça. Vinha de um fim. Mas, ainda assim, e certo da inevitabilidade dessa chegada, sofria. O amor deixa-nos sempre alarme. Alarma-nos enquanto dura, mesmo se correspondido, e alarma-nos quando termina, como lhe acontecera a ele. Os porquês agora de pouco serviam. Como justificar os abandonos, os silêncios sempre crescendo, as prioridades erradas? Como explicar a desconfiança, o frio da cama, a surdez face aos sinais de alerta? Nada poderia, nunca, fazer o tempo voltar atrás e, olhando-se assim, nu sobre uma cama de hotel, perdido num lugar desconhecido, pensava que talvez nem quisesse recuperar nada. Fechou os olhos e sonhou.
Estava na praia, de máquina em punho, fotografando. Gostava de se sentar nas rochas e de ficar flashando os surfistas ousados, as ondas a rebentar, as crianças a brincar. A fotografia era um vício, talvez o único. Fora com a máquina que a descobrira, jovem, de rabo de cavalo escuro, passeando no areal, sem pressas, brincando com a espuma das ondas. Eram jovens os dois, ele gostou das pernas bronzeadas e longas, do fato de banho de flores, do olhar escuro que mergulhava  no oceano. Fora ela quem começara a conversa, sem vergonha, perguntando-lhe se conseguira já fotografar o ponto verde. Perante a sua ignorância, ela explicara: - Era um privilégio de seres especiais, ver o ponto verde! E ele sentia-se já especial, e ela era já o seu ponto verde. A conversa correu, o casamento aconteceu e, agora, o fim chegara também. Talvez ele devesse ter sido diferente, mais atento. Talvez ela devesse ter sido diferente, mais exigente. Talvez, no mar que fotografara, não devesse existir uma mulher, umas pernas longas, um fato de banho florido. Talvez só devesse ter olhado as gaivotas... Talvez a vida não devesse fazer-se de talvez, mas de concretizações!


segunda-feira, 17 de junho de 2013

Exames

Bem cedo, cheguei à escola para os exames. À porta estavam elementos de um dos sindicatos a distribuir uns folhetos que não li. Já não tenho pachorra para mais publicidade forçada ao partido comunista. Quem orienta esta greve é Mário Nogueira, que apenas deu aulas um ano na vida, que nada conhece sobre a verdade da Escola. De facto, as coisas nas escolas têm piorado, o número de alunos por turma é prejudicial, a autoridade não existe, a ocupação de tempos não lectivos uma anedota. Mas não é sobre isto que os sindicatos falam, porque não sabem do que falam! Hoje, na minha escola, os exames decorreram com normalidade, apesar da polícia à porta e da indignação de alguns elementos do PCP. Ainda bem!
O que não me agradou, hoje, foi a prova de exame de português. Um poema difícil, Ricardo Reis!, perguntas muito complexas, um texto de Lobo Antunes, um escritor com um elevado grau de dificuldade, exercícios de gramática insistindo nas excepções e não nas regras. Defendo que deve haver rigor, exigência, qualidade. No entanto, não me parece que deva haver desajustamento da realidade o que, creio, aconteceu desta vez... Os resultados vão ser fracos, tenho a certeza, e de novo os professores serão acusados de mau desempenho. Vão esquecer-se os onze anos de facilitismo em que os alunos cresceram, vão ignorar-se as dificuldades de trabaho com trinta alunos, vão menosprezar-se as assimetrias deste Portugal. A greve vai ser lembrada para insultar os professores... Não percebo a classe que integro, não compreendo o meu país!

domingo, 16 de junho de 2013

Quando a solidão fica maior


Muitas vezes penso, e sinto, que solidão não  é estar sozinha. Eu gosto de estar sozinha, com os meus livros, as leituras de blogues, os passeios pela Serra, as descidas até à minha cidade para encontrar rostos amigos. Não me sinto solitária, mas sozinha. Agora, em Junho, Portalegre está ainda mais bonita, com a rua do Comércio e a rua Direita engalanadas pelos lojistas para se viverem os Santos Populares, e eu não me incomodo com os passeios sozinhos, as bicas sem companhia. Não me incomoda, mesmo nada, viver sozinha, e não acho que isso seja solidão.
Para mim, solidão é algo bem diferente. É o que sinto hoje, quando as malas estão prontas e os meus meninos vão partir... Agora, a solidão fica mais negra, dói mais intensamente, os minutos esticam-se até ao insuportável e as horas parecem séculos! Parte a ternura, a gargalhada, a conversa cúmplice, e as minhas mágoas doem demais. E, para complicar tudo, a solidão pode crescer mesmo quando já é enorme! Eu sei que pode...

A esta hora, já pronta para ir até ao aeroporto levar a minha gente, olho a Serra, os cães surpreendidos com a cedura, e penso que devia ser possível haver um limite para a solidão, para a desilusão, para o desapontamento também...

sábado, 15 de junho de 2013

Reciclagem

É necessário proteger o ambiente, devemos separar o lixo, optar por papel reciclado, guardar as tampinhas de plástico, etc. etc.etc. Tudo verdade, quase comum e generalizado. O que me surpreendeu, um dia destes, foi ter sabido que o navio Funchal, e mais três dos quais não sei o nome, tinham sido comprados, e reciclados, transformando-se em navios para Cruzeiros de luxo. Vi, e ouvi, o novo armador falar dos navios com entusiasmo, convicto de que terão sucesso, e vi, também, a antiga tripulação do Funchal, há dois anos no desemprego, feliz com a recuperação do navio. 
A dada altura da Reportagem, que vi na SIC, um dos mais antigos tripulantes do navio, habituado a muitos mares - como ele dizia -, afirmou o seguinte: - "Em Portugal gostam muito de dizer que somos um país do mar, mas do mar não percebem nada, e ao mar não ligam nenhuma!". Pareceram-me palavras sábias. De facto, desde a epopeia dos Descobrimentos, há mais de 600 anos, o que temos nós investido no mar? De que forma temos sabido beneficiar da vantagem de tanto mar? O que fizemos foi encher as praias de betão, sujar as águas, destruir falésias, vender a pesca, destruir os armadores! Cantamos o mar no Fado, enchemos com ele a Poesia, mas não soubemos, e continuamos a não saber, aproveitar as suas potencialidades e fazer dele riqueza (nem falo dos submarinos... tenho vergonha). 
Gostei de ouvir o projecto do novo dono do Funchal e, se me sair o euromilhões, será neste navio que farei o meu primeiro cruzeiro!

ASNOS E...OUTROS

À bruta, sem respeito por nada nem ninguém, o Ministro da Educação mandou convocar todos os professores para as nove horas da manhã do dia 17, primeiro dia de exames. Não há já critério, não há impossibilidades, acabaram as incompatibilidades.  O que importa é que, seja como for, em que condições absurdas for, os exames se realizem. Agora, eu farei greve!
Porque estou cansada de uns serem os asnos, e outros estarem eternamente à manjedoura...

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Açúcar Amarelo


O vento começou a soprar, intimidando o sol, fazendo a pele arrepiar-se à saída da piscina. Mas a energia infantil não tinha chegado ao fim, o desejo de brincar era imenso, e eu propus uma mudança de actividade: - Vamos fazer boleima! - O Manuel Bernardo entusiasmou-se, é bom meter as mãos na massa, sujar-se, ter farinha na ponta do nariz. 
E a tarefa começou. Primeiro, preparar as maçãs, cortá-las finas, cobri-las de canela e açúcar amarelo. Veio o espanto! Açúcar amarelo?! Oh avó, mas o açúcar é branco! E, num instante, era eu quem tinha três anos e quem se deliciava com as enormes fatias de pão alentejano que a minha avó Carolina, surda à razões dos meus pais, me oferecia barradas de manteiga e açúcar amarelo. A saudade veio inteira, voltou o gato de olhos luzidios, as escadas que eu descia de rabo nos degraus, as rugas da minha avó e o colo onde me lambuzava das gulodices proibidas. Com o Manel sentado na bancada da cozinha, recuei no tempo... Cortei uma fatia de pão, aparei as côdeas, barrei de manteiga e polvilhei de açúcar amarelo. Ele deliciou-se! A seguir, os dois, fomos fazer a boleima. Com calma fui explicando que era preciso aquecer o leite com o azeite, misturar bem a farinha, amassar com as mãos - QUE BOM! - e montar o tabuleiro. Metemos no forno e fomos sentar-nos à porta, com os pés no murete para evitar as formigas, conversando. O Manuel Bernardo gosta de ouvir segredos, de escutar histórias de outros avós e avôs que não conheceu, presta atenção, faz perguntas, e eu acredito que esses passados ajudam a construir identidade. 
Quando a boleima ficou pronta, na sua inocência de três anos, o Manuel Bernardo olhou o céu e disse: - Obrigada avó Carolina, por teres ensinado açúcar amarelo à minha avó Luísa!

Foi a melhor boleima que comi, foi a mais bonita oração que ouvi.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Repetição

Todos os anos, ao chegar ao final das aulas, me acontece o mesmo. Sofro uma lavagem emocional, súbita!, esqueço os desesperos, as fúrias, as dificuldades, e sou invadida por uma imensa saudade antecipada dos meus alunos. Vejo-os felizes por chegarem ao fim, lamento os que vão ficar para trás, e sei que, em Setembro, os que reencontrar estarão diferentes. Mais crescidos, mais seguros, às vezes mais interessados no futuro, outras vezes mais desiludidos face à vida. Compreendo bem o que sentem. Aliás, acho que compreendo eu melhor do que eles... Hoje, depois de uma entrega de óscares a professores, após um jantar convívio muito cheio de amizade e cumplicidade, penso neles. Penso no Afonso, sempre angustiado, de raciocínio rápido e ternura sem fim; na Bia, dançarina de olhos doces; na Ana, irreverente  e meiga; na Carolina, sempre a mil à hora, sempre voando para além da sala; na Ana Aurora, perdida na teia dos seus pensamentos, segura e convicta dos valores que defende; na Michelle, a aprender numa língua que não é a sua, querendo ser sempre melhor; na Mariana, calada e atenta, capaz de me surpreender sempre; na Matilde, a doce Matilde, educada, terna e trabalhadora; no Miguel de olhos brilhantes, ávido de saber, atento, questionador; na Patrícia, acelerada, rindo sempre, original e terna; no João Pedro, com vontade de brincar, a crescer diariamente, a lutar contra a timidez, a esforçar-se sempre; no Francisco que me fez cabelos brancos e, agora, aparece recheado de doçura; na Margarida, atenta, exigente, a progredir na procura das razões;... São tantos! E todos especiais. Para mim, todos únicos e a tirarem-me o sono porque tenho saudades deles!
Eu sei que, ao fim de 31 anos de ensino, devia já ter criado resistências contra estas dores do adeus. Mas não sou capaz! Todos os anos, em Junho, lá vem a repetição da minha saudade antecipada. Que chatice!

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Franca Fraqueza

Continua a greve de professores, continuam os problemas graves para os alunos. De acordo com os sindicatos, a culpa  é do governo, como se pode ler no Jornal Público -“Se mantiver a sua intransigência em relação à aplicação da mobilidade especial aos professores, ao aumento do horário de trabalho para 40 horas e ao despedimento de docentes, pode estar certo que, para além das lutas anunciadas, outras serão desenvolvidas”. Até quando? E como vai terminar este braço de ferro? Com mais de 90% dos professores a aderirem à greve, e recordando as posições públicas de Nuno Crato antes de ser ministro, confesso que esperava uma atitude bem diferente. Porque será que o senhor ministro não admite que a profissão docente é diferente da dos outros funcionários públicos?

Porque insiste em querer fingir que os professores são responsáveis por lutarem por aquilo que é justo? Diariamente encontro alunos de 12º ano angustiados, haverá ou não exame no dia 17?, e sei que este estado de dúvida afecta e prejudica os melhores (para os maus alunos é indiferente, se nunca quiseram saber da escola, não querem também saber de exames). Revolta-me a posição casmurra do governo mas incomoda-me, também, a atitude da maioria dos meus colegas. Eles que me desculpem a franca fraqueza.

terça-feira, 11 de junho de 2013

SUBIDAS

Passeando por momentos passados, revisitando fotografias (sempre acho que é uma forma de conservar vivos momentos irrepetíveis), encontrei esta escada, de degraus difíceis, ausência de corrimão para facilitar a subida, rua escura e estreita, vazio quase total. Fiquei parada em frente da foto, recuperando a visita feita, e pensando que a vida também é assim. Falta muitas vezes um corrimão onde a gente se segurar, é fácil escorregar, cair, é frequente crescerem ervas daninhas na nossa existência e o vazio - TOTAL - instala-se com abusiva confiança. 

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Portugal

Hoje, é dia de Portugal! Nesta data, em 1580, morria o maior poeta português, Luís Vaz de Camões, em total miséria e abandono. Mas a data ficou e a ela se associou o Dia de Portugal! Sei que é dia de muitas outras coisas, mas para mim é o Dia de Portugal! Há tanta coisa para dizer... podia falar da crise, lembrar a corrupção gritante, as injustiças sociais crescentes, o desemprego chocante, a revolta social galopante, a mediocridade cultural, etc., etc... Podia até brincar com o facto de em Elvas, onde vão decorrer as cerimónias oficiais, haver um Coliseu Roldão de Almeida, um parque de estacionamento Roldão de Almeida, uma rotunda Roldão de Almeida (o actual presidente da Câmara - imagine-se)!!

Mas não me apetece falar de nada disso! Esta madrugada, quando a insónia me faz tentar a leitura tardia e ligar o computador, apetece-me lembrar factos relevantes da nossa história. Para nos lembrar que temos raizes, que temos ainda do que nos orgulhar!
Lembro Afonso Henriques, corajosamente combatendo os mouros; lembro D. Dinis, plantador de naus a haver, escrevendo na noite o seu cantar de amigo; lembro D. Nuno Álvares Pereira e as mil padeiras de mil Aljubarrotas; lembro Fernão Lopes, inaugurando a escrita moderna, cronicando com técnicas de futuro; lembro Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão e Afonso de Albuquerque; lembro António Vieira lutando pela igualdade, pregando pela justiça; lembro João V e a biblioteca Joanina, e a biblioteca de Mafra, e o aqueduto das águas livres; lembro os jesuítas perseguidos pelo marquês de Pombal; lembro D. Maria e D. Luís; lembro Almeida Garrett e Eça de Queirós; lembro Bocage e Florbela Espanca, José Régio, José Duro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Bernardo Santareno, Sophia de Mello Breyner, e tantos - tantos outros! Lembro, ainda, o meu Fernando Pessoa, com Bernardo Soares, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos!
Ah! Este meu Portugal não é apenas terra de maus políticos e gente ruim! Não é mesmo!!
EU gosto de Portugal!!

domingo, 9 de junho de 2013

A EMENTA

Senta-se no restaurante, sozinha, olha o rio, e o empregado, brasileiro solícito, coloca-lhe o menu nas mãos. Com relativa atenção lê as propostas, todas correctas e formatadas, as tostas mistas, as torradas de pão caseiro, o vinho de colheita tardia, o café, as torradas com chá de mil nacionalidades. Repara na regra imposta: - Ordem e modelo. Se ela pedisse uma torrada com scones, ou uma vindima tardia com chá, ou mesmo scones com amendoins, ou quem sabe café com chá, o empregado, mesmo que não fosse o jovem e tatuado brasileiro, estranharia decerto. E ela pede o correcto, o café e as torradas com doce de abóbora.

É domingo, a chuvinha triste cai no rio, é cedo, e à margem ninguém está ainda. Ela volta a olhar a ementa. Podia ser uma ementa de vida! Sim, porque também na vida tudo parece dever a uma ordem, ou desordem, que todos inventam para impôr  aos outros. Se é mulher, deve ser solícita, calma, trabalhadora e adaptada ao menu das conveniências (CRUZES!); se é homem, deve ser corajoso, firme, ter voz grossa, saber palavrões... E, se há exagero neste menu, porventura um pouco fora de moda, do género comida de Tasca vulgar, há os menus individuais.
Cada um deve caber no cardápio alheio! E ela sente-se, no domingo húmido, como peixe cozido com batatas fritas - uma ligação sem sentido!

sábado, 8 de junho de 2013

A Constança

Tem os olhos azuis, escuros, intensos, o sorriso firme, a fragilidade dos seus quase quatro meses e cheira a Mustela. É a minha neta mais nova, que daqui a pouco será baptizada, que eu olho tremendo com medo do futuro.
A Constança nasceu numa época terrível, quando tudo é excessivamente relativo, quando a verdade pouco vale e as falsidades abundam. A minha Constança vai ser baptizada num período em que o mundo parece ter enlouquecido e as traições acontecem a cada novo dia. 

Olho-a, tão frágil e linda, e rezo em silêncio. Para a Constança peço a Deus que coloque de serviço um anjo da guarda resoluto, corajoso e atento, capaz de puxar as orelhas à vida cada vez que ela resolver descarrilar. Peço a Deus, também, que lhe ceda um anjo com todo o tempo, em serviço de exclusividade (para que nada o distraia dela) e capaz de a ajudar a descobrir o caminho certo em cada encruzilhada da vida.
É tarde na noite e a minha insónia tece-se do medo do amanhã da Constança, da Carlota, do Manuel Bernardo. Como será o futuro das crianças que, hoje, sorriem confiantes e me olham nos olhos, seguras, pedindo histórias, fadas e mergulhos na piscina azul?
Daqui a muito poucas horas, a Constança vai ser baptizada. Vai ter com ela os pais, a tia-madrinha, a família que tenta zelar por ela. Com o escuro da noite, o meu medo aumenta!
Que Deus me conceda o que lhe peço: Anjos activos e atentos para guardarem os meus meninos. Para guardarem todos os meninos do Mundo doido onde nasceram...

sexta-feira, 7 de junho de 2013

BICHO RUIM

Devia estar calor, os areais deveriam estar cheios de corpos coloridos, o mar devia estar morno e os baldinhos de cor deveriam construir castelos, piscinas e covas traiçoeiras. Mas nada é assim! O céu continua cinzento, a praia está vazia, o mar está tranquilamente gelado e os passeios podem, felizmente, acontecer em sossego. Gosto do tempo assim, gosto da praia de inverno, da ausência de gritos e de bolas a saltar. Gosto tanto do vazio natural, cheio de pureza autêntica, que chego a pensar, cada vez com mais frequência..., que o mundo seria perfeito se não existissem homens! Que bicho ruim é o ser humano...

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Fogo Fátuo

Na noite brilham as estrelas na água. Ela olha, fica sentada no parapeito, esgotando o silêncio, hesitando entre a contemplação do brilho e a intensidade do negro. Se pudesse mergulhar ali, e egoisticamente encontrar o fim, talvez encontrasse a paz. Mas há o brilho, o reflexo de luzes que a encantam e lhe prometem a força da vida! Vêm do céu, as luzes. Ela sente frio, a camisa de dormir de cambraia não a aquece. Mas hoje, agora, o frio não vem do vento nocturno, vem de dentro dela mesma, soprando de mansinho, agitando os sentires e despertando-lhe memórias, sonhos desfeitos, futuros eternamente adiados. Está escuro, mas ela não tem medo, conhece de cor o lugar onde nasceu, e caminha descalça enganando a insónia. Tudo nela é turbilhão, uma montanha de nadas que se tornaram, apenas, no fundamental. Está cansada de certezas alheias, de culpas e insinuações, de conselhos e verdades que lhe ficam dramaticamente curtas. A vida, a dela, é como a piscina onde, de noite, as estrelas brilham. Fogo fátuo, de coisa nenhuma!

quarta-feira, 5 de junho de 2013

GREVE

Os professores preparam-se para fazer greve. Lutamos contra quase tudo mas, sobretudo, contra a extinção da escola pública, contra a falta de respeito pela classe docente. Ser professor é dedicar mais de 24 horas por dia à profissão. Levamos para casa os problemas dos alunos, limpamos lágrimas, ralhamos, remamos contra a corrente, desesperamos, corrigimos trabalhos, preparamos aulas, fazemos formação, vamos a reuniões, acompanhamos projectos, pagamos para sair com os alunos, etc, etc... Ser professor não é, nem pode ser, cumprir o tempo de sala de aula e ir para casa, mas a sociedade em geral, e o Ministério da Educação em Portugal, parecem não saber isso! O meu Pai, médico, dizia às vezes, mais ou menos a brincar, que o trabalho do professor era bem mais importante do que o do clínico porque, para este, a vítima seria singular e, para o professor, a vítima poderia ser uma geração! Sem entrar em exageros, creio que não há justificação para os atentados cometidos contra os professores e, por iso, até compreendo a greve feita às avaliações e aos exames. Não podemos continuar a permitir tudo!
No entanto, eu não vou fazer greve... E apenas porque acho que os alunos não o merecem. Penso naqueles que trabalharam mesmo, que estão a sonhar com a Universidade, que querem organizar a sua vida e falta-me a coragem para fazer greve. Claro que sei que as greves só têm eficácia se interferirem na vida das pessoas, mas ainda assim não farei greve. Sinceramente, acho que tem de haver outras formas de luta! E se decidissemos não atribuir notas inferiores a dez?... É só uma ideia...

terça-feira, 4 de junho de 2013

AMAR

Helena Sacadura Cabral lançou há pouco tempo mais um livro, O Amor é difícil.  É uma obra de escrita fácil, muito feminina, tecida de experiências próprias e ficcionadas que se vão cruzando aos olhos dos leitores. De facto, o amor é mesmo muito difícil! É exigente, impõe entrega, cedência, obriga a colocar o tu antes do eu e essa inversão da gramática dói que se farta. Costuma dizer-se que dantes, num tempo perdido, amar era mais fácil. Eu não acredito! Acredito que as pessoas se acomodassem, que desistissem de obter mais e melhor, que se anulassem, mas isso não é amor. Hoje, o amor exige muito mais exactamente porque a liberdade existe e o eu é, muitas vezes, o umbigo do mundo. Ainda assim, eu acredito que há grandes amores. Acredito que há pessoas capazes de se preocuparem com o "tu", de se entregarem exclusivamente, se mimarem, de ouvirem, de guardarem os julgamentos e as condenações no fundo de uma arca sem fundo!

 Eu sei que há, algures, quem saiba ouvir e perdoar, abraçar e enxugar lágrimas limpando as pedras do caminho. Se a vida é como um rio, e por isso não se repete nem recua, eu sei que há-de existir um remoinho de amor antes de se chegar ao oceano final!

segunda-feira, 3 de junho de 2013

AVÓ

Só quem é avó de coração, avó mesmo, pode saber o fascínio que é abraçar um neto, contar uma história, sentá-lo no colo para falar de estrelinhas mágicas, da família que nos olha lá de cima, das nuvens de algodão, dos segredos que os cães contam e do atrevimento dos melros. Ser avó é mergulhar numa entrega total, numa ternura sem fim, num abraço constante! Rimos de asneiras que, aos filhos, reprimiriamos, ajoelhamos para sermos cavalos, reinventamos as fadas, vestimos de cores alegres as bruxas que já não podem assustar.
Ser avó não é, como diz o povo, ser mãe duas vezes. É ser mãe antes de o ser, é ser mãe com a tranquilidade que o tempo foi conferindo na passagem por muitas curvas e acidentes de vida!
Os meus netos, três, são a minha razão de sorrir. Os meus netos fazem-me acreditar que há um sentido na vida e que, se morresse agora, morreria com a certeza de ter experimentado o total do Amor e entrega!

domingo, 2 de junho de 2013

ZERAR

Há expressões que os brasileiros utilizam, naquele seu jeito de falar português com açúcar, que me fascinam. Acho que comecei a descobri-las muito pequena, entre lágrimas choradas nas páginas do Meu Pé de Laranja Lima, lido entre os lençóis,  de lanterna, na voracidade de saber o que ia acontecer ao Zézé, ao seu Portuga e ao voraz Mangaratiba. Depois, como professora, aprendi a relacionar a língua com a cultura, com a realidade de cada falante, e cada palavra nova descoberta no português do Brasil  chegava-me carregada de sabores e sentires, de cores e vivências. O romance As Confissões de Frei Abóbora foi, de certeza, uma das obras que mais me marcou. E marca... Volto frequentemente a ele, à Pô e ao índio de olhos claros e pele branca, à ternura, à intensidade da paixão, ao TOUJOURS, ao fazer amor como duas ternuras se alisando.
Hoje, descobri uma nova palavra, ainda por cima um verbo!, que queria poder fazer minha: - ZERAR
Que bom podia zerar a vida, colocar no zero o conta quilómetros da tristeza, da dor, da desilusão, e recomeçar o percurso da minha existência com um depósito bem atestado de confiança, certeza, alegria, TOUJOURS!

sábado, 1 de junho de 2013

Dia da Criança


 Encostado à parede, o cavalo de pau esperava uma cavalgada mais. Estivera anos ali esquecido, brinquedo antiquado, incapaz de responder a um toque de tecla, exigindo mais do que um rabo enfiado num sofá. Finalmente, agora aparecera uma criança capaz de o levar de novo por imensas cavalgadas. Bem cedo, mal o sol rompia, já os dois, ele engalanado, o cavaleiro de pijama, pés descalços e boca suja de Nestum. Juntos, saltavam barreiras, competiam em corridas com cegonhas brancas e desafiavam as piranhas dos rios imensos. O cavaleiro conhecia de cor o nome de todos os animais, gostava de saltar por cima das papoilas vermelhas e nunca espirrava com o pólen das giestas. Às vezes, o pequeno cavaleiro ficava cansado, sentava-se nas rochas e perguntava ao seu fiel cavalo de pau como era possível que a torga estivesse tão direitinha. O cavalo de pau, seguro da sua sabedoria, explicava-lhe que é sempre possível manter as costas direitas se não criarmos raízes que nos prendam demais. O pequenino cavaleiro ria-se, feliz, mesmo sem perceber a resposta, e penteava as crinas de lã do seu amigo cavalo. Às vezes, o menino mudava de brincadeira, cansado das cavalgadas longas, ou aflito para fazer xixi, e encostava-o a uma parede. Ele ficava quietinho, mas sempre atento, ouvindo as conversas próximas e relinchando perante os disparates que os adultos diziam. Chegou a ouvir dizer, indignado, que a sua cabeça era uma meia velha!!


Um dia, a Minnie, que estava farta de ficar sempre no mesmo lugar do cesto dos brinquedos, pediu ao cavalo de pau que a levasse a passear. Ele estranhou. Uma ratinha vaidosa a montá-lo?! Mas a Minnie, usando de toda a delicadeza, pediu muito-muito-muito e ele acabou por lhe fazer a vontade. Com dificuldade, porque tinha as pernas muito pequeninas, ela agarrou-se à rédea de cores e partiram. O cavalo de pau mostrou-lhe os Montes alentejanos, levou-a ao castelo de Marvão, deixou-a colher malmequeres para colocar entre as orelhas, ensinou-lhe como fazer para saltar pelo meio do arco-íris. Quando voltaram, os dois amigos encostaram-se à parede, ficaram muito quietinhos e só o pequeno cavaleiro descobriu que os dois tinham ido passear. Porque os pequenos cavaleiros, sobretudo quando montam cavalos de pau, descobrem magias singulares e experiências únicas!