sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O Meu Conto de Natal

Da porta via a linha do horizonte. Em criança acreditava que ali era o fim da terra e que, se continuasse em frente, entraria de mergulho num mar azul, brilhante de reflexo de estrelas, cheio de sereias de cabelos longos e barcos de velas brancas. Acreditava, também, que no fim do arco-íris havia um pote de ouro, que a fada dos dentes entrava de noite para lhe deixar um presente no lugar do dente caído, que as formigas e as cigarras eram inimigas mortais e que o seu cão compreendia os desgostos que lhe confidenciava. No Natal, há muitos anos, via no céu os riscos que deixava o carro do Pai Natal quando, nos preparativos, voava ligeiro fiscalizando o comportamento dos meninos pequenos. Para ela, o velhinho de barbas brancas era um criado do Menino Jesus. Então os criados ainda não tinham sido promovidos a empregados e, numa relação de boa vontade, uniam-se para acabar os presentes a tempo e horas.  Agora via a linha do horizonte com a certeza de que, para lá do fim, só havia mais mundo, mais terra e mar, mais dor e desalento. Dali, da soleira da porta onde gelavam as malvas vermelhas, olhava a chegada de mais um Natal. De mansinho, afagando a cabeça enorme do cão, via chegarem ternuras e afectos que perdera. Ou não. Porque acreditava que não se perdem afectos, que não se esquecem ternuras, que tudo fica guardado no coração, na pele, na enorme caixa branca (porque a negra vive em maquinismos) onde se conservam as memórias.
Lá longe, marcando a neve do caminho com patorras de elefante, vinha mais um Natal. Diferente. Porque cada dia é diferente, novo, a estrear, oferecendo, como cantava Caeiro, o direito ao espanto! Sim, espantava-se ainda. Com a força limpa do frio, com a brancura a neve, com o crescimento perfumado dos bolos no forno, com as velas vermelhas a diminuirem a cada anoitecer, com o presépio de figuras toscas a encher-lhe a sala. Sim, espantava-se com a eterna dificuldade em cortar o perú assado em fatias transparentes, com as nódoas terríveis de azeite que sempre caíam no avental quando fritava azevias. Mas já não se espantava com a tristeza crescente, com a solidão rotineira, com a desesperança colectiva.
Era Natal! O frio lembrava-lhe a idade que fazia ranger os joelhos e, em silêncio, desejou um milagre. Porque, sobretudo no Natal, os impossíveis acontecem. Entrou em casa, faltava encher com o recheio de miúdos o papo do perú que há duas noites dormia no alguidar de barro em água e limão, e deixou o cão entrar também, colando-se-lhe às pernas, molhando-a com o focinho húmido. Abriu a janela da cozinha,  a linha do horizonte lá estava, recta, imóvel. Ah, e se acontecesse um milagre?
Com a casa quente, a lareira forte, os cheiros de fritos enchendo o ambiente, sentou-se lendo um livro. Sophia. A mulher e o mar, a solidão e a desesperança, a força também.
Uma buzina estridente acordou-a. Sim, no Natal os milagres acontecem!

2 comentários:

  1. Ainda bem que a buzina já a acordou e que o milagre aconteceu!

    É o milagre do Natal!

    Aguardo o meu, silenciosamente, ansiosamente!

    Feliz Natal para si!

    Cumprimentos.

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  2. Que conto de Natal mais lindo e aconchegante!
    Que cheirinhos tão apetitosos.O Perú, há dois dias em água e limão vai ficar uma maravilha!
    O cheirinho das azevias é de ougar, sente-se aqui!!
    ...Hum...que bom a buzina estridente..., o que será o Milagre?!

    Feliz Natal a todos os que passam por aqui!

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