segunda-feira, 16 de abril de 2012

A Foca

Estava ali, branca e sóbria, de portas abertas a quem passava perto. Ela aceitou o convite mudo e entrou. Saíra de casa na manhã fria de mais um domingo, apenas a cadela por companhia, para tomar um café e reencontrar o mundo. Tomara dois cafés em vez de um, os exageros ainda possíveis, e fora o vento gelado que a fizera abandonar a esplanada vazia. Gostava de caminhar, da companhia cúmplice da Foca, labradora preta que há anos lhe adivinhava os humores. Sorriu-lhe. Parada, olhava-a sem perguntas, disponível apenas. A disponibilidade sem cobranças, sem exigências, sem imposições. Era sempre a Foca que lhe enxugava as lágrimas, que a ajudava, como um muro cerrado, a suportar os embates da vida. Entrou na igreja. Fica Foca, venho já. Com um suspiro fundo, a cadela deitou-se olhando-a no fundo dos olhos. Sim, Foca, volto já; e sim, prometo não fazer nenhuma asneira. Na penumbra, entontecida pelo cheiro intenso da cera queimada, sentindo o frio que vinha cortante do chão de pedra, tentou rezar. Agradecer - lembrava-se das palavras do velho padre da sua infância - agradecer sempre porque as graças são muitas. Sentindo o ardor das lágrimas, lembrou as graças. Muitas. Desde logo, os amigos, a Foca, a quentura da sua casa, o emprego, o privilégio de poder, bem cedo, caminhar no frio ao encontro da bica quente. Mas, por ser humana talvez, a dor das falhas, da incompreensão, dos julgamentos frequentes, das condenações absurdas. Queria rezar, mas a oração não surgia. Ouviu a Foca, uivando baixinho, chamando-a talvez. Cá fora, olhou o céu, agora negro, percebeu o aviso da sua cadela: vinha lá uma tempestade! Como ela queria poder dizer à Foca que aquelas tempestades, feitas de chuva e relâmpagos, não lhe metiam medo...

4 comentários:

  1. A sua Foca faz-me lembrar o meu Pantufa, um Serra da Estrela bem cheio de pelo, que me acompanha para qualquer lado e me avisa de qualquer perigo. Pena é a idade que o vai enchendo de artroses e tolhendo a agilidade.

    O meu Pantufa tem um medo enorme das trovoadas e corre sempre a aconchegar-se junto aos meus pés.

    Cumprimentos

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  2. Nada como a Foca, o Pantufa e, já agora, o meu cão Zac que já não existe mas era esse grande companheiro também, a pensar, a avisar, a preocupar-se!
    Beijinhos
    As tempestades passam sempre...

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  3. Quando entramos nas igrejas, com cão ou sem cão, passam as tempestades da cabeça e do coração, ao escutarmos o silêncio...e ao conversarmos, calados, com os santos...
    Não percebo como é que gosta tanto de chuvas, relâmpagos e trovoadas...tadinha da Foca!

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  4. às vezes gostava de não ter medo dos cães.
    Beijo

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