quinta-feira, 5 de abril de 2012

Recomeço

A sala enorme, forrada de livros trancados, com sofás gastos e janelas rasgadas, recebia-o muda. Era uma sala alheia, (ele estava de passagem), mas, ainda assim, sabia-lhe bem o fogo crepitante, as janelas largas e o vale a perder de vista. Saira de casa na procura, livre e consciente, de calma e distância da perda recente. Partira sem rumo e ali estava, numa casa de madeira, sozinho, olhando a noite. Lá fora o vento e a chuva que, recusando-se a cair meses a fio, parecia agora querer acompanhá-lo na nova existência. Nas paredes, presenças alheias, crianças que desconhecia, homens austeros e senhoras elegantes, colecções de carrinhos de brincar, recortes de jornais antigos. Também ele carregava presenças ausentes, sempre. Ali, com ele, na solidão visível, estava uma multidão de memórias. Lembrava outras casas, hoteis - ela gostava de sair -, os filhos pequenos a explorarem tudo, as malas coloridas a encherem o carro. Lembrava-a desanimada, incapaz de arrumar as malas no porta-bagagens, confessando num abraço forte a sua inabilidade manual. Sentia-lhe o cheiro ainda, tinha nas mãos a textura da pele dela e evitava  a cama porque, tinha a certeza, o vazio no lugar dela ia doer demais... Olhou a noite escura. Felizmente, apenas uma família escolhera aquele lugar e, com certeza, dormiam todos. Assim, ele podia gozar a insónia, deixar-se ficar sentindo-a perto, sorver-lhe o perfume  que sempre usara. Ela estaria sempre por ali, prometera!, olhando por ele, vigiando as refeições, passando as mãos pelos cabelos como sempre fazia. Se fosse crente, diria que ela estava no céu. Mas perdera a fé no dia do diagnóstico certo e fatal. Agora, apenas cria na crueldade do vazio que ela deixara, na Páscoa gelada e solitária, vagueando na procura dela, na fuga da companhia que filhos e amigos queriam impor. Era Páscoa. Se ela estivesse a seu lado, iria esconder os ovos, ousar ternuras com chocolate (inconfessáveis) e teimar em assar quatro pernas de cabrito garantindo que as mãos do bicho só tinham pele... Era sempre assim. Era sempre ela! Agora, era só ele. Sem cabrito, sem ovos, sem as refilices ternas da mulher que, segurando a sua mão, partira cedo demais.

3 comentários:

  1. A solidão das horas difíceis, num espaço suficientemente grande para absorver recordações, com paredes cheias de motivos capazes de diluir as saudades, janelas com a vista para um vale suficientemente grande para engolir as memórias e uma lareira com um fogo crepitante exalando cheiros perfumados...

    Haverá espaços, assim, grandes e cheios de sofás, de livros, de presenças alheias, de janelas enormes e rasgadas sobre um vale, de lumes crepitantes e aconchegantes?

    Cumprimentos.

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  2. Lindo texto!
    Talvez lembranças e evocações ao Pai? ...
    Páscoa serena e apesar de tudo, feliz...

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  3. Outras casas, outros espaços, mas leio ternura e recordações de momentos únicos.

    Cumprimentos

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