quinta-feira, 9 de março de 2023

Afinal, todos acabamos.

 Tenho saudades do meu Pai. Recordo histórias vividas por ele. 

“O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”. As palavras da avó Josefa, escritas por Saramago, apareciam escritas na linha do horizonte que olhava. Há quantos anos teria lido aquela carta a Josefa? Nem era grande admirador do Nobel, mas aquela frase ficara-lhe gravada e, agora, insistia em aparecer com excessiva frequência. Levantou o olhar. Era o seu chão, o seu Alentejo, a planície, o vento soão, e como soava às vezes, os verdes que, logo, logo, seriam amarelos. Gostava do seu chão. Sentia-lhe a falta quando, no ar, naqueles monstros que sempre o apavoravam, viajava para outros lugares. …. E eu tenho tanta pena de morrer. Josefa insistia. Estava velho, ele.

Quando era novo, com os cães, calcorreava a planície atrás das lebres orelhudas, das perdizes ligeiras, das rolas sonoras. Gostava da caça, da solidão das manhãs húmidas, cinzentas, do regresso ao fim do dia, de ver o sol partir.

Já tinha vivido muito, pisado muito chão, acumulado muitas histórias. Um dia, quantos anos teria?, tinham vindo arrancá-lo à cama, estava ferrado, depois de uma caçada. Tinham batido com força, a mulher acordara primeiro, dissera-lhe com um abraço, sempre o abraçava, tens de lá ir. E fora. Vida de médico era assim. Um tipo matava-se, uma mulher caía ou era derrubada, um gaiato caía da árvore, e lá vinha a guarda buscar o doutor,  buscá-lo a ele. Que fora então? Ah, um suicídio. Enforcado na trave do sótão, informou o guarda, cinto mal apertado, também ele, decerto, arrancado aos braços do sono, ou da mulher. Vestira-se num instante e lá fora. Estava muito frio, um frio que lhe chegava aos ossos e o fazia, mais ainda, desejar o regresso rápido para o conforto do corpo da mulher.

Os guardas eram de poucas palavras, o jipe seguia aos trambolhões chocalhando o desinteresse incómodo daquela morte. Que mania, a de suicidarem de noite, pensava.  Como se, mesmo mortos, fizessem questão de chatear os que ficavam. Uma travagem brusca arrancara-o aos pensamentos. A partir daqui o senhor doutor tem de ir na mula, o jipe não passa a ribeira, vai cheia. Na mula? Sim está ali o cunhado do morto, a gente acompanha o doutor a pé. Era ágil então e, num pulo, lá estava escarrapachado na animália. De cada um dos lados um guarda, era preciso a autoridade para provar a morte do morto. Um dos homens, mais pesado, barriga testemunha de boas amizades regadas com bom néctar, refilava. Que o gajo não merecia o incómodo, coitada da viúva, sete gaiatos a cargo e o cabrão, com licença do senhor doutor (toda!) , lá no céu descansadinho.

Agora, há luz de mais de cinquenta anos, achava graça. Então, não se lembrava de ter sorrido sequer. Quando chegaram ao Monte, o silêncio feria. A viúva, sentada junto ao lume, parecia aliviada, os garotos estavam junto dela, ao borralho. O guarda, cheio da autoridade que a farda, ou perímetro abdominal, lhe conferia, perguntou: - Onde está o seu marido? Lá em cima, pendurado, respondeu ela, sem tirar os olhos das brasas.  Talvez estivesse zangada com ele, ou com a vida. Devia ter razão.

O guarda impôs-se de novo. Eu vou à frente, o doutor segue-me. E em fila indiana, o guarda , eu, o cunhado e o outro guarda, lá começamos a subir os degraus íngremes que levavam ao sótão. Ao abrir a porta, uma rajada de vento forte entrou e o corpo, pendurado, caiu da trave. Ah que o morto está vivo! Ah que o gajo está vivo!

E a autoridade desceu a tal velocidade que todos íamos caindo na estreita escada.

Infelizmente, o morto estava morto, acontece. Passados os documentos, lá fiz de novo o percurso na mula, a manhã quase a romper e, quando entrei em casa, gelado na alma e no corpo, mergulhei confortado no corpo quente da minha mulher.

No dia seguinte, na casa de apoio à Igreja, uma espécie de sacristia alargada, lá estava o morto e lá se fez o funeral. 

Uns quinze dias mais tarde, o senhor prior chamou-me, estava eu a acabar o serviço na então Casa do Povo, para ir ao petisco da matança. Fui. Na mesma mesa onde vira o enforcado, estava agora um grande porco, esventrado, as mulheres zumbindo de volta dos alguidares, os homens assando umas presas no lume de chão. Não fui capaz de comer.

 

Hoje, velho, troço de mim mesmo. Homem, porco, todos acabamos da mesma maneira.

Estou velho, vi muita coisa, mas tenho muita pena de morrer.

É que o mundo é tão bonito!

1 comentário:

  1. Gostei, apreciei, tal e qual ; porém tem um "mas", - O porco não estava morto, simplesmente anestesiado e mal... - deu conta de tudo quando estavam no festival a assarem-lhe os órgãos e a degustá-los ...
    Muito bom argumento para um conto ou novela - Obrigada...

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