sexta-feira, 17 de junho de 2011

chapéu de palha

Era numa cadeira velha, gasta, baixinha, com as flores alentejanas numa pintura esborratada, que ela se sentava. Ia cedo, gostava de se levantar ao primeiro cacarejar do galo, e levava a fruta fresca. Sentava-se, punha na cabeça o chapéu de palha menineiro, colocava os cartazes e ficava esperando: - "Vendem-se cereijas; Melâncias; Nêspras" -, escrevera no cartão da caixa dos ovos. Muitas vezes, os carros passavam como o vento, nada dizendo, sem sequer a olharem. Mas, outras vezes, havia quem parasse. Havia, até, quem quisesse conversa, quem fizesse perguntas: - Então a senhora é viúva? Veste-se de preto... - Sim, era viúva. Mas não sabia desde quando. Às vezes, pensava que fora sempre viúva, se o negro significava viuvez, porque se esquecera de ser menina e sempre vivera com o negro na alma. - Então as suas cerejas são doces? - E ela sorria um desdentado de certeza que convencia os mais bem dispostos.
Naquela tarde, parara um janota, um figurão, que perguntara com um tom azedo: - Então vossemecê não tem um neto que lhe corrija o cartaz? Já viu que está aqui com isto tudo mal escrito? Não sabe que as cerejas não têm "i"?! - Não senhor, não sabia. Sabia que a trovoada seca estragava a uva, que o pedrisco deitava as cerejas ao chão, que a chuva de Maio afogava o melão, que os pardais se riam do espantalho, que o pôr-do-sol vermelho anunciava calor, que as galinhas velhas não punham ovos, que o gato dava conta dos ratos. Mas não sabia que as cerejas não tinham "is". Nem sabia das outras palavras que o figurão garantia serem uma vergonha de erros. Olhou-o pelas frestas das rugas e, vendo escorrer o suor no pescoço engravatado, perguntou: - O senhor não me leve a mal, mas com tanto saber, o senhor não sabe que quando se anda ao sol se deve usar chapéu? Olhe, fique sabendo que eu nunca me esqueço do meu... Sabe, é que a gente, com os anos, aprende a conhecer o que é mesmo-mesmo importante! E, se fossem só os iis a incomodar a gente...

1 comentário:

  1. Se fossem, mesmo, só os iis, tudo ia bem... o mal é tudo o resto, a má educação, o mau ensino, a má prática de medicina, os tribunais que não funcionam, quer mais?
    Cumprimentos.

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