segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Cruzeiro

Da amurada olhava a cidade, a sua, num adeus silencioso. Partia! Quantas vezes, em sonhos acordados e insónias dolorosas, sonhara com aquele momento, com a partida de mala feita sem culpas nem medos? finalmente, chegara a hora. Sentia-se um pouco como a aia corajosa, narrada por Eça de Queirós, que, depois de matar o próprio filho,  elevando um punhal de rubis e diamantes dissera "salvei o meu princípe. Agora, vou dar de mamar ao meu filho!" espetando no peito a jóia mortal. Ela não matara ninguém, não tinha sequer a Fé da aia negra, mas sentia que cumprira a sua tarefa ao serviço dos outros, sempre os outros, e por isso podia conceder-se o privilégio de partir. Embarcava sozinha, a mala mais cheia de livros do que de roupa, alguns vestidos confortáveis e o desejo de se encontrar, de se olhar por dentro, de conversar com o rosto envelhecido que, diariamente, a desafiava do outro lado do espelho. O que levava uma mulher, mais de 50 anos, a partir assim? Adivinhava as críticas... A troça até, que ideia aquela de precisar de tempo para si quando tinha filhos, amigos, trabalho e vida a cumprir?? Mas era exactamente o cumprir que a fizera partir. Era o desejo de uma vida a viver, sem a obrigatoriedade de cumprimento de fórmulas sociais de ser feliz, que a fizera encher-se de coragem, fechar os ouvidos às condenações e partir. Sempre lhe diziam que ela era forte, que suportaria tudo, e essa força, tantas vezes assente na fragilidade escondida, tinha-a levado ao silêncio, ao aceitar imposições, à negação do seu próprio eu. Por isso, partia com a certeza  que, ainda que só os filhos aceitassem esta viagem, precisava de a realizar.
Estirada numa cadeira de lona, sentia os outros, que não conhecia, borboletarem por ali. Eram famílias, jovens casais, grupos de amigos. Só ela estava sozinha e, curiosamente, nunca se tinha sentido tão acompanhada. Era o seu tempo, a sua procura, o seu tempo sem ser forte, sem cumprir desejos aheios, sem se centrar em necessidades familiares.
O navio, moderno, navegava calmamente, deixando o Tejo, entrando no mar a caminho do Sul. Tantas vezes ouvira falar de ondas, de navegações, de partidas e, agora, era a sua vez. Esperava-a a costa Amalfi, a Grécia de Sophia (a da crise também), noites de um céu que apenas dos livros conhecia. Era a sua viagem, o seu cruzeiro finalmente realizado, a sua partida para uma geografia muito próxima a sua!

2 comentários:

  1. Quantos gostariam de ter essa coragem!
    Belo texto.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  2. Está na hora da partida, o "tútútúúúúúú" da sirene do navio de cruzeiros dá o sinal e, à medida que se vai afastando do cais, à medida que vai deixando a cidade apequenar-se na distância, vai-se libertando dos outros, vai-se deixando envolver pela sensação de viver o romance que acabara de ler...
    Cumprimentos.

    ResponderEliminar