segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

INSULTOS?

 

A agitação começava de véspera. Era preciso verificar se havia cartuchos, preparar as armas, pensar na merenda, ensebar as botas, preparar as cartucheiras. Depois, noite ainda, os homens tomavam um pequeno-almoço e saiam.

Era dia de caça. O ar ganhava uma cor diferente, o entusiasmo do meu irmão era contagiante e o meu pai, sempre péssimo a cumprir horários, ouvia-o a reclamar. Eles saiam e, muitas vezes, eu, ainda na cama, ficava a imaginá-los nos campos, atrás das perdizes e das lebres, camuflados pelo nevoeiro da manhã, silenciando os passos nos terrenos amolecidos, caminhando num mundo tão natural, tão autêntico, tão, até, inicial.

Ficavam fora todo o dia e, ao anoitecer, voltavam com os cães de língua de fora, cartucheiras vazias, peças que dariam refeições bem boas, e muitas histórias para contar. Falavam de marouços, de batedores e de aguardos, de grades e falhanços. Eu ouvia-os e, sendo como sou feita de silêncios, imaginava as vivências da caça, espantava-me com o carinho e a emoção dos relatos. Li Torga, guardei para mim passagens inteiras do Conto O Caçador, que ainda hoje sei de cor, e fui ganhando, talvez por herança ou educação, uma paixão enorme pela caça.

Hoje, não tendo meu Pai, vejo a euforia da caça nas vivências dos meus sobrinhos, do meu irmão sempre, e continuo a encantar-me a emocionar-me. Às vezes, tenho saudades de ouvir um tiro de uma espingarda de dois canos. A caça é, para mim, como para Torga, um desporto de harmonia entre o homem e a natureza, um reencontro com a Natureza primordial.

Com onze anos, comecei a montar a cavalo. Como eu me sentia realizada, feliz e plena, quando, em Monforte, cavalgava as férias. Aprendi, ali, a força da amizade, o respeito pelos animais, as regras de convivência entre homens e bichos. Nunca me ensinaram a maltratar, a falhar, a desleixar-me, fosse com a montada, fosse comigo.

Hoje, com tantas perdas acumuladas, penso sempre que esses foram os meus tempos de verdadeira felicidade.

Com o meu pai, fui muitas vezes a touradas e gostava muitíssimo! Conheci gente ligada aos toiros, só gente muito boa, conheci quem gostasse de cavalos, touradas, caça, e nunca, neste ambiente, encontrei ódio, maldade ou crueldade. Bem pelo contrário! Gente pura, autêntica, que valoriza a Terra, a amizade, a essência das coisas.

Hoje, depois dos resultados eleitorais, alguém me dizia que quem votou em AV é gente da caça e das touradas! Como é preconceituoso, ignorante e cruel este comentário. Como se pode acusar Torga de cruel?

O meu Pai era médico, excelente pessoa, amigo do seu amigo, humanista, sempre disponível a ajudar o próximo e gostava de caça e de touradas. Eu não sou ignorante, leio, oiço, vejo, penso, e gosto de poesia, da caça e das touradas. Como pode haver quem queira proibir tudo, quem condene os que ousam pensar ou sentir diferente? Quem se julgam aqueles que me chamam ignorante e cruel? Que direito tem alguma esquerda pseudointelectual de me apelidar de selvagem e bronca??

Não, quem votou AV não o fez por gostar de caçadas e de touradas.

Fê-lo por estar descrente deste país que não permite o sonho, que condena a autenticidade, que quer cidadãos formatados a um modelo de sociedade cheio de vazio. Fê-lo por se sentir violentado no que é a sua essência. Fê-lo por não querer mais pactuar com uma classe política balofa de aparência, sem um projeto sério para o país. Fê-lo porque tem medo, como eu tenho, de um dia acordar e já não poder ser eu!

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