sexta-feira, 9 de agosto de 2013

ESTÓRIAS HERDADAS - 2

O SUICÍDIO - FIM
 Torre da Igreja de Alegrete


"Pois era mesmo preciso encontrar um espaço para colocar o corpo. A morte não permite algumas indignidades a que a vida parece indiferente. Se o Manel estivesse vivo, bem podia aquecer-se no bafo das cabras, dormir enrolado em peles por curtir e comer o pão que o diabo amassou, mas morto, ganhava outra dignidade. Ora, aquela hora tardia, naquele ermo, não parecia fácil resolver o problema. 

Foi então que o senhor padre, tal como eu chamado à pressa, sem ter tido tempo para encomendar a alma daquele desgraçado que conhecia de menino, salvou a situação:"Leva-se o corpo lá para a casa da Igreja. A gente arranja lá onde o deitar. Ora aparelha aí a carroça." Num instante a carroça estava pronta, a mula convocada para puxar e alguns braços de homens colocaram o corpo sobre a palha. A mulher, sempre com a criança ao colo, sentou-se ao lado, embrulhada na negrura da noite, cosida no silêncio que o choro entrecortava. Eu, incapaz de voltar a saltar para o lombo da mula que me trouxera, segui a pé, com os guardas, numa longa hora de marcha até à vila. 
Chegados à Igreja, com os primeiros raios de sol a despontar, o senhor padre abriu de par em par as portas da sala contígua. Olhei e não pude disfarçar um sorriso: - Em cima da mesa de pedra larga,  mesa de matança, estava a carne do porco em meio de desmanchar! Com desembaraço, o senhor padre deu ordens aos fiéis, chegou-se  a carne para os lados, tiraram-se os alguidares com o sangue e colocou-se o corpo do Manel. Por ironia, da vida ou da morte?, ele tinha agora a abundância que nunca conhecera em vida."


5 comentários:

  1. Estórias de uma vida vivida com amor ao próximo de uma pessoa que sempre deu mais do que recebeu...
    São estas as pessoas que se guardam na memória e deixam saudade. Quanta saudade...

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  2. Muito, mas muito obrigada, pelas palavras que adivinho sentidas!

    Luísa

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  3. Não sei o que é melhor, se a estória em si, se a forma como a Luísa a contou!

    António

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  4. Termina um bocadinho tétrico...
    Mas era assim mesmo. Punham os cadáveres na mesa maior (na principal) das casa. Sempre me arrepia ver. Nos filmes italianos, quase sempre aparecem cenas como esta.
    Mas, não sei como é, nas casa dos Reverendos há sempre "fartura"...

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